Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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As Cheganças

As Cheganças

Frei Gaspar da Encarnação a dançar


 

Pela assomada de Maio de 1745, toda a gente cantava em Lisboa, regateiras e maranhoas, mariolas e negros, casquilhos e sécias, da Ribeira das Naus às escadas do Hospital Real, do postigo de S. Roque às hortas verdejantes do Catavento, uma cantiga que pegara pela cidade como uma labareda:  

Já não se dançam cheganças
Que não quer o nosso rei,
Por que lhe diz Frei Gaspar
Que é coisa contra a lei.

Meninas bonitas,
Moças com fitas,
Casquilhos e abades,
Freiras e frades,
Chorai, chorai, chorai,
Acabou-se, já lá vai.

Não havia dúvida. Estavam proibidas as cheganças. D. João V fizera expedir pelo cardeal da Mota um alvará mandando meter no Aljube e no Tronco todo o picão ou alfamista, toda a fregona ou frança-dama que fosse pilhada a bater cheganças pelas ruas, pelas hortas ou pelas tabernas da cidade. Esse alvará tinha sido inspirado por frei Gaspar da Encarnação, no século Gaspar Moscoso da Silva, irmão do velho marquês de Gouveia já morto, deão da Sé de Lisboa aos vinte anos, reitor da Universidade aos vinte e cinco, professo desde os trinta na religião de S. Francisco e na casa dos missionários apostólicos do Varatojo, e companheiro de infância, amigo íntimo, conselheiro privado do rei. Porquê? Porque mereceu semelhante dança a honra de ser proibida? O que eram, afinal, as «cheganças»? Que tinha que ver com as danças de farta-velhacos o nobre frade varatojano?

Eu lhes conto.

Certa manhã, Frei Gaspar, arredado da corte havia muito tempo, meteu no atado umas bragas de burel, um chiote novo e umas avarcas de bezerro, despediu-se dos padres discretos, enfiou para a liteira da Casa Real que D. João V mandara de cote para o conventinho do Varatojo, e, no passo choutão das bestas, mordendo poeira e sorvendo sol, meteu até Lisboa. Na Malveira, como se lhe desferrasse um macho das mudas, envesgaram, bestas, liteira e frade, por um carreteiro que levava à loja do «Chicória», a um tempo taberna, casa de estalagem e banco de ferrar, à entrada de um souto pequeno de carvalhos. Enquanto um moço remangão, de avental de sola, chamuscado do lume da forja, batia o ferro do cornozelo sôlto, - Frei Gaspar apurou o ouvido para um zangarreio de viola e um tairocar de sócos que vinha da estalagem, assomou à soleira da porta, entestou a mão sobre os olhosencandeados, e espreitou. Um homem e uma mulher dançavam, lá dentro. Alguma das danças vadias da primeira metade do século XVIII, o «arrepia» ou o «arromba», o «oitavado» ou o «Zabel Macau», conhecidas de toda a gente, - até dos frades do Varatojo? Não. Pior do que isso. Era uma dança de abominação e de inferno, tão rebolada de quadris, tão jogada de lombos, tão batida de ventres, que o velho varatojano recuou, afogueou-se, tremeu de indignado, chamou o liteireiro cujo vaqueiro vermelho chamejava ao sol e apontou-lhe os da dança:

- Que ignomínia é aquela, Tomé?

- São as cheganças, reverendo padre.

Frei Gaspar, meneando a cabeça, considerou um instante ainda aquela obra de Satanás; teve, vai-não-vai, um arremesso de corpo para desabrochar a sua cruz peitoral e converter, pregando, os dois perdidos que tairocavam à ilharga da forja; mas o macho estava ferrado: a soalheira queimava; - e o varatojano, a engranzar padres-nosso, acolheu-se à liteira e seguiu viagem. Passaram-lhe à beira do caminho sebes floridas de mato queiró; pinhais escuros, ramalhando, faulhantes de caruma e cheirosos de resina ardida; mais aquém, vinhedos doirados, crestados de pó; por fim, a lezíria verde e imensa, húmida e tranquila, estendida até ao rio imóvel corno tinia solda de, prata derramada: - e frei Gaspar, dentro da liteira da Casa Real, espipado, sonolento, queimado da estamenha, espessa do hábito, pensando vagamente em quadrilheiros; e alcaides, em meirinhos e corregedores, no Ordinário e na Inquisição, enfiou, já no termo da cidade, os caminhos de Santo António do Tojal; meteu ao campo de Alvalade, negro de arvoredos; cruzou o Arco do Cego, cuja silharia caíra para poderem passar os coches de D. João V; desceu às hortas virosas de Valverde, - e branco de poeira, abanando o hábito para arejar as pernas, veio, no chouto dos machos, desembocar ao Rossio. Quando, já sol-posto, passava ao Arco dos Pregos e entrava no terreiro do Paço da Ribeira, - um ruído de machete e de sanfona soou-lhe perto; voltou-se, e entre uma matula negra de mariolas e de mulatos, de soldados e de frades, de ciganas de corriola e de macacos empoleirados a catar gente, viu um alfamista negro e uma regateira de saia de veludo e carnaças de abadessa, voluptuosos, ofegantes, possessos, danando, ancas contra ancas, peneirando-se, coxas contra coxas, como faunos hirsutos a coçarem-se, na primavera, pelos troncos das árvores floridas.

- O que é aquilo, Tomé?

- São as cheganças, reverendo padre.

O furor deu asas ao varatojano. Precipitou-se da liteira, com o atado das avarcas e do chiote às costas; meteu pelo paço; galgou à sala dos Escudeiros; perguntou ao José Vermuéli, criado do duque do Cadaval, se el-rei estava recolhido; pareceu-lhe sentir, ao cruzar os corredores, uns sons vivos e chocalhados de cravo; afastou uma guarda-porta, - e estacou, no limiar, os rosários ramalhando, os olhos arregalados de pasmo. Enquanto um frade trino, de grandes óculos verdes, tocava assentado diante de uma espineta holandesa, um moço da câmara e uma açafata alemã da rainha saracoteavam-se, de quadris unidos, numa dança furiosa.

- Que é isto, Vermuéli?

O criado do duque do Cadaval tossiu, para avisar; baixou os olhos; e, quando a guarda-porta tornou a cair, respondeu:

- São as cheganças, reverendo padre.

Era a grande dança lisboeta do momento, que irrompera bruscamente por terreiros e ruas-sujas, pelos alpendres da Mouraria e pelas hortas do Ducado, que invadira tudo, desde o Mocambo até ao Paço dos reis, batida agora nos socos de pau das maranhoas, tairocada logo nos sapatos de perdiz das «franças», desnalgada, violenta, ignóbil, mas viva, orgulhosa, pitoresca, ondulada primeiro em ritmos de chacoina, rompendo depois em sapateados bravos de fandango, acabando, ventre contra ventre, peito contra peito, no impudor canalha da «fofa» das mulatas e dos negros, - velha avó do fado-batido, em cujo ímpeto sangrento e risonho, convulso e formidável, ardia e cantava a alma fulva da raça. D. João V, paralítico havia três anos, dava despacho na Sala dos Tudescos ao cardeal da Mota, quando Frei Gaspar da Encarnação lhe caiu aos pés, bradando:

- Senhor, que se Vossa Majestade não proíbe as cheganças, está no inferno com elas

O rei cuidou que o frade endoidecera, levantou à órbita o seu óculo de punho de ouro, e enquanto o cardeal ajudava o varatojano a erguer-se, mirou-o numa expressão idiota:

- Mas o que são as chegavas, Frei Gaspar?

- Vossa Majestade não sabe o que são as cheganças, e já as dançam no Paço as açafatas da senhora rainha?

A púrpura do secretário de Estado acudiu, esclarecendo:

- É a dança dos velhacos da Ribeira das Naus, meu senhor.

- Eu não conheço as cheganas, Frei Gaspar, objectou o rei.

- Como queres tu que eu proíba uma coisa que nunca vi?

O varatojano teve um momento de hesitação e de perplexidade. Olhou o rei; olhou o cardeal da Mota, que sorria; falharam-lhe as pupilas; sacudiu um arremesso de ombros, como de quem se decide; mirou as portas, não entrasse alguém; tirou do pescoço a sua grande cruz de missionário; beijou-a; pô-la sobre a mesa do despacho; remangou-se; sofraldou a estamenha do hábito, - e descobrindo as pernas negras, escaneladas, cabeludas, entrou de repente nuns requebros, num dar de lombos, num sapateado de fandango, num saracoteio de nádegas tão desesperado, num tão lastimoso arrancar de chegavas contra o ventre vermelho e aflito do cardeal da Mota, que o rei destampou a rir a trancos, o prelado fugiu pela sala a queixar-se da sua fístula, a gritar pelo óleo de ouro do médico Ortigão, e o varatojano, descomposto. descon          juntado, alagado, felpudo, ofegante, resvalou a arquejar sobre uma cadeira de tapeçaria, as bragas à mostra, a cabeça ourada de vertigens, repetindo:

- Seja pelo divino amor de Deus! Seja pelo divino amor de Deus!

No dia seguinte, era expedido aos corregedores dos bairros o alvará proíbindo as cheganças, e três dias depois toda a gente cantava pelas ruas da cidade:

Meninas bonitas,
Moças com fitas,
Casquilhos e abades,
Freiras e frades,
Chorai, chorai, chorai,
Acabou-se, já lá vai

Júlio Dantas

 

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