A GUERRA EM MOÇAMBIQUE.

 

1. Antes da declaração de guerra da Alemanha (1914-1916)

 

Artilharia em Moçambique
 Organização defensiva em Moçambique 

 

A 1.ª EXPEDIÇÃO A MOÇAMBIQUE (1914)

Moçambique, tendo uma superfície oito vezes e meia maior do que Portugal, conta uma população aproximada de quatro milhões de indígenas e uns escassos vinte mil brancos portugueses. Para se fazer uma ideia geral da distribuição de recursos e população, com o fim de se compreender a capacidade militar da Colónia, deverá notar-se que os brancos estão concentrados ao sul, principalmente na cidade de Lourenço Marques, de clima benigno, já fora dos trópicos, enquanto os pretos concentram a sua mais densa população nos distritos centrais da Colónia; e ao norte, nos territórios da extinta Companhia do Niassa, com uma superfície correspondente ao dobro da de Portugal, a população indígena rareia e os brancos, militares e funcionários, antes da declaração de guerra, não chegavam a uma centena; no Niassa, cuja administração por uma Companhia soberana cessou em 1929, só se cobrava o imposto indígena e da alfândega, não havendo recursos económicos apreciáveis nem agricultura, comércio ou indústria. O corpo de polícia de tão vasta região somente contava trezentos cipais indígenas, dispersos pelas administrações. A população indígena, entre o Lago Niassa e o Oceano Índico, cerca de 550.000 almas, era pacífica.

Antes da declaração de guerra era pouco conhecida a fronteira norte desta nossa Colónia. Nas viagens de estudo distinguiram-se o capitão-tenente António Maria Cardoso, o major Serpa Pinto e o tenente de marinha Augusto Cardoso, o qual considerava a região miserável e não acreditava que tivesse um futuro brilhante 1. Das operações militares nessa região fronteiriça, fora notável a expedição de 1898, ao Mataca, sob o comando do major Sousa Machado 2, expedição punitiva para vingar o massacre do tenente Eduardo Valadim 3.

Mnemónico será observar, pela disposição em simetria que a colónia alemã também tinha a sua área mais pobre na fronteira do Rovuma, e por isso a campanha dos aliados desenvolveu-se naturalmente da parte mais populosa e rica, ao norte, para a mais atrasada ao sul, sendo os alemães acossados pelos ingleses nesta direcção sul, vindo a cair sobre a fronteira portuguesa do Rovuma, aguerridos e dispostos a todos os sacrifícios por uma resistência heróica e inquebrantável, a que só pôs termo o Armistício, marcando na história colonial mais uma página de valor militar. Os recursos e populações indígenas da colónia alemã eram mais do dobro dos nossos e as suas tropas eram de primeira ordem. A antiga colónia, hoje denominada Tanganica e sob a administração inglesa em regime de mandato, tinha uma população europeia diminuta, mas contando numerosos oficiais alemães licenciados e ocupados em grandes explorações agrícolas ao norte da colónia. Ao desencadear-se a Grande Guerra em Agosto de 1914, as condições económicas da Colónia de Moçambique eram de progressivo desenvolvimento, desde a gloriosa campanha do Gungunhana em 1895, definitivamente terminada em 1897 com a morte de Maguiguana, comandante em chefe das hostes do destronado régulo, campanha à qual se seguira a ocupação do distrito de Moçambique, ultimada em 1913. A colónia estava, portanto, pacificada e assim se compreenderá o grande recrutamento de soldados e carregadores indígenas, que se conseguiria efectuar posteriormente. Também os alemães, após duras campanhas de ocupação, tinham a sua colónia pacificada e efectuaram um avultado recrutamento indígena, no decurso da guerra, reforçando a sua guarnição militar.

Do nosso lado as nossas tropas eram proporcionais aos nossos recursos. A organização militar de Moçambique era a do decreto de 14 de Novembro de 1901, que marcou um visível progresso das tropas coloniais; porém as unidades europeias estavam quase extintas por economia, e assim, a guarnição da colónia limitava-se a um fraco esquadrão europeu e uma dúzia de companhias indígenas, cuja instrução não ia além da ordem unida, e os quadros, em geral, fatigados pelas febres, tinham fraca robustez e, quanto a instrução militar, estavam mal preparados porque nunca tinham passado por nenhuma escola militar. Acerca de mobilização de tropas coloniais nada estava estudado, ainda que treze expedições da Metrópole tivessem marchado até Moçambique, de 1891 a 1901 4.

Era, pois, urgente improvisar, como é costume entre nós.

A opinião pública portuguesa pouco conhece as colónias e estuda a Colónia de Moçambique menos ainda que a de Angola. Entretanto, a situação geográfica de Moçambique não lhe permite conservar-se alheia a uma grande guerra que envolva a África do Sul; de facto, desde logo, nos primeiros dias de Agosto de 1914, se acastelaram prenúncios de tempestades por todas as fronteiras de Moçambique. No sul, anunciava-se a revolta bóer, para dominar a qual, a Inglaterra nos pediria espingardas; ela pedia também a passagem de tropas inglesas pela Beira, enquanto na Niassalandia se desenhavam movimentos nativistas e na fronteira do Rovuma se dava, de 24 para 25 de Agosto, um ataque dos alemães ao nosso posto de Maziúa.

É característica esta acumulação de dificuldades evidenciando que nunca poderemos descansar em cómoda neutralidade quando tantos conflitos se levantaram na fronteira de Moçambique, por causa da sua disposição geográfica, independentemente da nossa acção.

Compreende-se, portanto, que era necessário logo ao começar a guerra, que desde 4 de Agosto já envolvia a nossa poderosa Aliada, guarnecer com forças militares a grande zona dos territórios da antiga Companhia do Niassa, que só tinha uma ilusória rede de ocupação administrativa. Em 18 de Agosto foi decretado enviar uma expedição de 1.500 homens para Moçambique, sendo o núcleo do destacamento misto constituído pelo 3.º batalhão de infantaria n.º 15, regimento que então tinha a sua guarnição em Tomar 5. O preâmbulo do decreto dizia ser conveniente, nas circunstâncias de momento, guarnecer alguns postos da fronteira do sul de Angola e do norte de Moçambique, fronteiras onde tínhamos os alemães por vizinhos e que apresentavam certa analogia geográfica, prolongadas em paralelos subtropicais quase desérticos, e em áridas e abertas fronteiras.

De improviso, sem obedecer ás regras de mobilização, organizaram-se o batalhão e outras pequenas fracções do destacamento. O decreto facultava aceitar como voluntários praças licenciadas e graduados oferecidos. pelo que se tirou às unidades espírito de corpo e se recebeu pessoal mal comportado. Na verdade o batalhão só contava duzentos homens do regimento de Tomar, enquanto os outros oitocentos vieram oferecidos de várias proveniências, mal conhecendo os oficiais e com deficiente instrução militar. A sua robustez deixava muito a desejar, sendo insuficiente para suportar um clima tropical.

Tenente Coronel Massano de Amorim

O tenente coronel
Massano de Amarim

A alma da expedição foi o seu comandante, tenente-coronel Massano de Amorim, oficial já experimentado em campanhas coloniais e que fora governador do distrito de Moçambique, muito tendo contribuído para a sua ocupação em 1910; também desempenhara as funções de chefe da repartição militar no Ministério das Colónias.

A falta de instrução militar das unidades que formavam o destacamento não podia, pela urgência, ser remediada na metrópole e foi preciso em terras de África começar com a instrução elementar, que quase todos os licenciados tinham esquecido.

Pior do que o analfabetismo, dificultando a instrução militar, foi a ignorância da higiene, a falta mais prejudicial para esta e outras expedições, como se manifesta pelos desfalques observados nos efectivos, causados pelas doenças.

Onde a improvisação também acarretou muitas dificuldades foi nos fardamentos que foram fornecidos à pressa e de má qualidade, desfiando-se o cotim de algodão às primeiras lavagens e perdendo a consistência e a cor. Os capacetes de feltro deformavam-se logo que apanhavam chuva, e o calçado era fraco e descosia-se.

A improvisação também se fez sentir nas disposições para o embarque da 1.ª expedição para Moçambique, porque, à falta de navios nacionais, foi contratado para a viagem um paquete inglês Durham Castle que foi escoltado pelo cruzador Almirante Reis. Sendo o transporte num navio Inglês, quando os alemães ainda tinham no mar alguns cruzadores, essa viagem foi uma temeridade, não obstante se ter solicitado e obtido a protecção dos navios de guerra britânicos.

A viagem foi muito incómoda, pelo grande número de solípedes que o navio transportava, e, chegando o barco a Lourenço Marques em 16 de Outubro, a expedição teve de passar para o vapor Moçambique, desembarcando em Porto Amélia a 1 de Novembro. Foi grande a decepção dos expedicionários quando nada viram preparado para os acolher. Novamente se tinha de improvisar. De Lisboa fora pedido que se preparasse o estacionamento da expedição, mas, por falta de recursos da Companhia do Niassa, falta de iniciativa da Colónia e também da Metrópole, nada se encontrava preparado. Este facto foi repetido em cada uma das seguintes expedições, sendo constantemente necessário improvisar instalações.

Vamos ver como também se improvisavam planos de operações.

Do relatório do comandante, dactilografado em dois grossos volumes, um deles contém detalhes de serviço, cuja leitura perdeu oportunidade, outro cronologicamente descreve as dificuldades em que se encontrou, tendo esta parte ensinamentos, porque as mesmas faltas de organização se repetiram nas expedições seguintes. A Companhia do Niassa nenhum auxílio prestou, porquanto as suas autoridades não tinham suficiente domínio sobre os indígenas e nem carregadores forneciam.

A 15 de Junho de 1915, o Governador Geral de Moçambique transmite ao comandante da expedição a missão, que o Governo da Metrópole tinha em vista, de reocupar Quionga e invadir a colónia alemã, ocupando uma faixa de terreno na margem norte do rio Rovuma. Aspiração desproporcionada para a nossa capacidade, não só militar, mas sobretudo na acção administrativa correlativa.

Nesse tempo os alemães tinham deslocado para a nossa fronteira algumas forças para observarem os nossos movimentos, sendo este deslocamento útil para aliviar os aliados britânicos e belgas, que nos primeiros encontros com o adversário tinham sido batidos. Outro serviço importante da expedição foi submeter ao nosso convívio os indígenas macondes, abrindo estradas e montando linhas telegráficas para a fronteira do Rovuma, que o improvisado plano de operações pretendia transpor em tom de guerra, para ocupar a referida faxa de território inimigo.

Diversa correspondência consta do relatório do comandante da expedição e se encontra resumida no livro do Marechal Gomes da Costa, A Guerra nas Colónias, salientando sobretudo a falta duma orientação definida pelo Governo da Metrópole. Assim, em 8 de Agosto, o comandante renova para Lisboa o pedido de instruções sobre a orientação a seguir, mas, em 23 de Agosto de 1915, recebe um telegrama do Ministro anunciando-lhe que vai render a expedição. Ainda o comandante se ofereceu para comandar a nova expedição, como diz no relatório, mas não foi atendido.

As condições de rompimento de relações com a Alemanha estavam em Agosto de 1915 a ser tratadas diplomaticamente com a Inglaterra; não era, pois, este o momento para render forças, mas sim para reforçá-las.

Que concluir por fim desta 1.ª expedição a Moçambique? «Tudo dava a este destacamento o aspecto de tropas batidas e desmoralizadas», afirma o marechal, a páginas 67 do referido livro; todavia, para compreender e suavizar a dureza desta verdade, deveremos notar que o termo de comparação, quer na Flandres quer no Niassa, era o nosso Aliado, o soldado britânico, o mais rico do mundo.

Evidenciou-se, porém, a nossa falta de preparação 6 em contraste com a Bélgica que ganhou uma personalidade colonial vigorosa, porque bem se preparou para uma prova de competência em que lhe coube um mandato colonial no fim da guerra.

O ATAQUE ALEMÃO AO POSTO DE MAZIÚA

À semelhança da violência com que os alemães se apoderaram de Quionga em 1894, também de surpresa, atacaram Maziúa em 1914, sem razoável justificação.

Apoderando-se do triângulo de Quionga, o governador da colónia alemã, que desembarcara dum cruzador, fizera retirar a meia dúzia dos nossos soldados indígenas que guardavam o posto, substituindo-os pelos seus ascaris, seguindo-se depois demoradas negociações diplomáticas, em que apesar das nossas boas razões o facto consumado se manteve e fomos desapossados dum pequeno mas fértil triângulo, cujo valor económico e militar derivava de estar situado na margem do Rovuma, ficando assim a foz deste rio incorporada na antiga colónia alemã, bem como a baía de Quionga, pequena e pedregosa mas podendo dar abrigo a navios de alto bordo.

No ataque alemão ao posto de Mazíua observa-se também o impulso das mesmas insaciáveis ambições, orientação vinda de cima, generalizada a todos os dirigentes e executada com persistência.

O posto de Maziúa era uma sentinela perdida junto da fronteira, a meio curso do Rovuma e cerca do meridiano 37º Leste de Greenwich, a quatrocentos quilómetros de Porto Amélia, por caminhos arenosos. Chefiava o posto um europeu, 2.º sargento do serviço de saúde, de apelido Costa 7, tendo sob o seu comando meia dúzia de soldados indígenas do corpo de polícia da Companhia do Niassa, que viviam em palhotas com suas mulheres.

Posto de observação em Namoto

Posto de observação de artilharia em Namoto

A construção dos postos era primitiva, obedecendo à portaria provincial n.º 227-A de 15 de Abril de 1907, mas limitando-se a um cercado com parapeito e fosso, além duns pequeno campo de tiro, sendo o posto de Maziúa, pela distância a que se encontrava, um dos mais pobremente instalados.

Pela morosidade das comunicações, o comandante do posto certamente ignorava que a guerra tivesse começado na Europa em princípios de Agosto, e as instruções gerais que lhe tinham sido distribuídas, analogamente a todos os postos da fronteira, eram no sentido de evitar conflitos.

Pelo contrário, do lado da fronteira alemã as instruções eram tendentes a tomar a iniciativa do ataque, porquanto em cópias de documentação 8 foram encontradas várias referências ao incidente de Maziúa, onde foi vertido o primeiro sangue português, antes da declaração de guerra.

Num diário oficial da guerra, atribuído ao Comando alemão, encontra-se a cópia de um telegrama datado de 10 de Agosto de 1914, para a autoridade de Lindi, distrito junto à foz do Rovuma, onde se recomendava «arranjar tropas auxiliares para fazer uma invasão à Africa Oriental Portuguesa». Depois, sobre o ataque a Maziúa encontram-se duas referências, uma denunciando que se tencionava atacar e outra já anunciando a realização do ataque, tendo sido morto o sargento comandante e destruído o posto 9.

0 ataque foi, de facto, efectuado em 24 de Agosto, sendo massacrados os indígenas que se encontravam dentro do posto; e das averiguações a que procedeu o administrador da Circunscrição de Metarica, à qual o posto pertencia, e dos protestos feitos pelas nossas autoridades, ficou confirmada a premeditação do ataque, aliás sem sequência, devido ao isolamento do posto, mas revelando os propósitos ofensivos do adversário.

Os propósitos alemães de se lançarem imediatamente na ofensiva em todas as fronteiras da sua colónia foram de iniciativa do comandante das forças, não obstante o governador ter procurado tratar com os ingleses.  


Mapa da fronteira do Rovuma

0 antigo Estado Livre do Congo deveria, pelos tratados 10, ser considerado neutral e as suas autoridades belgas assim desejaram conservar-se, sendo, porém, logo atacado pelas forças alemãs da África Orientai.

As forças alemãs tinham superioridade numérica e de organização 11, sobre as forças aliadas, e logo a aproveitaram tomando a ofensiva em 17 de Agosto, atravessando a fronteira Norte e invadindo a África Oriental Inglesa, apossando-se de Taveta, e procurando destruir o caminho de ferro de Mombaça. Semelhantemente tomaram a ofensiva contra os belgas, atravessando o Lago Tanganica e atacando o Congo Belga nessa fronteira, por terem o domínio desse Lago, visto disporem nele dalguns barcos artilhados.

Os ingleses, desde logo, fizeram vir reforços da índia e os combates de fronteira sucederam-se até chegar de ali uma importante expedição com cerca de 8.000 homens, que tentou um desembarque ao norte da Colónia alemã, no porto de Tanga, em 2 de Novembro de 1914 12 protegidos por dois cruzadores. Os catorze transportes desembarcaram 6.000 espingardas, tropas brancas e indianas.

Intimados os alemães a renderem-se, conseguiram ganhar tempo e concentrar mil e quinhentos homens principalmente de tropas indígenas, com que obrigaram a reembarcar os indianos e ingleses, que sofreram largas perdas em pessoal e material, dando sobretudo um grande prestígio ao Comandante alemão, tenente-coronel Von Lettow Vorbeck (depois promovido a general), que teve a superioridade de forças em 1915, em consequência desta vitória.

Pela descrição deste combate nas Memórias do General Von Lettow 13, verifica-se que este «conhecia a falta de habilidade com que as tropas inglesas manobravam» e dessa falta conseguiu tirar partido no contra-ataque que preparou. Os ingleses perderam no combate 500 espingardas e 16 metralhadoras.

A habilidade de movimentos para entrar em combate ou recusá-lo, a manobra engenhosa e rápida para tirar vantagens dos pontos fracos do adversário, foram, durante toda a campanha. factores de superioridade táctica do lado dos alemães, factores nitidamente evidenciados neste combate de Tanga, que foi um dos mais decisivos, paralisando os ingleses durante ano e meio, até virem as forças sul-africanas sob o comando do General Smuts, em 1916. A qualidade das tropas dominou a quantidade, na proporção de um para seis; é o ensinamento que se colhe neste, combate cujo êxito deveremos atribuir à instrução do Comando, dos graduados e das tropas alemãs. Para o conjunto da campanha na África Oriental, em resultado do combate de Tanga em a de Novembro de 1914, o ano de 1915 pode considerar-se neutro.

A 2.ª EXPEDIÇÃO A MOÇAMBIQUE (1915)

Acompanhou a 2.ª expedição a Moçambique o Governador Geral, Álvaro de Castro, capitão de infantaria, bacharel em direito e professor das escolas militar e colonial, entusiasta republicano desde rapaz no Colégio Militar, sugestionado pela História dos Girondinos, de Lamartine e pelas estrofes inflamadas de Vítor Hugo. Álvaro de Castro, que já fora ministro e presidente do conselho, estava nessa época na plenitude das suas faculdades, com 36 anos, e tinha a grande ambição de bem servir a República, a qual apaixonadamente identificava com a Pátria.

0 comandante da expedição, major de artilharia Moura Mendes, era um oficial disciplinador, mas não tinha experiência colonial, nem temperamento ou preparação para as responsabilidades que um tal comando exigia. Extraviou-se o seu relatório de campanha, o que é lamentável, embora se não saiba até que ponto elucidaria.

Álvaro de Castro

Dr. Álvaro de Castro,
Governador geral da Colónia

0 relatório e a correspondência do Governador Geral, Álvaro de Castro, constituíram a fonte mais valiosa para colher uma ideia desse momento histórico, que em Moçambique antecede a declaração de guerra e vai até à primeira tentativa de passagem do Rovuma.

Como em geral tem sucedido, o Governador Geral embarcou sem instruções do ministro. Foi então muito laboriosa a colheita de informações para se improvisar novo plano de campanha. À data da declaração de guerra, em 9 de Março de 1916, diz no seu relatório o governador, «o comandante da expedição nada me dissera ainda sobre a situação militar da fronteira, sobre o plano a adoptar em qualquer caso superveniente, ou sobre os reforços necessários.» 0 Governo da Metrópole, só após a declaração de guerra e conforme as propostas do Governador Geral, define a sua atitude num telegrama datado de 30 de Março, «julgando conveniente ao interesse nacional e nossa própria defesa, invadir e ocupar a colónia alemã até Rio Rufigi, sem prejuízo de ulterior cooperação com os ingleses ao norte do Lago Niassa.»

0 núcleo da 2.ª expedição foi o 3.º batalhão de infantaria 21, de guarnição em Penamacor, mobilizado, como as restantes forças, da mesma maneira improvisada e, por isso, sem coesão nem apurada instrução. A expedição, organizada por decreto de 11 de Setembro de 1915 14, seguia de Lisboa no vapor Moçambique, com o Governador Geral que ficou em Lourenço Marques, e desembarcava em Porto Amélia em 7 de Novembro, na época das chuvas, que naquela região caem torrencialmente de Dezembro a Março, sobretudo no litoral. 0 clima de Porto Amélia, local que por tradição era apontado para sanatório, não foi tão favorável às tropas que Ihes não trouxesse um estado sanitário bastante precário, ao fim de dois meses de estacionamento.

A expedição teve a vantagem de aproveitar as instalações deixadas pela anterior e de encontrar já abertas duas estradas para a fronteira que eram, no tempo seco, viáveis para automóveis.

O rio Rovuma

O rio Rovuma, visto do planalto de Namoto

A ocupação da fronteira do Rovuma 15 tinha sido organizada em duas zonas : a primeira, indo desde a foz do Rio Rovuma até à sua confluência com o Rio Lugenda, era uma zona conhecida relativamente à segunda, que se prolongava para poente, até ao Lago Niassa.

A primeira zona foi subdividida em dois comandos militares, um com a sede em Palma outro com a sede em Mocímboa do Rovuma, sendo guarnecidos estes comandos com duas companhias de infantaria indígena da Colónia, outras duas organizadas (ou antes improvisadas) com praças indígenas da Companhia do Niassa que quase não tinham valor militar, e mais cem indígenas do corpo de polícia da Companhia, sendo estes cipais indígenas reservados para a segunda zona, com quinhentos quilómetros de fronteira. Distâncias enormes, somente boas tropas poderiam vigiar com patrulhas os grandes intervalos entre os postos de fronteira, mas nem mesmo a 17.ª companhia indígena, citada no Livro de Ouro da Infantaria 16, que fora destinada para a guarnição da estrema esquerda, junto do Lago, passou além de um quinto do itinerário.

A fronteira entre o Oceano Índico e o Lago Niassa tinha uma frente sinuosa avaliada pelo Comando num desenvolvimento de 900 quilómetros; mas tão vasta frente somente apresenta três zonas de penetração, correspondendo às faixas do litoral do Oceano e do Lago, sendo a central a correspondente ao Rio Lugenda, pelo que as comunicações dessas três zonas deveriam ser guarnecidas à retaguarda, limitando-se a vigilância a patrulhas. A experiência mostrou que para as comunicações se deveria aproveitar a via marítima, pelo Oceano e pelo Lago, enquanto para guardar o vale do Lugenda, se apresentava como centro favorável a Serra Mecula.

Tão grande desenvolvimento de fronteira exigia uma actividade excepcional para ser vigiada com eficácia.

Diz o Governador Geral, Álvaro de Castro: «O destacamento expedicionário de 1915 não estudou a situação militar da fronteira e não preparou a resposta a qualquer eventualidade que surgisse; a declaração de guerra encontrou-o inteiramente desprevenido na sua missão.

«Depois da beligerância declarada, os seus trabalhos de preparação das operações não corresponderam pela qualidade, nem pela rapidez, ao que as circunstâncias exigiam. Tais são as razões do aparecimento das minhas ideias e da sua apresentação, como plano geral de operações.»

Esse plano geral de operações continha os seguintes objectivos:

1.º - Objectivo imediato, a ocupação de Quionga;

2.º - Objectivo militar, cooperar com os ingleses, batendo as forças alemãs;

3.º - Objectivo geográfico e político, obter uma situação internacional que nos desse um lugar de destaque ao lado das nações Aliadas, isto é, ocupar com urgência uma parcela de terreno ao sul da colónia alemã.

O Governador Geral, desde a sua chegada à Colónia, insiste preocupado em dizer para o Governo Central: «Convém não perder tempo, que pode conduzir-nos à mesma situação que Angola 17

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Notas:

1. Conferência no Teatro de S. Carlos em 11de Dezembro de 1886, publicada em 1927 (Imprensa Nacional, Lourenço Marques), pág. 7. (regressar ao texto)

2. Boletim Oficial de Moçambique. Suplemento de 4 de Setembro de 1899 e Boletins n.os 45, 47, 48 e 50. (regressar ao texto)

3. General Teixeira Botelho, História Militar e Política dos Portugueses em Moçambique.
(regressar ao texto)

4. Arquivo Histórico Militar, Boletim, 1930. pág. 95. (regressar ao texto)

5. Além deste batalhão, o destacamento era constituído por 1 bateria de artilharia de montanha, 1 esquadrão de cavalaria e elementos dos serviços de saúde e administrativos. Reforçado por Decreto de 22 de Agosto com oficiais e praças de sapadores mineiros, telegrafistas e administração militar, o seu efectivo elevou-se a 50 oficiais, 1.477 praças e 322 solípedes (0rdens do Exército n.os 19 e 20, de 1914). (voltar ao texto)

6. Portugal nunca foi lesto em madrugar para as proveitosas invenções e descobrimentos na ciência militar. História Política e Militar de Portugal, General Latino Coelho, Tomo 3.º, pág. 6. (regressar ao texto)

7. Sargento enfermeiro naval, Boletim Militar das Colónias, n.º 17, de 1917. (regressar ao texto)

8. Revista Militar, 1928, pág. 484. (regressar ao texto)

9. 10 de Agosto de 1914: Telegrama para o magistrado de Lindi e para o capitão Doering:

«Tratem de arranjar tropas auxiliares para se fazer uma invasão à África Oriental Portuguesa. Informe Songea...»

2 de Setembro de 1914: «0 cirurgião Weck tencionava fazer um ataque de surpresa ao posto português de Maziúa no dia 23 de Agosto. O cirurgião Weck tomou e destruiu o posto português de Maziúa no dia 24 de Agosto. O sargento comandante do posto foi morto.» (Do livro do Tenente Mário Costa, É o inimigo que fila, págs. 115 e 116.)
(regressar ao texto)

10. O art. 1.º do Acto Geral de Berlim de 26 de Fevereiro de 1885, dizia «o comércio de todas as nações gozará duma liberdade completa desde o 5.º grau de latitude norte até à embocadura do Zambeze». (voltar ao texto)

11. Revista Militar, 1920, pág. 411. (regressar ao texto)

12. Idem, 1919, pág. 131. (regressar ao texto)

13. General Von Lettow, Memórias da África Oriental, trad. do Cap. Pais Ramos, pág. 50.
(regressar ao texto)

14. Constituíam-na, além do batalhão de infantaria, 1 batalhão de artilharia de montanha (a 5.ª'), 1 esquadrão de cavalaria (o 4.º do Regimento de  Cavalaria 3), 1 bateria de metralhadoras (a 2.ª do 1.º Grupo), e serviços de engenharia, saúde e administrativos, num total de 41 oficiais e 1502 praças. (0rdem do Exército n.º 15, de 1915). (regressar ao texto)

15. Revista Militar, 1918, pág. 27 «A fronteira do Rio Rovuma.» (regressar ao texto)

16. Livro de Ouro da Infantaria, 1922, pág. 135. (regressar ao texto)

17. Entretanto os alemães continuavam a contar com a neutralidade de Portugal e a confiar na amizade de alguns coloniais portugueses que consideravam germanófilos.

Num telegrama de Morogoro, assinado por Schnee, Governador da Colónia Alemã, em 24 de Fevereiro de 1915, é citada esta frase dum oficial, de Lourenço Marques: «Deixemos esquecer o passado e fiquemos para sempre amigos.»

Um telegrama do mesmo Governador, de Tabora em fins de Junho de 1915, é concebido nos seguintes termos: «O magistrado do distrito de Lindi telegrafou o seguinte: «Stuhldreier, de Porto Amélia, escreve no dia 24 de Junho, dizendo que o Governador Mata Dias foi definitivamente dispensado dos seus serviços e parte no vapor Chinele no dia 30 de Junho. Stuhldreier diz mais que a situação com respeito a rações indígenas em Porto Amélia não é nada favorável. O magistrado do distrito diz que, depois de se ir embora o Mata Dias, não há mais germanófilos.»

E apreciando o sucessor de Mata Dias, a seguinte nota de 12 de Julho de 1915 : «O posto de Quionga informa o seguinte: O antigo Secretário Geral, Abílio de Lobão Soeiro, foi nomeado Governador de Porto Amélia (Companhia do Niassa), e nomeado novo Secretário Geral, em sua substituição o antigo Chefe do concelho de Ibo, Tomás Gamboa Bandeira de Melo. Consta que são ambos pelo lado dos ingleses.»

Um outro telegrama de Tabora, em Agosto de 1915, dizia : « O agente do correio em Palma, devolvendo a mala alemã, informa que os seus chefes, com o consentimento do Governador de Porto Amélia, deram instruções para que a mala da colónia alemã não pudesse ser enviada nem recebida no correio do sul. Fiz ver ao Governador que os portugueses, procedendo dessa maneira, não estavam cumprindo as leis da neutralidade.» (Nota da Direcção -- Do interessante Diário de campanha alemão, que se encontra transcrito no livro já citado do Tenente Mário Costa, É o inimigo que fala.)
(regressar ao texto)

Fonte:  

Coronel Eduardo Azambuja Martins, «A campanha de Moçambique»,
in General Ferreira Martins (dir.), Portugal na Grande Guerra, Vol. 2, Lisboa, Ática, 1934,
págs. 131-142

A ver também:

Portugal na Grande Guerra

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