Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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A Bandarra

A Bandarra

A Bandarra


 

O elegante namorador de 1720 foi o «faceira». A elegante namoradeira foi a bandarra.

Já viram dois gomos do mesmo fruto, duas flores do mesmo ramo, dois bagos do mesmo trigo? Pois não são mais parecidos. Ambos rançosos de francesia, ambos no «chifre da moda», o faceira e a bandarra dir-se-iam a sombra, o espelho um do outro. A mesma varinha de nojo, os mesmos pés de perdiz, os mesmos polvilhos de França, - a mesma alma de assopro. Ela – o encanto dele; ele – o sorriso dela. Deus os fez; o diabo os juntou.

Querem que lhes mostre uma "bandarrinha enfeitada", uma das bandarras mais éres ("éres" queria dizer elegante, no calão das franças) que namorou em Lisboa no tempo de D. João V? Mora ali. Ali adiante, naquela casa caiada, tornejando para a rua do Tronco, andadas as casas do senhor de Barbacena, que servem de Aljube e tiveram pátio de comédias. Vêem aquelas portas fechadas a sete ferrolhos, aquelas janelas entaipadas de rótulas, aquelas adufas onde nem reluz um postigo, aquele Sant'Antoninho capucho, que nos olha, do alto do seu painel de azulejos, com o ar de quem despede visitas? Pois é ali que ela mora. Parece que não há, lá dentro, fôlego vivo. Umas grades de mosteiro; um silêncio da Cartuxa. E, entretanto, é ali que vive, e respira, e gorjeia, com saudades do sol, adivinhando a primavera através das gelosias fechadas, esse passarinho de encerro, pintado de pés, empoado de poupa, alado de donaires que foi, no princípio do século XVIII, a bandarrinha de Lisboa. Alas – Deus do Céu! – porque a aferrolham tanto? Por que é a moda de Portugal. Quanto, mais «menina», mais recatada; quanto mais fidalga, mais recolhida. Em 1720, a mulher portuguesa ainda vivia «à mourisca». Não abria uma rótula; não assomava a uma janela. Passava os dias no estrado, de pernas cruzadas sobre uma esteira, rodeada de criadas e de moças, vendo luzir a maínça do fuso ou cozendo lençóis de três ramos. Fiava, paria, chorava. O vento de França, na sua revoada frívola de polvilhos e de jóias, de leques e de sinais, não conseguira varrer de todo os velhos costumes árabes do lar português. Quando D. João V começou a estrangeirar a corte, ainda as marquesas de Nisa e de Arronches, empertigadas e solenes nos seus guarda-infantes do século passado, eram de opinião que as senhoras fidalgas de Portugal só deviam sair de casa três vezes, – a baptizar, a casar e, a enterrar. Para a bandarra, apesar de mais desempoeirada, a reclusão ainda era nobreza, o recato ainda era fidalguia, o bioco ainda era moda. Quem lhe abriu as janelas quatro vezes ao ano? A Procissão. Quem lhe abriu a porta muitas vezes ao mês? O Lausperene. Quem a ensinou a namorar? A Igreja.

Se na véspera de uma das quatro grandes, procissões do ano – Carmo ou Cinzas, Anunciada ou Corpo de Deus – um pequeno Amor dos tectos de Queluz pudesse tomar corpo e vida, romper a névoa doirada do seu bosque, atravessar os ares num frémito de asas, entrar alta noite pelo quarto de uma bandarrinha e abrir-lhe com os dedos cor-de-rosa as cortinas do leito, – era, certo que lhe encontrava a cama intacta e vazia. A menina não se deitara. Porquê? Por causa do toucado. Como a «frança», em chegando o dia da procissão, queria pendurar-se na janela logo de manhã cedo, – o cabeleireiro tinha de a vir pentear de véspera, armar-lhe o seu enorme toucado de trouxas «à alemoa», enfeitado de amarelo, que era a cor da moda, ou o seu toucado «de grimpa», em crista de galo velho, com mais ferragem que porta de igreja rica e mais fitas do que tinha de bandeiras um navio holandês. E a pobre bandarrinha, para não desriçar o topete e para não desmanchar os «tristes», que eram os caracóis que caíam adiante da orelha, passava toda a noite em claro, ou dormitando assentada num tamborete velho de moscovia, – com a mulata ao lado a acordá-la quando pendia com sono, não fosse, por acaso, cair um polvilho, desfazer-se um melindre, despegar-se uma «mosca». Era nos dias de procissão que a, bandarra se mostrava à cidade: tinha de velar para ser bela, de sofrer para ser «frança». Ainda não apontava o sol, já a criada descia, estremunhada, com a sua coifa de sete ramais e a sua verónica da Senhora do Pilar ao pescoço, a levantar as rótulas, a espertar a casa, a vestir a menina.

– Ai, minha mana, que noite de bruxas!

Vestir uma bandarrinha lisboeta do primeiro quartel do século XVIII! Não havia rito mais solene, liturgia mais complicada, cerimonial mais confuso. Nem uma imposição de barrete, nem um jantar de embaixada, nem uma missa de pontifical. Como não luziam ainda os postigos, acendia-se o candeeiro. A bandarra, embrulhada nas suas roupas de chambre, que se chamavam "camisinhas à húngara" e "roupas de lavapeixe", umas chichelas encarnadas "de bocejo" a dançarem-lhe nas pontas dos pés, levantava-se do tamborete onde passara a noite e vinha espreitar-se a um espelho de gaveta comprado (o que também afidalgava muito) na loja da Chavalhé. Era da loja da Chavalhé que iam os leques, os espelhos e as moscas para o toucador da senhora rainha, – e a bandarria de Lisboa, muito snob como diria Thackeray, muito serolica como se dizia em português, só comprava, onde comprava o Paço. Se o toucado não se tinha esgaivotado coam o sono, se não era preciso polvilhá-lo ou espertar os tristes, – começava então o refresco da pintura e a crena da cara; trabalhavam as tigelas de vermelho; vinham os sinais de tafetá, que a criada lambia e pegava no rosto da menina, – o apaixonado ao canto do Olho, o folgazão na covinha da face, o beijocador no canto da boca, o louquinho na asa do nariz. Quando chegava a hora galante da camisa, a frança, nua como uma Vénus de pano de Arrás, vestia a sua camisinha de holanda sem bigode, quer dizer, sem fita de afobar, para ficar o seio a descoberlo; a criada e a mulata, rindo muito, desnalgadas, ferravam a perna nos quadris da menina e puxavam as fitas do "justilho de barbas"; acocoravam-se depois para lhe enfiar as meias, para lhe apertar as ligas abaixo dos joelhos, para lhe calçar os sapatos «de poleiro» com saltos de perdiz; erguiam-se de pincho, saracoteavam-se, iam buscar-lhe em passo de andor a armação de arame do donaire, bojuda e monstruosa como um sino grande de Mafra; vestiam-lhe a polheira, que era a saia de baixo; enfiavam-lho o guarda-pé e os bambolins; compunham-lhe a palatina "de assopros", descobrindo bem a polpa do seio, porque os frades entendiam que os peitos eram do capítulo e que o decote não era pecado; penduravam-lhe um rosicler no peito, uns brincos de diamantes nas orelhas; davam-lhe a charpa e as luvas, o manguito e o leque, esse pequenino leque que era uma arma terrível de namoro, leve como uma asa, vivo como um azougue, caro como uma jóia, – e enquanto rompia a manhã, enquanto a casaria da rua do Almada se doirava de sol, e o ar fresco da primavera entrava pelas rótulas abertas, e se adivinhava já, florindo a rua, o alecrim cheiroso das procissões, – a bandarra lisboeta, farta de velhas e de frades, Carochinha de todo o ano, livre agora todo o dia, preparava‑se para espreitar, e bisbilhotar, e mexericar, e namorar, chegava com o pé um tamborete, mandava pôr à janela um bufetinho de doces, assomava, bolia na cortina, mirava com desdém, fazia boquinhas de nojo, e ao passar o primeira faceira madrugador, parecia dizer‑lhe lá de cima:

– Quem quer casar com a Carochinha, que é bonita e formosinha? 

Júlio Dantas

 

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