Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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Jogos de Prendas

Um jogo

Um jogo de prendas


 

A partir de 1730, as grandes casas fidalgas de Lisboa começaram a imitar o Paço. D. João V dava comédias e óperas na Sala dos Embaixadores? Dançava com as senhoras titulares? Tocava cravo a rainha? Armavam-se grandes bufetes de doce com a chilacaiota, os caroços de Arouca, os bolos de alforge, o manjar branco de Celas e o toucinho do céu que mandavam de presente a el-rei os frades de Alcobaça? Pois bem. Daí a pouco; as mais nobres casas de Lisboa abriam as suas portas a primos e a parentes. Os serões de família principiaram. Não importava que os velhos pardieiros fidalgos da Lisboa patriarcal fossem, como mais tarde os descreveu Costigan, «casarões armados de panos de Arrás e cheios de buracos de ratos». Saíam das arcas da prata as serpentinas de quatro e de seis lumes; chamavam-se dois músicos, irmãos de Santa Cecília, para tocarem espineta e rabeca; as meninas vinham dos seus estrados mouriscos, encandeiadas das luzes, toucadas e polvilhadas como para janela de procissão ou serenim do paço; os faceiras fidalgos, todos muitíssimo primos, beijavam-lhes as mãos fazendo as cortesias como ensinava o mestre francês de dança Mr. Dupré, morador aos Remolares; e enquanto palravam os papagaios, os negrinhos pinchavam pela sala, e os velhos, de manguitos, tirando as cabeleiras e esmoncando o estorrinho em alcobaças sarapantões, atiravam os dados do gamão, - chegava infalivelmente, chilreado de risos, voluptuoso de contactos, florido de lenços e de leques, o grande jubileu de amor dos serões nobres do século XVIII: o jogo de prendas.

A procissão trouxe o namoro para as ruas: o lausperene trouxe o namoro para a igreja; ao jogo de prendas estava reservada a glória de trazer o namoro para os serões de família. Numa sociedade em formação, como a portuguesa de 1730, que desconhecia os mais nobres prazeres intelectuais, que não sabia conversar que nem mesmo sabia divertir-se, obscurecida, deformada durante um longo século por uma educação de cavalaria e de oratório, - o jogo de prendas foi um achado. Era o passatempo ideal das sociedades sem espírito. Foi, mais ainda do que a dança, mercê das liberdades permitidas nas suas marcas, nas suas sentenças e nas suas penitências, uma verdadeira academia de namoro. Quando chegava o «beijo à capucha», o «abraço de freira», ou o «inferno» trilado de beijos repenicados, as velhas fechavam os olhos, voltavam a cara, engranzavam ave-marias nos rosários, - mas concordavam logo, cabeceando os toucados negros, como mulas de liteira de alquiler, que tudo aquilo estava na «ordenação do jogo». Toda a severidade do Portugal antigo, todos os recatos, todos os biocos da educação jesuítica desaparecia, por encanto, ao formar-se, à volta dum sofá, uma roda de jogo de prendas. Era a mocidade que reclamava os seus direitos, que ressurgia dos lares monásticos do século XVII, que voltava a galantear e a sorrir, a abraçar e a beijar, - como se Tibulo, coroado de rosas, viesse espreguiçar-se sobre os tapetes macios de todos os solares de Lisboa...

- O jogo das Comadres?

- Não, não! Antes o do Toucador...

- O da Cidade de Roma?

- Ai, mana, o da Galinha-cega!

- O dos Tortos, que é tão lindo.

- E o do Conde, que se baila à roda?

- Cá está o anel, minha alma!

- Um chapéu! Venha um chapéu!

- Chaínha, leva o macaco!

- A cadeirinha

- Mana, o periquito!

Tudo se dispunha para o jogo, gralhando, chilreando, rindo. As bandarras fidalgas, pingadas de diamantes, o abanico de seda na mão, assentavam-se, bojando os donaires, com os negrinhos aos pés a comporem-lhes a saia; os faceiras cortejavam de mergulho, sacudiam os mostachos empoados da cabeleira, tiravam os lenços do punho doirado do quitó, e cavalgavam em tamboretes, fazendo meia laranja adiante do sofá das franças. Era o turina mais engraçado que presidia, de pé no meio da roda, uma varinha na mão, o chapéu holandês de três ventos a mamar no sovaco, a boca em assobio, as pernas trocadas como se estivesse fazendo um quarto de hora de estafermo; apontava uma das bandarras, ao acaso da vara ou do coração, e era ela que principiava o jogo, em falsete, a boca escondida no leque, um sinal de tafetá a arrebitar-lhe a asa do nariz, um rosicler de prata na testa, uma trémula de diamantes, buliçosa, a escorrer-lhe do seio:

- «Esta é a cidade de Roma».

Logo o faceira da direita, de casaca de rico encarnado, ceceoso, a mirá-la de soslaio e a morder o lencinho

- «Na cidade de Roma há uma rua.»

- «A rua vai ter à praça.»

- «Na praça há uma casa.»

- «Dentro da casa, um pátio ...»

E a roda continuava, guinchada, corrida em tiple, picada de risinhos, andando sempre pela direita, - agora um frade moço, sanguíneo, sobrinho do dono da casa, cercílio luzidio e cogula de bento; logo uma frança bonita, sorrateira, toucada de amarelo «à alemoa», que se entretinha a chegar o joelho, pouco a pouco, à perna do frade; depois, um chasquinho de peruca, gravata «à corsária», namorador, tatebitate, fidalgo como as mulas de el-rei, blasonando dos caldeiros negros dos Pachecos e da asa vermelha dos Alburquerques; por fim, abades, marqueses; bandalhinhos piscando os olhos, frades trinos em férias, beneficiados da Sé Patriarcal, bandarras dengosas com cães de fralda no regaço e periquitos verdes no ombro, - e atrás, os negros, os macacos, as mulatas da casa, a «Dona Benedita», a «Dona Chaínha», a «Dona Rosa», vestidas de cores, a rir, a gritar, a bater palmas quando a roda do jogo desandava, e o «passarinho Jungia da gaiola, que eslava na mesa, que havia na sala, que dava para a, escada, que descia ao pátio, que pertencia à casa, que estava na praça, que dava para a rua onde se abria a porta da cidade de Roma». Se algum se enganava, se engasgava, se perdia, logo todos se levantavam em sorriada, turinas e francas, bandarras e frades, gritando, matraqueando, rindo:

- Pague prenda! Pague prenda!

O açafate enchia-se de anéis, de rosicleres, de abanicos, de lenços, de broches de pedras, de caixas de rapé, de vidrinhos de água de Córdova, - e vinham então as sentenças, as penitências, «morder um cotovelo», «enfiar urra agulha com os olhos tapados», «pôr os quatro pés na parede», «dizer um verso rindo, outro chorando», «fazer de esquina para lhe pegarem cartazes de comédia nas costas», «beijar uma caixa dentro e fora, sem a abrir»; depois as perguntas, «se a minha boca fosse condessa, que lhe metia dentro?», «se eu fosse lenço, que faria de mim?»; em seguida, a sentença da «berlinda», em que o penitente, faceira ou fiança, metido na berlinda rica da casa quando o jogo era no pátio, numa cadeirinha de arruar ou num tamborete quando era na sala, ouvia todas as impertinências que queriam dizer-lhe os da roda; por fim, as mais deliciosas penitências do jogo, o «beijo à capucha», com a frança e o faceira ajoelhados no chão, de costas um para o outro, inclinando as cabeças para trás até se aflorarem de leve as bocas; o «abraço de freira», em que o casquilho, como se fosse um freirático, era forçado a estreitar a sua dama através das grades de um espaldar de cadeira; o «beijo atrás da porta»; «medir varas»; o «purgatório»; o «inferno», em que uma bandarrinha se assentava nos joelhos dum faceira para ser beijada por outro; - e quantas mais penitências, voando na asa leve dum perfume de beijos e de polvilhos de França, criações ingénuas da grosseira volúpia do século XVIII português, névoas fugitivas de sonho, queie à volta dum sofá, sobre um tapete de Arraiolos, no clarão de meia dúzia de serpentinas de prata, conseguiam transformar um jogo imbecil num paraíso perdido de namorados!

- Que lhe parecem a Vossa Reverência os jogos de prendas? - perguntou um dia a D. José da Glória, geral dos Crúzios, a velha condessa de Pombeiro.

O frade tossiu, tabaqueou a pergunta, alagou os refegos da barba e respondeu de arremesso:

- Uma pouca-vergonha.

Júlio Dantas

 

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