Batalha do Montijo de António Carneiro

General Matias de Albuquerque,
na batalha do Montijo.

 

O CONDE DA ERICEIRA

DOM LUÍS DE MENESES

Este excerto sobre a batalha do Montijo mostra bem a capacidade historiográfica do conde da Ericeira, com a explicação clara do contexto da batalha, da intenção dos actores, e do resultado da acção, tudo num discurso claro e entrecortado de pormenores interessantes, com descrição de acções dramáticas que agarram o leitor, incluindo os discursos das principais personagens, exactamente como os historiadores clássicos o tinham feito e sobretudo Tucídides na sua História da Guerra do Peloponeso.

A BATALHA DE MONTIJO, EM 26 DE MAIO DE 1644

 
Ano de 1644
Entrou o ano de 1644, e logo mostraram em Alentejo as prevenções de uma e outra parte, que havia de ser a guerra mais vigorosa e melhor disputada que a dos anos antecedentes. Mandou el-rei a Matias de Albuquerque, que partisse de Lisboa, onde estava, a continuar o seu Governo. Passou ele logo para Estremoz, levando consigo, além de outros aprestos, dinheiro para pagar aos soldados e para remonta da cavalaria, e certeza de se aumentarem os terços de infantaria com levas novas. Chegando a Estremoz, foi preparando com suma brevidade tudo o que julgou conveniente para conseguir os progressos da campanha futura.

El-rei Católico, sentido das desgraças sucedidas o ano antecedente, mandou retirar o Conde de Santo Estêvão, e entregou o governo daquele exército ao Marquês de Torrecusa, avaliado em Castela por um dos melhores soldados e de valor mais conhecido que serviam aquela Coroa. Saiu ele de Madrid com todas as ordens necessárias para ajustar o exército e aumentar as tropas. Tanto que chegou a Badajoz, determinou, sem perder tempo, acreditar a grande opinião que havia adquirido. Ajuntou 1.500 cavalos e mil infantes e mandou interprender o castelo de Ouguela, de tão pequena circunvalação, como temos mostrado. Não se achavam nele mais que 45 soldados de guarnição, de que era capitão Pascoal da Costa. Chegou o inimigo quando rompia a manhã, e sendo sentido das sentinelas, se preveniram os da guarnição para a defesa do castelo. Arrimaram os castelhanos as escadas que traziam, e juntamente um petardo que levou a porta, que não puderam entrar os que a avançaram; e achando os que subiram valorosa resistência, depois de três horas de porfia se retirara;», deixando as escadas e 20 soldados mortos, e levando muitos feridos.

Teve em Estremoz Matias de Albuquerque esta notícia, e brevemente passou a Elvas a dispor a satisfação. Mandou ao tenente general da cavalaria D. Rodrigo de Castro que, com 2.500 infantes e 260 cavalos, fosse queimar a vila de Montijo; e ao Monteiro‑Mor, que marchasse com 300 cavalos a dar calor a D. Rodrigo. Era Montijo de 300 fogos, rodeada de Lima trincheira muito levantada; tinha de guarnição quatro companhias de infantaria e uma de cavalos, fora os paisanos. Chegou D. Rodrigo a Montijo, e não obstando a defesa dos castelhanos, entraram os nossos soldados as trincheiras e começaram a saquear e pôr fogo à vila, quando apareceram mil cavalos do inimigo, que saíram de Badajoz ao rebate. Retirou D. Rodrigo a infantaria, e chegando o Monteiro‑Mor, marcharam formados a buscar os castelhanos. Não querendo eles pôr o sucesso em contingência, voltaram as costas, e sendo carregados das nossas tropas levemente, por estarem muito distantes, passaram Guadiana, deixando alguns soldados mortos.

Retirou-se o Monteiro‑Mor, e o Marquês de Torrecusa em contraposição deste sucesso mandou entrar um grosso de cavalaria pelo termo de Portalegre, que levou algum gado, não perdoando às vidas dos miseráveis lavradores. Matias de Albuquerque, querendo que os castelhanos sentissem por todas as partes os fios das nossas espadas, ordenou ao mestre de campo D. Nuno Mascarenhas, governador de Castelo de Vide, que fosse queimar o lugar de Membrilho, nove léguas distante daquela praça, abundante, rico e de 100 fogos. Para este efeito mandou incorporar com ele o tenente de mestre de campo general Diogo Gomes de Figueiredo, que levava 300 cavalos e alguns dragões. Com esta gente, a do seu terço e 150 cavalos mais, marchou D. Nuno e, mandando de vanguarda Diogo Gomes, chegou ao lugar que entrou logo, saqueou e queimou, com perda de sete soldados e nove feridos, em que entrou o capitão Inácio Pereira de Aragão. Deste lugar passou Diogo Gomes ao de Soloriño, que achou despovoado, e com grande despojo se tornou a incorporar com D. Nuno. Quando se retiravam, tomaram alguns cavalos de umas tropas que acudiram de Albuquerque.

Passado este sucesso, logrou o Monteiro-Mor outro de muita reputação. Soube que alojava em Vila Nova de Barca Rota D. Francisco de Velasco, tenente general da cavalaria castelhana, com 500 cavalos. Ajuntou outros tantos, alguns dragões e 600 infantes, e marchou para Vila-Nova. Foi sentido antes de ter chegado, e D. Francisco de Velasco montou com todas as tropas, e ocupou um monte distante da vila para a parte oposta da nossa marcha. O Monteiro-Mor, vendo baldada a ocasião de desbaratar estas tropas, mandou ao mestre de campo Eustáquio Pich a reconhecer a vila e castelo. Achou ele o castelo capaz de maiores prevenções, e concordaram todos em atacar a vila que era de 700 fogos, e uma das melhores daquele distrito. Assim se executou, e sendo mal defendida, foi facilmente entrada. Saquearam-na os nossos soldados, e puseram-lhe o fogo, sendo as tropas inimigas testemunhas deste dano, que não custou mais que a vida de um soldado e 16 feridos.

Retirou-se o Monteiro-Mor para Alconchel, nove léguas distante, e dentro de poucos dias passou a Campo Maior a se incorporar com Matias de Albuquerque, o qual, havendo gasto alguns dias em prevenir o que julgou necessário para sair em campanha, se resolveu a buscar caminho de desenganar a confiança do Marquês de Torrecusa. Passou de Elvas a Campo Maior, onde ajuntou 6.000 infantes, 1.100 cavalos e seis peças de artilharia, as munições necessárias e bagagens que levavam mantimentos para vinte dias. Governavam a cavalaria o Monteiro-Mor, a artilharia D. João da Costa, capitães-generais de um e outro troço. Eram mestres de campo de nove terços em que se dividia a infantaria, Aires de Saldanha, D. Nuno Mascarenhas, Luís da Silva Teles, João de Saldanha de Sousa, Francisco de Melo, Martim Ferreira, Eustáquio Pich, David Caley e o terço do Conde do Prado sem mestre de campo, por se achar naquele tempo com ordem de EI-Rei levantando gente no Campo de Ourique. D. Rodrigo de Castro, tenente general da cavalaria, havia ficado doente em Elvas. Compunha as tropas o comissário geral Gaspar Pinto Pestana, e ordenava a infantaria o tenente de mestre de campo general Diogo Gomes de Figueiredo.

Marchou este pequeno exército a Albuquerque com o intento de atacar aquela praça, que consta de três mil vizinhos e contada por segunda da fronteira de Castela. Preveniu este risco o Marquês de Torrecusa, e mandou para Albuquerque o mestre de campo João Rodrigues de Oliveira com 600 infantes e três companhias de cavalos. Chegando esta notícia a Matias de Albuquerque, desistiu da empresa e marchou com o exército a lugar grande e rico, que entrou facilmente e, depois de saqueado, lhe pôs o fogo. O mesmo incêndio padeceram a Puebla e Roca de Mansanete, e destes lugares passou o exército a Montijo. Haviam os castelhanos reparado as trincheiras, e estavam guarnecidas de 300 infantes; porém, penetraram-nas os nossos soldados com o primeiro impulso e sem padecerem grande dano, rendendo-se juntamente os castelhanos que se recolheram à igreja e às casas do Conde de Montijo, unidas a ela. Foi muito grande o despojo, porque o lugar era o mais rico de toda a Estremadura. Não havia até este tempo aparecido na campanha alguma tropa do inimigo; porém constou das línguas que se tornaram em várias praças, que o Marquês de Torrecusa unia em Badajoz as guarnições de cavalaria e infantaria de toda a sua província, e que convocava todos os paisanos que lhe era possível, disposições que evidentemente insinuavam as resoluções de pelejar.

Dois dias se deteve em Montijo Matias de Albuquerque, levado da ambição da glória que esperava conseguir, parecendo-lhe também aquele sítio acomodado para esperar a batalha, se acaso o inimigo o viesse buscar a ele. Vendo que não conseguia esta ideia, pós o exército em marcha com a frente em Campo Maior, de que dista Montijo seis léguas, a 26 de Maio, dia em que a igreja celebrava a festa do Corpo de Deus. A noite antecedente tocou o inimigo várias vezes arma, para obrigar os soldados a que a passassem com pouco sossego, querendo segurar a vitória na sua debilidade.

O Marquês de Torrecusa havia neste tempo unido todas as guarnições pagas, e a elas os paisanos mais capazes dos lugares vizinhos e com uns e outros perfez o número de 6.000 infantes e 2.500 cavalos. Alojou-se esta gente em Lobon, lugar cinco léguas de Badajoz e vizinho a Montijo, situado sobre Guadiana, e parte disposta para observar a disposição e movimento do nosso exército. Houve entre os cabos do exército de Castela diferentes opiniões, porque alguns diziam que marchassem a atacar Olivença, que constava haver ficado com pouca guarnição, e que sem dúvida conseguiriam a empresa, e na praça grande reputação e utilidade. Porém, o Marquês de Torrecusa, de valor conhecido e de natural precipitado, disse: que os rodeios fizeram sempre as jornadas trabalhosas; que ele viera à conquista de Portugal para livrar depressa a El-Rei Católico desta opressão, e que, ainda que os Ministros de Madrid tratavam tão pouco de guerra, que importava tanto que puxando ele em oito dias por todas as guarnições e paisanos com tão eficazes diligências como requeria a atenção que sempre tivera, que era buscar por estrada direita o fim da jornada, intentando desbaratar o exército de Portugal, para reduzir à obediência de EI-Rei sem contradição todas as praças da província de Alentejo, lhe não fora possível juntar mais que 6.000 infantes e 2.500 cavalos; porém, que ainda que este exército era pouco numeroso, excedia muito (conforme as ANO 1644 inteligências e confissão das línguas que se haviam tomado) ao exército de Portugal, por constar só de 6.000 infantes e pouco mais de 1.000 cavalos, sendo além deste excesso tanta a diferença no valor e ciência militar de cabos a cabos e de soldados a soldados, que, antes de atacada a batalha, havia repartido na sua ideia as coroas da vitória. Ouviram todos os oficiais castelhanos que se acharam neste Conselho, com grande satisfação, o intento do seu General, desejando satisfazer-se dos agravos experimentados nas ocasiões dos anos antecedentes; porém, não deixou de os confundir declarar o Marquês de Torrecusa que aquela glória que se havia de conseguir na vitória (que ele contava por indubitável) a não queria para si, escusando-se de não sair em campanha, e a dispensava ao Barão de Molingen, que pouco tempo antes havia chegado àquele exército a exercitar o posto de General da cavalaria.

Tomada esta resolução, saiu de Badajoz com todos os oficiais o Barão de Molingen, com ordem expressa do Marquês de Torrecusa de pelejar com o nosso exército. Chegou a Lobon, onde estavam alojadas todas as suas tropas, e passou logo Guadiana à vista do nosso exército, que marchava pela campanha igual e desembaraçada. Era o Barão soldado valoroso e prático, e levava a D. Dionísio Gusmão, general da artilharia, exercitando o posto de mestre de campo general. Dividiram os dois a infantaria em 9 corpos e a cavalaria em 34 esquadrões, e fazendo de toda esta gente uma só linha com duas peças de artilharia nos dois lados direito e esquerdo da infantaria, levando a forma de uni meio círculo, marcharam a atacar a batalha, porque chegando o mestre de campo D. Francisco de Luna y Carcamo com nova ordem do Marquês para que pelejassem, se resolveu o Barão a não cansar a fortuna mais que com uma só experiência, tomando juntamente por fundamento investir com aquela grande frente, a frente e os flancos do nosso exército, supondo-o desbaratado tanto que o visse confundido. Tão pouco crédito conseguiu naquele tempo a nossa disciplina. 

Enquanto o Barão de Molingen se detinha nestas disposições, marchava Matias de Albuquerque por aquela campanha, com grande vagar, porque levava o exército em batalha. Havia dividido a infantaria em dez corpos e a cavalaria em onze batalhões; com seis ocupava o lado direito o Monteiro-Mor, e com cinco o esquerdo o comissário geral, Gaspar Pinto Pestana, entrando neles 150 cavalos holandeses, governados pelo capitão Piper. Entre as tropas marchavam mangas de mosqueteiros, e as seis peças de artilharia ocupavam os claros dos terços da vanguarda. As bagagens iam cobertas com os carros, e estes guarnecidos com 400 mosqueteiros. A infantaria marchava em duas linhas; a da vanguarda era na marcha a retaguarda, porque o inimigo ficava daquela parte. Caminhavam as carruagens na vanguarda do exército, para que, voltadas as caras ao inimigo (como sucedeu), ficassem na retaguarda dele. Aconselharam alguns oficiais práticos a Matias de Albuquerque que, na consideração da inferioridade do poder, arrimasse o exército a um bosque que lhe ficava pouco distante, e que sem dúvida o ganharia antes que o inimigo chegasse. Porém ele, ou tendo por arriscado presumirem os muitos soldados novos que levava que era receio esta arte, ou entendendo que para vencer lhe não era necessário melhorar de sítio, não quis usar do conselho e continuou a marcha sem alterar o passo nem mudar a ordem.

Eram nove horas, quando os castelhanos chegaram à vista do nosso exército. Matias de Albuquerque, com aspecto constante e belicoso, com alentado espírito e diligência incomparável, mandou fazer alto aos soldados e que voltassem as caras aos castelhanos; proporcionou os claros, compassou as fileiras e perfilou as filas; cobriu com os carros o lado direito do exército e parte da retaguarda; todo o mais corpo ficou descoberto, podendo amparar-se dos mesmos carros, descuido que pôs a vitória em contingência. Guarneceu as bagagens, fez preparar artilharia, e o tempo que o inimigo gastou em chegar a atacar a batalha, teve ele de animar aos soldados com as razões seguintes:

«- Privilégio antigo é da Nação portuguesa não depender de incentivos para as acções grandes. Porém, é necessário, valorosos soldados, que vos lembreis da justiça com que coroastes o Príncipe a que obedecemos, e da tirania com que fomos tratados o tempo que nos dominaram estes mesmos inimigos, que agora temos presentes. Pela primeira razão acharemos «propício ao Deus dos Exércitos que, além de assistir sempre à parte justificada, empenhou no Campo de Ourique a sua palavra na vossa defesa e duração deste Império. A segunda vos obriga a que, valorosos, vos satisfaçais dos agravos 60 anos padecidos. E como a alma, e a honra igualmente são nos portugueses os dois poios da vida, considerada a injúria e presente a causa dela, nem se pode escusar a batalha, nem duvidar da vitória.

Esta é a mesma Nação que nossos antepassados sempre venceram, e estes são os mesmos castelhanos de que nos anos próximos em todas as fronteiras temos triunfado. Vêm eles a pelejar em uma só linha (temeridade nunca ouvida) e a causa é porque não puderam ajuntar mais que a gente que vedes. Peço-vos que resistais o primeiro impulso, e seguro-vos que tereis vencida a batalha, porque não ficam ao inimigo reservas donde se «torne a formar a confusão deste primeiro impulso. Deve lembrar-vos que, com igual exército ao que temos no campo de Montijo, venceu o glorioso rei D. João I no campo de Aljubarrota a el-rei D. João I de Castela, que trazia trinta mil homens. Reparai ultimamente em que o Marquês de Torrecusa fica em Badajoz, não tendo causa que o impossibilite para se achar na batalha, mais que o temor de perdê-la. E se o general do exército inimigo vos confessa na imaginação a vantagem, como podereis vós deixar de conseguir na realidade a vitória?

No sucesso de hoje consiste a conservação de nossas vidas, a liberdade da nossa Pátria e a opinião da nossa Monarquia. Bem conheço do vosso valor, que antes aceitareis morte infalível que vida afrontosa. E não vos peço que observeis as minhas acções, porque fio tanto do alentado espírito que a todos vos anima, que espero achar em cada braço vosso um conselheiro para o mundo e para comigo. E tempo de acreditardes esta opinião. A pelejar, valorosos portugueses, que o inimigo vem chegando! a pelejar, que é o mesmo que manda-vos a vencer!»

Não estava neste tempo ociosa a diligência do Barão de Molingen, porque, enquanto marchava o seu exército com vagarosos passos a atacar a batalha, dizem que falou aos seus soldados neste sentido:

«-O antigo estilo, animosos soldados, de persuadir o valor com razões eloquentes em semelhantes conflitos, perde hoje totalmente o exercício, assim porque sendo nos castelhanos vida o pelejar e o vencer costume, como por serem os contrários, que se nos oferecem, pequeno triunfo apara os nossos braços. Com onze batalhões de cavalaria, como divisamos, trazendo nós trinta e quatro, e com igual número de infantaria, se resolvem os portugueses a esperar a batalha na campanha rasa. E tem tão pouca notícia da arte militar que, tendo carros para cobrir os flancos e a retaguarda, nos deixam para investir desembaraçado o corno esquerdo. Esta desatenção que observo me obriga a levar em uma só linha todo o exército porque com esta estendida e dilatada frente havemos de conseguir investir com tanto poder e tão furiosamente ambos os dois lados do exército dos portugueses, que sem dúvida, ou fugirão as suas tropas antes de avançarmos, ou, se aguardarem, serão desbaratadas, e ficará depois a infantaria fácil emprego dos nossos golpes.

Nesta confiança vos dou desde logo graças do feliz princípio com que me hospedais nesta província, benefício que espero remunerar-vos sendo com Sua Majestade Católica verdadeiro mediador dos vossos interesses depois de restaurado Portugal, infalível consequência da vitória que brevemente conseguiremos. Segui-me todos, antes que os portugueses, arrependidos de aguardar a batalha, nos façam, voltando as costas, menos gloriosa a vitória.»

Respondeu a estas razões a nossa artilharia, carregada de balas de mosquete e palanquetas, com talo furioso impulso e tão eficaz emprego que, penetrando todo o corpo de infantaria da primeira até a última fileira, padeceram os oficiais e soldados excessivo estrago. Não embaraçou esta primeira desgraça o ardor dos castelhanos, porque, tornando-se a compor a infantaria, depois de dispararem as duas peças com pouco efeito, carregou o Barão de Molingen com a cavalaria do seu lado direito as nossas tropas do corno esquerdo, que governava o comissário geral Gaspar Pinto Pestana, a que assistia o capitão Piper com 150 holandeses, os quais, não tendo mais glória que lograr que a da vida, a desprezaram, voltando cobardemente as costas. Cegamente seguiram este exemplo as tropas portuguesas, e, como um desatino arrasta outros maiores, não só desampararam todos o campo, senão que colhendo o costado do terço de Aires de Saldanha, o desbarataram, buscando pelo centro dele caminho o seu temor. Teve o mesmo sucesso o terço de Martim Ferreira, porque os seus soldados novos e pouco destros, arvoraram as picas, conhecendo as nossas tropas, e com esta bisonharia abriram passo à sua ruína.

Os castelhanos, reconhecendo a sua fortuna, entraram com a cavalaria pelo lugar que desampararam as nossas tropas, e, seguindo as mesmas pisadas, penetraram os dois terços que elas haviam desbaratado, e, matando e ferindo todos os que encontravam, foram buscar a retaguarda das nossas tropas do corno direito, que não haviam sido avançadas pela frente, porque o tenente general da cavalaria castelhana D. Francisco Velasco e o comissário geral Pedro Pardo, que governavam as tropas do corno esquerdo dos castelhanos, vendo o grande progresso que o Barão de Molingen havia conseguido, pelos seus passos intentaram alcançar a vitória, havendo também reparado nos carros que cobriam o nosso costado direito. Porém, as tropas que assistiam daquela parte, considerando a batalha perdida, porque viam a infantaria rota e a cavalaria do corno esquerdo retirada, antes de receberem maior dano, se resolveram a salvar as vidas, atropelando os cavalos primeiro a própria opinião que a terra alheia que pisavam. Recolheram-se a um bosque de Xévora, rio que lhe ficava vizinho, para onde Gaspar Pinto se havia retirado.

Os castelhanos, vendo faltar a cavalaria, a artilharia ganhada e a infantaria rota (porque a este tempo todos os nossos terços se haviam confundido), deram a vitória por conseguida, e uns ocupados em despir mortos, outros em roubar as bagagens, se espalharam por toda a campanha. Fora desculpável este seu engano, se fora possível esquecerem-se da valorosa nação com que pelejavam, a qual neste dia, cobrando nova vida, conquistou imortal glória. Matias de Albuquerque, acudindo com invencível valor a todas as partes, lhe mataram o cavalo.  Vendo Henrique de Lamorlaye, valoroso francês, capitão da sua guarda, o risco do seu general, defendendo-lhe a vida às cutiladas e desprezando gloriosamente a sua, se desmontou e lhe deu o seu cavalo, cobrando depressa e galhardamente outro. Montado, Matias de Albuquerque, se uniu com o general da artilharia D. João da Costa, o qual, excedendo a todo o encarecimento, havia pelejado como destríssimo capitão, e como soldado de valor incansável discorria por todas as partes, unindo estes e animando aqueles, e, encontrando-se com um capitão de cavalos castelhano, se investiram; matou-o às estocadas e recebeu das suas mãos uma grande cutilada na cabeça, querendo a fortuna que o mesmo sangue servisse ao seu valor de esmalte e de coroa.

Tanto que se encontraram, ele e Matias de Albuquerque deliberaram restaurar o dano padecido ou sacrificar as vidas a tão glorioso empenho. Ajuntaram-se com os mestres de campo Luís da Silva, João de Saldanha, Francisco de Melo e Martim Ferreira, os quais com valor extraordinário haviam pelejado, e com o tenente de mestre de campo general Diogo Gomes de Figueiredo, que teve grande parte no sucesso deste dia, e tornaram a unir os terços, compondo-se os corpos que formavam dos soldados, de todos eles sem distinção. Com esta gente e 40 cavalos de várias tropas, que ajuntou Henrique de Lamorlaye, avançou Matias de Albuquerque e os que o acompanhavam, com as espadas na mão, contra os castelhanos, que andavam divididos despindo mortos e roubando carros.  Tornaram logo a restaurar a artilharia que haviam perdido, e, fazendo-a D. João da Costa voltar brevemente contra o inimigo, jogou com maravilhoso efeito. Vendo os castelhanos, que eram investidos dos mesmos que julgavam sepultados, se assombraram de sorte que, depois de resistirem alguns menos ocupados do receio, foram todos desbaratados, e não dando a ira lugar à misericórdia, negaram os nossos soldados quartel a todos os inimigos que encontravam.  Marcharam com este furor depois de seis horas de conflito, e obrigaram ao Barão de Molingen a passar Guadiana com nove tropas e três terços, que pôde ajuntar dos que fugiam, e com tanto desacordo se arrojaram os castelhanos ao rio, que muitos levou a corrente. Eram três horas da tarde quando se acabou a batalha. Mandou Matias de Albuquerque tocar a recolher, formou os terços e fez ajuntar os feridos, acomodou-os nos carros, e esteve formado na campanha até cerrar a noite, por que lhe não ficasse circunstância alguma de vitorioso.

Enquanto durou a batalha, se havia ajuntado no bosque de Xévora a maior parte da nossa cavalaria, que se tinha retirado, e havendo entre os oficiais votos que tornassem a buscar o inimigo, antes de tomarem resolução, ouviram disparar a nossa artilharia quando a recuperámos, e, infelizmente, inferiram que era salva com que os castelhanos celebravam a vitória. Obrigados desta suposição detiveram o primeiro impulso, e mandaram oito alferes a reconhecer a campanha da batalha; e como estes, chegando ao exército, viram conseguida a vitória, não tornaram a voltar, e as tropas, tardando-lhes o aviso, se retiraram para Campo Maior.

Matias de Albuquerque, tanto que cerrou a noite, se pôs em marcha, e mandou diante ao mestre de campo João de Saldanha, com o seu terço, a segurar o porto de Xévora, onde Matias de Albuquerque chegou na madrugada do dia seguinte, e achou incorporada com João de Saldanha a cavalaria, que havia voltado de Campo Maior. Depois de algumas horas de dilação, marchou o exército para esta praça, levando menos 900 soldados, entre mortos e prisioneiros. Os mortos de maior posto e qualidade foram os mestres de campo D. Nuno Mascarenhas e Aires de Saldanha, os quais pelejaram largo espaço com valor insigne e acções dignas de eterna memória; João de Saldanha da Gama, capitão de cavalos, estimado em todo o exército pelo grande valor e heróicas partes que era dotado; Bartolomeu de Saldanha, capitão de infantaria, Rodrigo Starch, capitão de cavalos holandês, e os sargentos-mores Jerónimo Ferrete e Belchior do Crato, oito capitães de infantaria e outros oficiais. Os prisioneiros que levaram, logo que se começou a batalha, foram o mestre de campo Eustáquio Pich, os capitães de cavalos Fernão Pereira e o conde Francisco Fiesco, genovês, Manuel de Saldanha, Jorge de Melo e D. Francisco de Almada, capitães de infantaria; Nuno da Cunha e Francisco Correia da Silva, que serviam de soldados, com muitas feridas, e D. Diogo de Meneses, capitão de cavalos, o qual, antes de se começar a batalha, recebeu uma bala em uma perna, que encobriu aos seus soldados, e investiu logo tão valorosamente as tropas inimigas que, rompendo com alguns soldados as que achou diante, veio a cair com cinco feridas mortais na retaguarda de todas, e ficando na campanha toda a noite entre os mortos, foi o dia seguinte despido pelos paisanos de Lobon, e, reconhecendo que estava vivo, o levaram em um carro com excessiva moléstia a Badajoz, onde o curaram com tão pouco cuidado que, depois de um ano que esteve na cadeia da cidade de Carmona, veio a morrer em sua casa das feridas que recebeu na batalha.

Os mais prisioneiros padeceram em Granada os excessos mais escandalosos que em tempo algum se experimentaram entre católicos, prevalecendo o ódio contra a piedade e comiseração de que sempre foram dotados os castelhanos. Perderam eles na batalha os mestres de campo D. José de Pulgar, D. Francisco de Luna, corregedor de Badajoz, D. Diogo Giraldino, irlandês, e João Rodrigues de Oliveira, português; nove capitães de cavalos, quarenta e cinco de infantaria, outros muitos oficiais e mais de três mil soldados. Fora maior a perda se a nossa cavalaria voltara à batalha, como no bosque teve determinado. Recolheu Matias de Albuquerque 4.500 armas dos castelhanos mortos e dos que as largaram quando fugiram.

Esta foi a primeira batalha que depois da Aclamação os portugueses ganharam aos castelhanos; e consideradas as notáveis circunstâncias dela, merece ser celebrada por uma das mais insignes acções que têm acontecido no mundo. Porque poucas vezes se tem visto ficar vencedor exército que no princípio da batalha foi tão desbaratado; e é certo que nem os nossos soldados souberam dar-lhe princípio, nem os castelhanos acaba-la, como depois confessou o Marquês de Torrecusa. De todos os que a ganharam se referem tantas acções heróicas, que é impossível o particularizá-las, e basta o sucesso para elogio de qualquer dos vencedores.

Chegou a nova da vitória a Lisboa, e mandou El-Rei soleniza-la, com grandes festas e, repartindo as notícias pelas nações, cobraram maior reputação as suas armas. O Marquês de Torrecusa não conseguiu maior alívio na desgraça que padeceu o exército que governava que não se haver achado na batalha, e em adivinhar o futuro colheu o fruto das experiências militares que em tantos anos de guerra havia granjeado. Aplicou-se com grande atenção a levantar infantaria para tornar a formar os terços, e a comprar cavalos para remontar as tropas. Uma e outra diligência conseguiu brevemente, acudindo com grande prontidão a remediar o dano padecido.

Vendo-se o Marquês com poder bastante para procurar alguma satisfação, ajuntou 5.000 infantes e 1.800 cavalos, e entregando-os ao Barão de Molingen, o mandou que fosse queimar as aldeias de Santo Aleixo e Sáfara, vizinhas à praça de Moura. O Monteiro-Mor, que já estava em Olivença, teve aviso de que o inimigo ajuntava poder. Deu conta a Matias de Albuquerque, a quem El-Rei, pela vitória alcançada, havia feito mercê do título de Conde de Alegrete (1). Havia ele de Campo Maior passado a Elvas; tanto que recebeu esta notícia, despediu logo a D. Francisco de Sousa, já naquele tempo conde do Prado, e a Diogo Gomes de Figueiredo com os seus terços e duas tropas a guarnecer Moura, fazendo primeiro aviso a D. Henrique Henriques, que governava aquela praça, do poder que o inimigo juntava, para que estivessem prevenidas todas aquelas que recebessem esta notícia. Quando ela chegou a Santo Aleixo, já o inimigo vinha perto da aldeia, e não tiveram os moradores mais tempo para se prevenirem que o que bastou para guarnecer a fraca trincheira que a cercava e um pequeno e mal defendido reduto que rodeava a Igreja. Achavam-se na aldeia 200 homens, que podiam tomar armas, governados pelo capitão Martim Carrasco, e não estavam as aldeias guarnecidas de infantaria paga, porque o Conde de Alegrete havia mandado despovoá-las e passar a gente a Moura, ordem que eles não quiseram executar, fiados na resistência que haviam feito ao inimigo.

 

Fonte:

Conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. II, Porto, Livraria Civilização («Biblioteca Histórica - Série Régia»), 1945; págs. 56 - 70.

Historiografia
O Conde da Ericeira
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