Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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O Freirático

O Freirático

O Freirático


 

Querem conhecer a quinta-essência do platonismo no amor português do século XVIII? Aí o têm. É o freirático.

Foi o século XVII que o inventou; foi no tempo de D. João V que ele floresceu. Era um tipo. O amor, como as folhinhas, tem os seus mártires: foram os «devotos de freiras» que se encarregaram de escrever, de 1653 a 1744, datas extremas dos alvarás que os perseguiram, as páginas mais interessantes desse martiriológio. Nunca houve, em amor, ninguém tão escarnecido, tão explorado, e tão pouco exigente como o freirático. Um olhar do coro, uma palavra na grade, um suspiro ao ralo: nada mais desejava, nada mais pedia. Arruinava-se em jóias, em presépios, em capelas para os anjos, em capas para as irmandades; enfiava presentes às «comadres», cruzados às serventes e aos monazilhos; esvaziava a bolsa, vendia a sege, despia a camisa, caía nas mãos dos quadrilheiros e dos meirinhos, do Ordinário e da Inquisição, só pelo prazer ingénuo, pelo inofensivo prazer de poder confessar a um amigo, entre dois risinhos secos e duas cortesias dançadas, que, como o marquês de Gouveia, como o conde de Tarouca, como o morgado da Oliveira, também tinha a sua freira na Rosa, nas Mónicas, no Salvador ou em Sant'Ana.

Mas não se julgue que era apenas a vaidade que levava o amoroso do, século XVIII às portarias e às grades dos conventos. Não. O verdadeiro freirático, o freirático praticante, o freirático sincero, não o era nem por luxo, nem por exibição, nem por moda: era-o por temperamento, era-o por necessidade, era-o por convicção, - era-o por platonismo. Para ele, o amor não existia sem esse profundo sentimento do mistério e do respeito, sem essa intensa e absorvente espiritualidade, sem esse encanto penetrante e religioso, que só se encontram na reclusão inviolada, na beleza oculta e inatingível, na comunhão imaterial de ânsias que não. se confessam, de sorrisos que mal se suspeitam, de beijos cuja maior delícia está na certeza de que nunca sé hão-de dar. Natureza sonhadora e tímida, devota e paradoxal, o freirático não compreendia a mulher senão através da tortura voluptuosa de a adivinhar; só a desejava ardentemente, quando se convencia de que a desejava em vão; não tinha olhos para vê-la senão quando o hábito cinzento de Santa Clara ou o escapulário negro de S. Domingos o impediam para sempre de a ver. Na sua doentia concepção do amor, toda a doura nascia do impossível, todo o encanto provinha do mistério, - e mistério, e impossível, só os encontrava vivos, palpitantes, perturbadores, na escuridão dum locutório pobre de capuchas ou na meia-luz duma grade doirada de bernardas ou de agostinhas ricas. 0 vão das grades era tão profundo, que dois braços estendidos não podiam tocar-se pelas pontas dos dedos; falava-se tão baixo, por causa das gradeiras e das «escutas», que o freirático precisava de ter ouvido de palmo para entender a freira à distância de dez varas castelhanas; todos os contactos eram impossíveis; chegava a ser difícil atirar-se uma flor; a luz era tão pouca, que mal se distinguia, ao fundo do locutório, a sombra espessa dum hábito ou o rengo branco duma toalha. Mas o freirático não exigia mais. O que era nada para os outros, era tudo para ele. Bastava-lhe a contemplação, o êxtase, o murmúrio, um movimento que trouxesse consigo a sombra dum perfume, uma palavra que arrastasse na sua asa um pouco de infinito, - a flor dum sentimento que tudo dá e que nada pede, que tudo sacrifica porque diviniza tudo. Às vezes, nem mesmo a grade lhe permitiam; a própria contemplação lhe era vedada; tinha de resignar-se ao turno e à roda, a ouvi-la sem a ver, a adivinha-la sem a ouvir; colava os lábios à placa de ferro do ralo, crivada de cruzes, e ali ficava horas esquecidas, tardes inteiras, na ilusão dum beijo que só se extinguia, quando a saltimbarca dos quadrilheiros assomava no pátio ou alguma berlinda parava, oscilando no lajedo da rua...  

Freirátícos de Odivelas,
De mil flores entre as galas,
Entram só para cheirá-las,
Porém, não para colhe-las...

Mas - dir-se-á - quantas vezes o pecado violou, nos séculos XVII e XVIII, os muros dos conventos! Quantas portarias se abriram, furtivamente, para deixar passar o manto negro de Sua Alteza o Amor! Em quantos catres humildes de franciscana desfolhou a virgindade a sua coroa de rosas! Quantas vezes os próprios reis, em Santa Clara ou em Odivelas, na Conceição ou em Via Longa, foram buscar a ventres de clarista ou de bernarda a faixa contraveirada de prata das bastardias! Escaladas, raptos, fugas, seduções, escândalos, - de tudo viram essas pequenas celas de bentas e de agostinhas, de brígidas e de capuchas, de dominicas e de cónegas, sobre cujo atril dormiam antifonários iluminados, enquanto uma nuvem de Amores cor-de-rosa corria discretamente as cortinas dum leito... Agora, é o conde do Rio, que entra no mosteiro das Mónicas e passa uma noite cora soror Catarina da Trindade; logo, é D. Luís da Silveira, que escala o convento do Salvador e é preso por ordem do rei; hoje, o velho D. Martinho de Mascarenhas visita a Gamarra na sua cela; amanhã, o conde de Valadares põe, manto e touca para ir falar a uma leiga de Santa Clara; um dia, é o médico do mosteiro da Rosa, que, surpreendido nos braços duma das madres, puxa de uma faca para a abadessa; outro dia, é D. Luís de Sousa, que faz tirocínio para a púrpura de cardeal violando uma noviça, no Porto; mais tarde, é o infante D. Francisco, que vai comer lagostas cosidas no regaço da freira. de Sant'Ana; por fim, são os próprios frades, são os próprios reis; é o provincial de S. Francisco; apanhado, de noite num convento de freiras e desterrado para cem léguas da corte; é o arcediago de Braga, D. António, preso em flagrante com a abadessa de S. Bento de Barcelos; é Afonso VI, que promete a soror Ana de Moura fazê-la rainha de Portugal; é D. João V, que se apeia do seu coche, em Odivelas, para ir ler papeis de solfa com as freiras assentadas nos joelhos.

Mas não façamos aos verdadeiros freiráticos o ultraje de os confundir com os vulgares coureurs de femmes, que passavam, com a mesma facilidade, dos braços duma freira para o leito duma cómica do pátio das Arcas, da pia de água benta para a viola da Cirne e da Martinha, dos tapetes do Paço para os catres do Mocambo e da Madragoa, procurando por toda a parte, grosseiramente, indistintamente, - a mulher. O freirático de convicção, o freirático «que se prezava de discípulo de frei Joanico», não profanava, não caía na baixeza dos amores vulgares; adorava de longe, suspirava de longe; se à freira sorria, baixava os olhos; se a freira avançava, recuava ele; era o D. Quixote das grades, o Palmeirim de Inglaterra das portarias; o seu namoro era um êxtase, a sua alma um Lausperene, o seu delírio uma beatitude. Nos conventos menos rigorosos, nas grades menos profundas, sempre que eram possíveis os contactos furtivos, a maior temeridade que a si próprio permitia era um ingénuo, um tímido aperto de mão, dado com o supersticioso respeito com que se toca uma relíquia, a princípio com a manga do hábito de permeio, depois num longo e comovido contacto, cuja maior volúpia estava, precisamente, na sua infinita espiritualidade. O freirático puro, o freirático de vocação foi essencialmente platónico. Por isso dois séculos inteiros se riram dele. Não compreendiam, não podiam compreender, na sua grosseira e prática sensualidade, o encanto imaterial daquele anseio sem esperança, o êxtase divino daquela paixão sem desejo, a resignação suprema daquele amor sem posse.

Daí, todo o ridículo, todas as perseguições que caem sobre o freirático, nos séculos XVII e XVIII. E precisamente D. João V, o galo de Odivelas e de Via Longa, que se torna o seu pior inimigo. Numa rusga geral aos freiráticos feita em 1742 pelos corregedores dos bairros, são presos oitenta e tantos, diz o Folheto de Lisboa, - «entre eles pessoas de qualidade». 0 rei, em 1744, manda chamar o Geral de Alcobaça e recomenda-lhe a reforma dos mosteiros de bernardas e a caçada universal a todos os freiráticos que os frequentam. E ordenada uma devassa. ('á1 no Aljube meio mundo. E enquanto as cadeias se povoam de fidalgos, de frades, de baetas, de faceiras, de michos, de bandalhos, de estudantes, quase todos apanhados com cartas e retratos de freiras ao pescoço, - D. João v, nas Caldas, já paralítico, o barrete de Santo André Avelino enterrado na cabeça, as mãos descarnadas, o óculo de oiro encostado à órbita, lê voluptuosamente a relação dos presos, e rouqueja para frei Manuel do Sepulcro:

- Cacem mais, cacem mais...

 

Júlio Dantas

 

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