Busto de Henriques Nogueira

Busto de José Félix Henriques Nogueira

O Município e a Sociedade

 

"O município é destinado a produzir, no século em que vivemos, dois distintos fenómenos. Como unidade administrativa deve ele conciliar, promover e dirigir os interesses de todos os cidadãos que habitarem o seu território. Como fragmento político, cumpre-lhe acompanhar o movimento progressivo de todo o país."

 

José Félix Henriques Nogueira (1823-1858) jornalista, escritor e político, municipalista e iberista, defensor do associativismo e do cooperativismo, precursor da República e adepto do socialismo académico inspirado em pensadores como Charles Fourier, Louis Blanc ou Proudhon, tendo sido considerado “ilustre fundador da moderna democracia portuguesa”, combateu, como afirma Manuel Marques de Almeida, "a multiplicação dos pequenos concelhos, a fim de se evitar a debilitação municipal; a organização do poder desde a base (freguesia) até à cúpula (capital) deveria ser mediada pelos municípios, que deveriam ser tudo ou quase tudo na grande pátria: independentes, grandes, ricos, unidades político-administrativas, unidades económicas e unidades morais."


A instituirão municipal parece ter saído
directamente das mãos de Deus.
A. de Tocqueville, De Ia démocratie

 

1

Os governos nascidos da grande luta que há meio século se peleja entre o absolutismo e a democracia, conservaram, por uma estranha contradição, os vícios administrativos que primeiro deviam ter extirpado. Vencedores da concentração do poder feita pela monarquia, eles não quiseram prescindir desta arma terrível, e dar ás povoações oprimidas e decadentes a vida própria que lhes faltava. Os resultados de semelhante política, são, em toda a parte, funestos.
As capitais crescem desmedidamente à custa da substancia das províncias. Nestas as principais cidades absorvem toda a riqueza dos campos. O estado tributa e consome; o país contribui e definha. O expediente dos mais simples negócios dilata-se e complica-se.

O número dos empregados públicos cresce; o dos funcionários gratuitos diminui. A massa dos impostos, repartida por quem não sabe o que eles custam, é prodigamente gasta. A menor concessão para objecto de utilidade local considera-se especial favor, e, às vezes, serve de instrumento para a corrupção das consciências. A acção governativa resume-se toda nas pessoas dos ministros, que a não podem nem sabem exercitar. A iniciativa para os melhoramentos de maior vulto depende deles, e é algumas vezes a seu pesar, prejudicada. O amor da localidade esfria e morre à míngua de incentivo e animação.

As famílias poderosas desertam as aldeias. A vida independente da agricultura é trocada e vendida pelo furor dos empregos. A povoação rural escoa-se para as oficinas das cidades, e deixa inculta a terra dos seus maiores. O povo sem escolas, sem comícios, sem discussão, sem leitura, fica privado de educação política. O egoísmo enraíza-se no coração de todos; o amor da pátria e da humanidade é um sentimento desconhecido. Assim exangue, a sociedade existe à mercê da tirania.

Derrocados os elementos de resistência a quaisquer planos liberticidas, uma facção insignificante, mas audaz, pode ditar a lei a todo um país. A centralização absoluta, cega, omnipotente, é, pois, como acabamos de mostrar, um gravíssimo mal. Mas estará o remédio no extremo oposto, na descentralização também absoluta, anarquia, caprichosa? Vejamos.

A reacção contra o sistema centralizador, aliás tão justificada e necessária, tem, como todas as reacções, os seus excessos. A centralização trouxe à sociedade europeia grandes bens. Tais foram a unidade de leis, a generalidade de tributos, a igualdade de pesos e medidas e a abolição de uma infinidade de barreiras, que impediam o comércio interior dos povos. O regime da descentralização, levado ao seu ponto de partida ou às suas .extremas consequências - a completa independência da localidade - produziria péssimos efeitos, retardando aqui, embaraçando acolá, auxiliando raras vezes a marcha uniforme, progressiva, constante da civilização. Que força, a não ser a da lei comum, poderia dominar e transformar os movimentos encontrados, irregulares e bruscos de milhares de rodas postas no mesmo pé? Ambos os sistemas que acabamos de comparar fizeram o seu tempo, e estão julgados pela historia. Quanto a nós, o caminho que convém seguir, dista tanto de um como de outro extremo. A organização de grandes municípios bem regidos, bem dotados, bem fomentadores da industria, bem zelosos pela educação publica será por ventura, nesta primeira quadra, o recurso eficaz a que têm de recorrer povos e governos.

2

O município é destinado a produzir, no século em que vivemos, dois distintos fenómenos. Como unidade administrativa deve ele conciliar, promover e dirigir os interesses de todos os cidadãos que habitarem o seu território. Como fragmento político, cumpre-lhe acompanhar o movimento progressivo de todo o país; executar a lei comum; dar e receber auxílio nas suas relações com o estado; e, finalmente, inspirar e engrandecer, pelo amor às próprias coisas, o alto amor às coisas da pátria, sob cujo influxo as primeiras se produziram. O município não legisla, mas concorre para a confecção das leis por via dos seus representantes. Faz sim os regulamentos adaptados á localidade, e delibera desassombrado no limite das suas atribuições. Tem os braços livres, completamente livres para o bem; mas encontra obstáculos, se atentar contra a harmonia dos interesses gerais. Considerado na sua administração interna, o município procura conservar um justo equilíbrio na protecção dos diversos ramos de trabalho, na distribuição das obras de utilidade comum, na propagação do ensino por todos os lugares o na prestação de comodidades de todo o género, tanto aos Habitantes da cidade ou vila, como aos mais remotos aldeões. Se parece enriquecer de preferência a sua série, pela construção de vastos edifícios e pela fixação de importantes estabelecimentos, não o faz senão pela conveniência de todas as outras terras, que à sombra daquelas instituições hão-de ir prosperando sucessivamente.

O município não pode ter um corpo vigoroso, sem alimentar, por uma proporcionada repartição de sangue, todos os seus membros. Nem a cidade absorva toda a substância dos campos, nem os campos obstem ao necessário desenvolvimento da cidade. É o caso daquele judicioso apólogo de Menenio Agripa, no Monte Aventino, que poderosos e humildes nunca deviam esquecer.

3

O município organizado liberalmente, segundo os princípios que deixamos esboçados, poderia talvez salvar o nosso país, de iminentes catástrofes, pela cura dos males que necessariamente as há-de provocar. Restaurando as amortecidas forças da indústria, por toda a superfície do território, criaria riquezas enormes que sem a sua influência jamais haviam de existir. Espargindo com mão larga os benefícios do capital, aliviaria milhares de produtores do peso da usura que os esmaga. Derramando copiosamente a instrução prática, dotaria as classes numerosas da sociedade com os meios de honesta subsistência. Protegendo os infelizes e cuidando do futuro dos pobrezinhos, consolidaria a fraternidade que o egoísmo continuamente dilacera. Premiando as boas acções e corrigindo as más, prestaria a homenagem devida á moralidade publica. Interpondo-se entre as exigências dos cidadãos e as impossibilidades do governo, não raro conseguiria ocorrer às primeiras e aliviar de embaraços o poder central. Deferindo a maior parte dos seus cargos a funcionários gratuitos, obteria um serviço geralmente zeloso e económico. Escolhendo para os seus cargos retribuídos homens de provada aptidão e honradez, reuniria todos os elementos de servir bem e utilmente os interesses dos cidadãos. Quinhoando como de justiça deve quinhoar uma parte do rendimento do Estado, cuja porção é, ficaria habilitado a custear as suas consideráveis despesas. Fazendo subir os bens próprios ao melhor estado de granjeio, e empreendendo certos ramos de industria era suas oficinas e terras, poderia, finalmente, dar um notável desenvolvimento às próprias rendas e aos lucros particulares. Mais longe veremos o modo pratico de obter estas vantagens; por agora baste-nos tão-somente mencioná-las.

4

Chegados a este ponto indaguemos as resistências prováveis que a reforma municipal, tal como a aconselhamos, tem de vencer, ou diante das quais tem de estacar até que o tempo lhe faça justiça, se alguma merece. Esperamo-las nos preconceitos do povo e nas tradições do governo.

Os interessados nos abusos do regímen actual hão-de carpir ao povo os perdidos brasões do concelho extinto. Hão-de pintar-lhe com sombrias cores o abandono e a subsequente ruína dos paços da vila. Hão-de exagerar-lhe as dificuldades no trato dos negócios em povoação mais distante. Hão-de encarecer-lhe a bondade da justiça de ao pé da porta, feita entre vizinhos e compadres. Hão-de provar-lhe a conveniência da sua casa de misericórdia. ainda que esta feche a porta aos doentes. Hão-de lastimar-lhe que os ofícios da governança saiam de certas famílias, em que têm andado encabeçados de geração em geração. Tudo isto, e mais ainda, hão-de dizer ao povo; menos que o querem lograr. O povo, que é bondoso e sensível, crê-los-á em sua hipócrita linguagem, e não raro fará coro com eles. A verdade, porém, não tardará que rompa, como o sol por entre a névoa em manhã de Agosto, para o esclarecer sobre os seus verdadeiros interesses e a sinceridade dos seus oficiosos amigos. Então a voz pública será unânime em reclamar a união dos pequenos concelhos em um município forte, rico e bem administrado.

Na verdade, as pequenas povoações, fundadas em apertada circunscrição, sem possibilidade de ulterior desenvolvimento, ganham mais em unir-se a outras, do que em conservar uma existência independente, vã, fidalga, que lhes não proporciona as necessárias comodidades. Há no pessoal da administração um certo número de funcionários, que são de mero expediente e inspecção. Interessa-se evidentemente em diminuir o seu número pelo alargamento da respectiva jurisdição. Devem, lambem, existir outros que, pela especialidade dos seus conhecimentos, auxiliem a indústria dos habitantes ou a educação do povo.
Convém, seguramente, aumentar o número deles e retribui-los bem, o que só é possível pelo crescimento dos recursos, resultante da junção das povoações. A experiência confirma esta verdade. Os pequenos concelhos, não só em Portugal, mas em Espanha, França e outros países, têm uma existência miserável. Nenhum monumento de utilidade pública desperta a curiosidade ao viajante. Os humildes edifícios da casa comum, do presbitério e da escola, (quando existe), lá estão para testemunhar a pobreza dos habitantes. Os centros mais consideráveis da povoação, gozam geralmente de melhor regime; encerram obras de arte de alguma importância, e não só atendem às exigências da necessidade, mas ainda às fantasias do luxo. Com o trabalho de séculos as construções das cidades completam-se. As torres de suas catedrais rasgam as nuvens; as fachadas de seus paços respiram grandeza; as arcarias de seus aquedutos destacam na paisagem; as avenidas de suas portas encantam pela formosura das alamedas e jardins. Tudo isto é, por via de regra, filho da união dos moradores de muitas léguas em redor, e às vezes de felizes disposições locais para certos ramos de comércio ou indústria.

Ouçamos as nénias do principal queixoso contra a reforma dos concelhos. O governo, qualquer que seja a sua cor, provavelmente já vista e conhecida, há-de objectar, entre outros motivos, o enfraquecimento da autoridade central e o desfalque nas rendas do tesouro.

Não procuraremos consolá-lo nesta parte, porque nenhuma consolação vale para quem perde autoridade e dinheiro, por pequena ou pouca que seja. Diremos, todavia, que o país tem direito a ser bem administrado, e que, quando os governos não querem, não sabem, ou não podem fazê-lo, razão lhe assiste para, por suas mãos, satisfazer esta necessidade. Acrescentaremos mais, que o país, que sua, lavra, fabrica e do produto de tudo isto enche as arcas do tesouro, deve ver convertida, diante dos olhos, em objectos de imediato interesse, uma certa porção da própria substancia. E' tempo de acabar com o sistema administrativo que faz da solução do mais simples negócio uma teia de aranha inextricável. Deixe-se descansar essa empregadoria ignorante ou corrupta, que nos gabinetes dos altos funcionários decide, sabe Deus como e porque, de coisas que não conhece.

Chame-se a parte inteligente, zelosa e trabalhadora do país ao exame e deliberação das questões que lhe tocam de perto. E já que os governos e as assembleias supremas ocupam o tempo em lutas estéreis ou em transigências vergonhosas, já que em nada mais se pensa senão em preencher as fileiras do exército e os quadros das secretarias, já que o grosso das rendas do tesouro é absorvido por quem não acrescenta com um real a fortuna pública, já que tudo isto assim é e assim continuará por desgraça nossa, durante alguns anos, cuide o país da sua abandonada, da sua miserável administração municipal. Para esta grande, comum o urgentíssima empresa, em que podem e devem dar-se a mão os Homens honestos de todos os partidos, associe o país os seus elementos de energia moral e patriótica. Levante os olhos para as suas montanhas nuas de arvoredo, para as suas charnecas incultas, para os seus rios obstruídos e para os seus caminhos intransitáveis. Observe a imoralidade campeando altiva no seu trono de mortes, roubos e violências, a ignorância dos povos quase tão densa e escura como nas idades barbaras, e os sofrimentos das classes pobres tão agravados e esquecidos, como se os membros delas não fossem irmãos nossos.
Considere o atraso, a rusticidade, a falta de todo o conforto de civilização, que se nota no interior das províncias e mesmo á porta das cidades. E depois de ver-se neste espelho tristíssimo, e ainda mal que tão fiel, levante o país a sua voz poderosa, se a indignação lha não sufocar e reclame, ao menos, sequer na administração municipal, o pleno gozo dos seus direitos e a posse pacifica da sua herança. Senhorios despojados de nossos solares seja-nos lícito viver obscuros, mas felizes nas granjas e casais, que intrusos colonos malbarataram.

 

Fonte: J. Félix Henriques Nogueira, O Munícipio no Século XIX, ed. rev., Lisboa, Typographia de Francisco Luiz Gonçalves (Bibliotheca d'Educação Nacional),  c.1917 (1.ª ed., 1856)

A ver também:

A ler:

  • Vítor Neto, As Ideias políticas e Sociais de José Félix Henriques Nogueira, Lisboa, Edições Colibri (Linhas de Torres - História), 2005, 174 págs.

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