DAS MEMÓRIAS DA GRANDE GUERRA DE JAIME CORTESÃO


Jaime Cortesão foi médico do Corpo Expedicionário Português, durante toda a participação portuguesa na Guerra, actividade que exercerá durante pouco tempo.

Adriano Sousa Lopes
O pintor Adriano Sousa Lopes

O ALMOÇO DO PINTOR

14 de Fevereiro de 1918.

Eu dissera ao meu companheiro

- Ora oxalá não nos suceda alguma.

E revolvia na ideia aquele nosso jantar daqui há dias.

Estávamos a meio e vieram dizer que tinham trazido um morto ali da estrada. Fomos ver. Como era escuro já, tiveram que alumiar. Lá estava o soldado deitado na lama. Quando seguia, aqui perto, pim! uma bala dum-dum de metralhadora entrou-lhe pela boca e estoirou. Trouxeram-no em braços é deitaram-no ali.

Debrucei-me. A sua cabeça era uma massa sangrenta e chata estendida no chão. Lembrava um destes balões vermelhos de caoutchouc com que as crianças usam brincar e que tivesse estoirado. Perdera de todo a forma primitiva e humana. Este milagre de construção que nós trazemos sobre os ombros, estava ali esborrachado sobre a terra, alastrando carne, miolos, sangue.

No dia seguinte veio outro, tal e qual na mesma. Só a bala entrara pelo temporal.

O certo é que a seguir a gente senta-se para comer e custa a engolir o bocado. Temos no olhar o espectáculo do companheiro morto. Depois não é só isso: sente-se não sei que frio cá dentro e lembramo-nos que aquela bala, – hein! - podia ter entrado em nós. E a ideia de que se pode ficar assim, palavra de honra, não é de abrir o apetite.

Pois é verdade. Ainda não lhes disse. Oferecemos ontem um almoço. Mas dia 13... quarta-feira de cinzas... Não vá o diabo tecer alguma ...

E um almoço a um Pintor. Fazem favor de reparar que é com P grande.E

Era ao nosso Pintor da guerra, Sousa Lopes. Já tinha visto, lá pela Lisboa, uma exposição sua, mais que suficiente para lhe ter amor, como se tem a um grande artista da nossa terra.

Mas também lhes digo: se o não admirasse ainda, começava a admirá-lo agora. Porque enfim para pintar a guerra veio fazer os cartões para as trincheiras. Eu vi, eu vi-o na primeira linha, a setenta, oitenta metros do boche sentar-se. num saco e, imperturbável, apontar de crayon em punho, demoradamente.

E vi já os seus esquissos em que os soldados, apenas debuxados, todavia surgem em sofrimento e alma, mas em alma nova, com aquela centelha de revelação profunda de quem viu a Verdade, o que só a trincheira dá.

Tenham a certeza que não são os Franciscos, os Maneis, os Antónios, muito pândegos e piadistas, e um tanto lamechas que teem por aí aparecido em certas páginas. E tenham também a certeza que se ninguém mais os souber dar, como eles são de verdade, pela pena, pela lira, pelo cinzel, esse soldado, o verdadeiro, há-de ficar a tintas nos painéis de Sousa Lopes.

Ele veio cá, e aqui está, vendo, vivendo, sofrendo, para depois pintar. E os outros... Os outros, o melhor é nem falar neles.

Em termos que eu a mai-lo meu colega quisemos ter à mesa do abrigo o nobre camarada dos painéis.

Logo pela manhã foi uma azáfama. Mandámos às compras. Estudámos combinações culinárias. E, assentado o plano com o cozinheiro, mãos à obra. É que não se tem todos os dias à mesa um grande Pintor português. De mais a mais na guerra.

Por consequência pus o capacete, enverguei a máscara, peguei da bengala e fui à Horta Selvagem.

Porque hão de saber agora: nós descobrimos aqui num recanto da planície bombardeada e que há três anos se não cultiva, uma horta, uma velha horta, que em memória do mimo antigo, ergue aqui e além espontaneamente por entre as ervas comuns seu talo de couve, folhuda e agreste.

E. daí, baptizámo-la assim, à horta, com aquele nome à Júlio Verne.

Entendido: isto fica aqui entre nós, pela razão de, que os invejosos são muitos e as couves poucas.

Que digo eu?... Pouquíssimas!... Imaginem que os homens da engenharia construíram pra ali uma Decauville, uma destas Decauvilles das linhas e cortaram-me a horta ao meio.

Pois, senhores, não só me não pagaram a expropriação, como acarretaram as cóleras boches sobre a já minguada propriedade. Resultado: horta bombardeada, couves de pernas ao ar e poucos talos direitos.

Eis o triste quadro, que os meus olhos foram deparar. Vá lá uma pessoa ser proprietário com vizinhos tais.

Apanhei algumas folhas de couve; deitei um último olhar às ruínas de Cartago... quer dizer, da horta, e retirei-me.

E aqui está como o almoço abria com bacalhau, bacalhau vindo de Portugal, acompanhado de batatas... e couves. Nas linhas é opíparo. Estávamos justamente orgulhosos, e foi com mão solene que inscrevemos no menu aquele prato.

Devemos dizer-lhes que eu e o meu colega fizemos um menu. E em verso.

Abria ele por esta quadra que, se não honra os dois poetas, enobrece o pintor:

Bacalhau à Sousa Lopes,
- O fiel, com batatinhas,
Ao nosso Pintor da Guerra,
Que é fiel, pois veio às linhas.

Seguiam-se os outros pratos, cada um com sua oferta em verso. Diga-se todavia, em abono da verdade: as demais quadras não pindarizavam ninguém. Antes pelo contrário: jogavam graças pesadas, a torto e a direito, o que é muito próprio das linhas. Convêm saber que havia mais convidados. Além do Pintor, em honra de quem se dava o almoço, e dos dois médicos anfitriões, assistiam ainda um poeta e um humorista.

E só, para lhes fazer crescer água na boca, sempre lhes digo o mais que se comeu: carne de porco com feijões, bifes com batatas e salada. A regar, vinho comum, vinho do Porto e café.

0 que isto nos custou a conseguir, naquelas paragens, não é fácil contar-se. Daremos uma ideia, se lhes dissermos que um ciclista andou de véspera a fazer compras ri -uma pequena cidade, a duas boas léguas de distância.

A sala, – um abrigo de elefante, onde se não pode estar de pé – tinha sido formosamente engalanada com graciosos festões... de ligaduras:

E, à hora aprazada, apesar de cair a chuva, os convidados compareceram. Almoço animado. 0, cozinheiro, que era o meu impedido, a quem nem esta prenda falta, recebeu os cumprimentos da assistência. E conversou-se muito. Falou-se da guerra, da Arte, de Portugal... De muita, muita coisa.

E não se vá dizer que os artistas comem mal. Oh! não; fizeram as honras ao almoço.

Ora sucedeu que, já no fim do repasto, naquela altura, em que, de perna traçada e abdulia aceso, se prova o Porto e bebe aos goles o café e a conversa se anima e pontevista de fantasia, lá fora, nos rails, a carreta dos feridos raspou, rodando, aqueles guinchos ásperos e lúgubres, que dizem carga pesada.

Eu e o meu colega, por dever de ofício, erguemo-nos instintivamente e sem pedir licença. E os outros seguiram-nos.

A carreta veio de lá rolando e guinchando, té que parou mesmo em frente da porta.

Acaso, não eram feridos.

Estendidos nos dois andares da carreta, estavam três mortos.

Um deles, todo cosido na manta própria, tinha a aparência egípcia de múmia, a nuca em linha direita aos ombros, os ombros em linha direita aos pés. 0 segundo, igualmente cosido no seu invólucro, conservava o mesmo aspecto, com a diferença de que tinha sido inteiramente decepado, rente aos ombros. Do último restavam, dentro duma espécie de saco com a forma e o tamanho dum presunto, qualquer coisa lá dentro que deveria ser como as sobras dum banquete de tigre.

Por muito acostumado que se esteja a estas coisas, de mim senti, talvez também pelo contraste brusco, uma circulação de gelo calafriando o peito e os membros. Os outros não deviam sentir muito menos que isto.

Por seu lado o Pintor estacara ante o quadro trágico. Depois seguiu e andou à volta, olhando fixamente. E olhava, com olhos de quem pinta, mas também com olhos de quem reza.

Os seus olhos brilhavam de piedade, que é a mais alta compreensão; e humedeciam-se de respeito ajoelhado perante as relíquias sagradas do irmão que morreu em combate.

Ao lado, a um curioso, o maqueiro elucidava:

- Foi um morteiro. que caiu no meio dum grupo de homens. Matou oito. O resto inda lá está embrulhado com a lama, na cratera.

Hoje a carreta trouxe mais dois. Pestavam já horrivelmente.

E o maqueiro, encolhendo os ombros, voltou a elucidas:

- Dos outros três, não se aproveita nada.

 

Fonte:
Jaime Cortesão,
Memórias da Grande Guerra (1916-1919),
Porto, Renascença Portuguesa,"Biblioteca Histórica, Memórias II", 1919,
pp.134-140.


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