John Locke

John Locke

 

Locke apresentado por Voltaire

 


O exílio voluntário de Voltaire em Londres, provocado pelas perseguições do cavaleiro de Rohan, de que o filósofo não se conseguia livrar, decorreu de Maio de 1726 até ao Outono de 1728. As Cartas Filosóficas, que apareceram em 1734, são produto dessa viagem e forneceram ao público cultivado francês aquilo que ele ansiava: uma descrição sucinta, mas viva, do país vizinho e rival, próspero e avançado. Um país que Voltaire mostrou ser bem diferente da França, que governava o cardeal de Fleury, primeiro ministro do jovem rei Luís XV. Diferente na tolerância religiosa, como Voltaire comprovou em sete das suas vinte e cinco cartas; mas também na ciência e na filosofia. Quanto a Locke, que segundo Voltaire, fez «modestamente» a história da alma humana, «desenvolveu a razão humana como um excelente anatomista explica os mecanismos do corpo». 

As Cartas foram proibidas pelo Parlamento de Paris, considerando o livro «escandaloso, contrário à religião, aos bons costumes e ao respeito devido às Potências», condenando-o ao fogo e mandando prender o autor.


 

Sobre o Sr. Locke

 

Talvez jamais tenha existido espírito mais sábio, mais metódico, um lógico mais exacto que o Sr. Locke; contudo não era grande matemático. Nunca quis submeter-se à fadiga dos cálculos, nem à aridez das verdades matemáticas, que não trazem nada de sensível ao espírito; e ninguém provou melhor do que ele que se pode ter uma inteligência geométrica sem recorrer à geometria. Antes dele, grandes filósofos tinham definido, com exactidão, o que é a alma humana; mas, como não sabiam nada, é bem natural que todos tivessem opiniões diferentes.

Na Grécia, berço das artes e dos erros e onde se levou tão longe a grandeza e a estupidez do espírito humano, raciocinavam sobre a alma como nós.

O divino Anaxágoras, a quem erigiram um altar por ter ensinado aos homens que o sol era maior do que o Peloponeso, que a neve era negra e os céus feitos de pedra, afirmou que a alma era um espírito etéreo, mas contudo imortal.

Diógenes, um outro que tal, tornado cínico depois de ter sido moedeiro falso, afirmava que a alma era uma porção da mesma substância de Deus, o que, pelo menos, era uma ideia brilhante.

Epicuro dividia-a em partes, como o corpo. Aristóteles, explicado de mil maneiras pois era ininteligível, acreditava, segundo alguns dos seus discípulos, que a inteligência de todos os homens era de uma e mesma matéria.

O divino Platão, mestre do divino Aristóteles, e o divino Sócrates, mestre do divino Platão, achavam que a alma era corpórea e eterna; o demónio de Sócrates tinha-o, sem dúvida, informado sobre a verdade. Na realidade existem pessoas que pretendem que, se um homem se vangloriar de ter um génio familiar é, sem dúvida, um louco ou um tratante; mas são pessoas muito difíceis.

Quanto aos nossos Pais da Igreja, muitos, nos primeiros séculos. acreditavam que a alma humana era corpórea, assim como o era Deus e os Anjos.

O mundo está sempre a evoluir. São Bernardo, segundo o P. Mabillon, ensinou, a propósito da alma que, após a morte, ela não vê Deus e apenas conversa com a humanidade de Jesus Cristo; desta vez  não o acreditaram. A aventura das Cruzadas tinha um pouco desacreditado os seus oráculos. Mil escolásticos vieram depois como o doutor infalível, o doutor subtil, o doutor angélico, o doutor seráfico, o doutor querúbico, todos absolutamente seguros de conhecer a alma com exactidão, mas que a explicaram como se quisessem que ninguém percebesse nada.

O nosso Descartes, nascido para descobrir os erros da antiguidade, mas para os substituir pelos seus, levado por esse espírito sistemático que cega os maiores, imaginou ter demonstrado que a alma era o mesmo que o pensamento, como a matéria que, segundo. ele, é a mesma coisa que o espaço; afirmou que pensamos sempre e que a alma chega ao corpo ciente das noções metafísicas, conhece Deus, o espaço, o infinito, tendo todas as ideias abstractas, enfim repleta de conhecimentos que, infelizmente, esquece ao sair do ventre materno

O Sr. Malebranche, do Oratório, admite, nas suas ilusões sublimes, não somente as ideias inatas mas também que vivemos em Deus e Deus não é, por assim dizer, senão a nossa alma.

Muitos pensadores fizeram o romance da alma até que chegou um sábio que dela fez, modestamente, história.

Locke desenvolveu a razão humana como um excelente anatomista explica os mecanismos do corpo. Utiliza, em toda a sua teoria, o facho da física; ousa, algumas vezes, falar afirmativamente; mas também ousa duvidar; em lugar de definir por inteiro o que não conhecemos, examina, por fases, o que queremos conhecer. Toma uma criança no momento do seu nascimento; segue, passo a passo, o progresso do seu entendimento; vê o que tem de comum com os animais e aquilo que a eleva acima destes; consulta, sobretudo, o seu próprio testemunho, a consciência do seu pensamento.

«Deixo, diz, à discussão dos mais inteligentes do que eu. saber se a alma existe antes ou após a organização do nosso corpo; mas confesso que me calhou uma dessas almas grosseiras, que nem sempre pensam, e tenho mesmo a infelicidade de conceber que não seja necessário à alma pensar sempre, assim como não é necessário ao corpo estar sempre em movimento.»

Por mim vanglorio-me da honra de ser, neste ponto, tão estúpido quanto Locke. Ninguém me fará jamais acreditar que estou sempre a pensar; e tão pouco me sinto mais disposto do que ele a imaginar que, algumas semanas após a minha concepção, era uma alma sábia, sabendo então mil coisas que esqueci ao nascer, tendo inutilmente possuído, in uterus, conhecimentos que me escaparam quando deles tive necessidade e que nunca mais pude recuperar.

Locke, depois de ter arruinado as ideias inatas, depois de ter renunciado à vaidade de acreditar que pensamos sempre, estabeleceu que todas as ideias nos vêm através dos sentidos, examina as ideias simples e as compostas, segue o espírito do homem em todas as operações, demonstra como são imperfeitas as línguas que os homens falam, e como abusamos, quase sempre, das palavras.

Por fim considera a extensão ou, mais concretamente, o nada dos conhecimentos humanos. É neste capítulo que ousa adiantar, humildemente, estas palavras: "Talvez jamais sejamos capazes de saber se um ser puramente material pensa ou não".

Este discurso tão sábio pareceu, a mais de um teólogo, uma declaração escandalosa de que a alma é material e mortal.

Alguns ingleses, devotos à sua maneira, tocaram o alarme. Os supersticiosos estão para a sociedade como os poltrões estão para o exército; têm e transmitem o pânico. Gritou-se que Locke queria subverter a religião: contudo não se tratava de religião; era uma questão meramente filosófica, independente da fé e da revelação; tratava-se apenas de verificar, sem azedume, se existe contradição em dizer: a matéria pode pensar e se Deus pode comunicar pensamento à matéria. Mas os teólogos começam quase sempre por dizer que Deus é ultrajado quando não somos da Sua opinião. Parecem-se muito com os maus poetas que clamavam que Despréaux falava mal do Rei porque troçava deles.

O Doutor Stillingfleet criou uma reputação de teólogo moderado por não ter, de uma forma clara, injuriado Locke. Entrou na liça contra ele, mas foi batido, porque raciocinava como um doutor e Locke como um filósofo, instruído pela força e fraqueza do espírito humano, batendo-se com armas de que conhecia a têmpera.

Se eu ousasse falar, depois de Locke, acerca de um assunto tão delicado, diria: os homens discutem, há já muito tempo, sobre a natureza e a imortalidade da alma. Relativamente à imortalidade é impossível demonstrá-la, já que ainda discutimos a sua natureza, e que, seguramente, é necessário conhecer a fundo um ser para decidir se é imortal ou não. A razão humana é tão pouco capaz de demonstrar, por si mesma, a imortalidade da alma que a religião se viu obrigada a revelá-la. O bem comum obriga a que acreditemos numa alma imortal; a fé ordena-o; nada mais é necessário e a questão está decidida. Nem sequer se trata aqui da sua natureza; pouco importa à religião qual a sua substância, desde que seja virtuosa; é como um relógio que nos deram para regular; mas cujo fabricante não nos informou de que material é feito.

Sou corpo e penso: nada mais sei. Irei eu atribuir a uma causa desconhecida o que posso, facilmente, atribuir à única causa secundária que conheço? Neste ponto todos os filósofos da Escola me contrapõem argumentos, e dizem: "Não existe no corpo senão á extensão e a solidez, e não pode existir senão o movimento e a forma. Ora, o movimento e a forma, a extensão e a solidez não podem criar um pensamento; portanto a alma não pode ser matéria".Todo este raciocínio, tantas vezes repetido, reduz-se a isto: "Desconheço em absoluto a matéria; adivinho-lhe, imperfeitamente algumas propriedades; mas não sei se essas propriedades se podem unir ao pensamento; assim, como não sei nada, afirmo que a matéria não saberia pensar." Eis, de uma forma clara, a forma de pensar da Escola. Locke diria com simplicidade a estes senhores: "Confessai ao menos que sois tão ignorantes quanto eu; nem a vossa imaginação nem a minha podem conceber que um corpo tenha ideias; como podeis vós compreender que uma substância, seja ela qual for, tenha ideias? Vós não concebeis nem a matéria nem o espírito; como ousais afirmar seja o que for?"

O supersticioso vem, por sua vez, dizer que é necessário queimar, para o bem das nossas almas, aqueles que desconfiam ser possível pensar apenas com a ajuda do corpo. Mas o que diriam estes se fossem acusados de blasfémia? De facto, qual o homem que ousará afirmar, sem blasfemar, que é impossível ao Criador transmitir à matéria razão e sentimentos? Vede, peço-vos, a que embaraço estais reduzidos, vós que duvidais assim do poder do Criador! Os animais têm os mesmos órgãos que nós, os mesmos sentimentos, as mesmas percepções; têm memória, relacionam algumas ideias. Se Deus não animou a matéria nem lhe transmitiu sentimentos, das duas uma, ou os animais são meras máquinas ou têm um alma espiritual. Parece-me demonstrado que os animais não podem ser simples máquinas. Eis a minha prova: Deus criou-os exactamente com os mesmos órgãos do sentimento que os nossos; então se não sentem nada, Deus fez uma obra inútil. Ora Deus, segundo o vosso testemunho, não faz nada em vão; portanto não fabricou tantos órgãos do sentimento para que este não exista; portanto os animais não são meras máquinas.

Os animais, segundo vós, não podem ter uma alma espiritual; contudo, apesar disto, não podemos dizer outra coisa senão que Deus deu aos órgãos dos animais, que são matéria, a faculdade de sentir, de conhecer, a que chamais instinto.

Então quem pode impedir Deus de comunicar aos nossos órgãos mais ínfimos esta faculdade de sentir e de conhecer, a que chamamos razão humana? Seja para que lado vos volteis, sois obrigados a reconhecer a vossa ignorância e o imenso poder do Criador. Não vos revolteis, portanto, contra a sábia e modesta filosofia de Locke; longe de ser contrária à religião, servir-lhe-ia de prova se a religião disso tivesse necessidade; porque, qual a filosofia mais religiosa que esta, não afirmando senão o que concebe claramente e sabendo confessar a sua fraqueza, que vos diz que devemos recorrer a Deus assim que examinamos os primeiros princípios?

Por outro lado, não devemos jamais temer que qualquer sentimento filosófico possa prejudicar a religião de um país. Os nossos mistérios não temem ser contrários às nossas demonstrações, nem são menos reverenciados pelas filosofias cristãs, que sabem que a razão e a fé são de natureza diversa. Os filósofos nunca estarão na origem de uma seita religiosa. Porquê? porque não escrevem para o povo e lhes falta o entusiasmo. Dividi o género humano em vinte partes: dezanove são compostas pelos que trabalham com as mãos e não saberão se alguma vez existiu um Locke; no vigésimo que resta quantos são os que lêem?! E, entre estes, vinte lêem romances contra um que estuda filosofia. O número dos que pensam é muito pequeno e esses têm o cuidado de não perturbar o mundo.

Não foram nem Montaigne, nem Locke, nem Bayle, nem Spinoza, nem Hobbes, nem Lorde Shaftesbury, nem o Senhor Collins, nem o Senhor Tolland, etc., que trouxeram à pátria o facho da discórdia; foram, na maioria das vezes, os teólogos que, tendo primeiramente tido a ambição de serem chefes de seita, bem depressa ambicionaram ser chefes de partido. Que digo! todos os livros dos filósofos modernos em conjunto não farão tanto barulho no mundo quanto outrora a disputa dos Franciscanos sobre a forma da manga e do capucho.

 

© Editorial Fragmentos.

 

Fonte:

Voltaire,
«13.ª carta», Cartas Filosóficas,
Lisboa, Editorial Fragmentos, 1993, págs. 53-57.

A visitar:

  • Locke na Enciclopédia de Filosofia de Stanford
    Uma enciclopédia de Filosofia dinâmica, produzida pelo «Metaphysics Research Lab» e pelo «Center for the Study of Language and Information» desta célebre universidade californiana.

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