Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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Visitas de Parida

Visita de Parida

Visita de Parida


 

O moço conde de Santiago, recém-casado com a filha dos marqueses de Angeja, D. Josefa de Noronha, passeava inquieto, havia duas horas, numa recâmara de azulejos dos seus paços, quando a comadre entrou gritando, remangada, ofegante, jubilosa, uma vela benta numa das mãos, um registo da Virgem na outra:

- É macho! Alvíssaras, meu senhor, que é macho! Um cordeirinho pascal! Uma rosinha de Jericó!

O conde acolheu-a risonho, lançou-lhe ao pescoço a costumada cadeia de ouro, abraçou o velho criado Bonifácio que se acercara a beijar-lhe as mãos e a chorar de alegria, sobraçou o chapéu, compôs os manguitos de renda, enfiou o espadim num boldrié mais abroxado de prata que os correões dum coche rico, pensou como o castelhano de D. Francisco Manuel – “al tener el hijo quiziera yo hallarme em mi casa, que al nascer poco importa”, - e enquanto descia ao pátio, e falava ao pajem da tocha, e dava esmola a dois frades, e galgava a liteira para ir levar a Sua Majestade a notícia de que lhe nascera mais um fidalgo para o seu serviço, ainda a comadre guinchava em cima, anunciando em falsete, alvoroçando a casa, batendo os chapins arreganhadas nos corredores de tijolo:

- Uma rosinha de Jericó! Um menino Jesus! Mesmo o senhor seu pai tiradinho por feições!

As criadas entravam e saíam do quarto da senhora nos bicos dos pés, ajoujadas com panelas de água quente; vinham lençóis finos de Holanda beguina empilhados em grandes bandejas de prata; amantilhava-se o menino, que atroava o paço de grunhidos, como um bácoro: acendiam-se por todos os cantos velas bentas; arredavam-se arcas, ventós e oratórios, como mandava o Regimento da Feliz Parida, para não chegar ao leito nem um bafo de flores ou de alfazema; faziam-se feitios; recebiam-se frades e ermitões; pendurava-se ao pescoço da senhora um escapulário com uma réla, ou rã verde dos valados seca ao fogo, não fosse o parto acabar em acidente de hidropisia; punha-se uma espada velha à cabeceira do menino, para afugentar as bruxas; ninguém dormia naquela casa, nem a mãe, nem o pai, nem as amas, nem os criados, nem a comadre, - e toda a santa noite se perdia em rezas, em oratórios, em recados, em histórias da carochinha, em adorações à volta do berço como um presépio, nas seges que rodam, na campainha que toca, na família que chega:

- O anjinho de Nosso Senhor!

– E uma pintura da mãe!

- O nariz é Noronha!

-A boca é Sousa!

- Veja os dedinhos, mana!

- Um menino de Santo António!

A pobre mãe só descansava de madrugada. Mas logo em batendo as dez horas entrava no pátio o médico, algum dos maiores mestres do tempo na arte de criar meninos, Manuel da Silva Leitão, de hábito de Cristo ao pescoço, cavalgado na sua mula gualdrapada; ou o Dr. Francisco da Fonseca Henriques, célebre capelo amarelo de D. João V, que arruava já de sege por Lisboa como um médico hamburguês ou um espagírico florentino; ou ainda o licenciado Feliciano de Almeida, parteiro dos bastardinhos, notável por ter feito, três anos antes, a operação cesárea ao cadáver da marquesa de Angeja, D. Ana de Lorena. Sua Mercê despia o menino, examinava-o, tornava-o a amantilhar, enfiava umas ordens à comadre, recomendava à mãe o espírito de meliça bebido em vaso de prata, fazia um discurso acerca dos casamentos fecundos abençoados de Deus, estendia a mão à meia-peça de ouro que lhe pagava os serviços, e vá de galgar à besta ou de meter à sege, rodeado pelo mochilas da casa, para ir pregar, sermão a outra freguesia. Chegava então a vez das criadas, que vinham, de coifa de sete ramais e roca pendurada na cinta, vestir a senhora e paramentar a cama. Penteavam-na de liso, com touca e «tristes» postiços adiante da orelha, tudo sem polvilhos para não entrarem cheiros no quarto; vestiam-lhe camisa de holanda com fitas de picaró azul; por cima, umas roupinhas “à húngara”; uns paspalhões de diamantes nas orelhas; um rosiclér no seio; o seu sinalsinho “apaixonado” ao canto do olho; tirava-se da arca uma colcha da Índia; estendiam-se tapetes de Arraiolos à volta do leito; vinham os bacios de prata que tinham servido a todas as avós, com o quartel das armas do Reino e a quaderna de crescentes dos Sousas, - e ali estava a pobre condessa de Santiago, D. Josefa de Noronha, recostada em almofadas, inquieta de pulso, pronta a sofrer, pelo dia adiante, o maior suplício, a tortura maior que o século XVIII português reservou a todas as senhoras fidalgas que se lembravam de ser mães: as “visitas de parida”.

Uma “visita de parida” era, para as franças nobres da Lisboa de 1740, um divertimento tão grande como um lausperene, uma tarde de comédia, uma janela de procissão ou um serão de ópera no Paço. Mal corria a notícia de que certa senhora dera à luz do mundo um “cóneguinho da Sé” ou uma “freirinha capucha” (no calão das parteiras do tempo), logo todas as amigas lhe caíam em casa, à volta do leito, a saltitar, a palrar, a rir, a dar-lhe parabéns, a trazer-lhe figas, a ver o menino, a bisbilhotar, a perguntar tudo, se tivera uma boa hora, se era macho ou fêmea, se o pai estava em casa na hora do parto, que nome punham “ao cordeirinho”, se o padrinho era o rei, para quando ficava o baptizado, - e a pobre enferma a aturá-las, a rir com elas, a responder a todas as perguntas, a todas as impertinências, a todas as curiosidades, a face afogueada, a cabeça aberta, um frasco de água da rainha da Hungria chegado ao nariz, sem coragem para enxotar do quarto aquela revoada de donaires e de plumas, de perfumes e de abanicos, que tumultuava, que chilreava, que gritava aos papagaios, que ia cada vez mais, que teimava em distraí-la à força, que lhe cantava tonos à viola, que lhe danava minuetes à roda do leito, e que prometia voltar no dia seguinte, e todos os dias, e a todas as horas, até que a triste parida desse o seu primeiro passeio de coche ou fosse, de cadeirinha, beijar a mão a Sua Majestade. A certa altura da visita, quando traziam o cravo para o pé da cama, e se armava o bufete de doces, e começavam as adivinhações espanholas, - vinham assomando os homens graves da família; os frades parentes, todos cheios de Dons, no seu birro de agostinhos, na sua cogula de bentos, no seu escapulário de dominicos, dando a palma da mão a beijar às senhoras; o principal Moura, irmão do conde de Santiago, muito risonho, meio cónego meio cardeal, sofraldando a batina para mostrar as meias vermelhas; todos os primos-franças, aos pulinhos, de casaca de mosquito e quitó de nascer; atrás deles, as mulatas, os bobos, os negrinhos, os cães; e tudo aquilo falava, bezoava, guinchava à volta do leito; todos traziam histórias à parida, notícias da corte, mexericos dos pátios fidalgos; que uma mulher da Holanda tivera cinco filhos dum ventre e o último era lobo; que chegara um bispo e dois diáconos gregos para cantar os Evangelhos na Capela Real; que a mulher do armeiro-mor, D. Maria de Noronha, “tinha uma doença que a fazia andar para trás quando queria andar para diante"; que o diamante da frota de Pernambuco era falso; que Sua Santidade mandara pedir uma arara ao rei; que a abadessa de Santa Ana fugira com um frade capucho; e enquanto, como numa gazeta viva, os fait divers do Paço e da rua, dos mosteiros e das casas nobres, se cruzavam, e animavam, e floriam em volta da grande colcha vermelha da Índia que recobria o leito, - as noivas novas, mulheres do marquês das Minas, do conde de Óbidos, de D. José de Meneses, rodeavam o cravo ou a espineta, encavilhavam da rabeca ou da viola, e aí rompiam, cantadas por solfa, para divertir a doente, as adivinhas castelhanas de soror Inês da Cruz:  

Qual es aquella homicida
Que, piedosamente ingrata,
Siempre en quanto vive, mata.
Y muere quando dá vida?

Lá fora, no pátio, praguejavam liteireiros, mendigos, eguariços, frades; macacos soltos pelos mochilas, empoleiravam-se guinchando nos estribos das berlindas, nos persevões dos coches, no casquilho das lanças, na garupa das bestas; beatas velhas, embiocadas, chocalhadas de rosários, semeadas de breves-da-marca, cantavam ao sol a “ladainha das paridas”; - e quando, à segunda adivinhação castelhana, no meio dum barulho ensurdecedor, francas e faceiras, frades e mulatas se lembraram de olhar para D. Josefa de Noronha, viram-na descair a cabeça sobre as almofadas, cerrar os olhos, abrir da mão o frasco de água da rainha da Hungria e ficar imóvel, silenciosa, branca como cera...

Tinha desmaiado.

Júlio Dantas

 

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