Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

INÍCIO            ARTIGOS

Escudeirar em seco

Escudeirar em seco

A bandarra, a dona velha e o negrinho


 

Há sermão nas Francesinhas ou em S. Bento, na Sé ou na Trindade? A bandarrinha não falta. É domingo e há missa? A bandarrinha sai. Quebra‑se um momento a sua clausura de rótulas e de ferrolhos. O pequeno pássaro de encerro voa da gaiola. É a devoção que a conduz. E o frade confessor que a liberta. É Deus – o Deus paternal e risonho do século XVIII – que a leva pela mão.

Mas imaginam que a frança de 1720 saía à rua, como hoje sai toda a gente, de cara descoberta? Ilusão! Ia mais embiocada, mais encapuzada no seu mantéu do que um farricoco da tumba da Misericórdia. Não se lhe via senão um dedo de testa e o lume dos olhos. Nem mesmo de sege, ou de coche, ou, com mais razão, nessas berlindas abertas chamadas florões, todas vidros e estribos, a bandarra largava o seu manto preto de rebuço. Mas era, sobretudo, quando andava a pé, quando arruava pela cidade, com a dona velha ao lado e o negrinho atrás, que o bioco se lhe ferrava mais para a testa, que o rebuço se lhe aconchegava mais à cara, como capigorra de escolar medroso colhido sem espada fora de horas. Era a moda castelhana das capas amantilhadas, que ficara do século XVII, perseguida e só permitida às parteiras por alvará de 20 de Agosto de 1649, punida com vinte cruzados e cadeia por contrária aos bons costumes e à segurança dos maridos, – e, afinal, reabilitada no tempo de D João V, como hábito de modéstia e de recato, de sossego e de virtude. Singular contradição dos tempos! Em 1650, os oficiais de justiça eram obrigados a desembuçar por suas mãos todas as mulheres que encontrassem de bioco; e em 1720, quem se lembrasse de travar dum mantéu de mulher ia trinta dias para o Tronco e dava dez mil reais para meirinhos e alcaide!

Pobre bandarrinha – dirão – que saía tão pouco, que via sol tão raras vezes, e sempre com a cara tapada no manto! Não. Não tenhamos dó dela. Nunca uma moda feminina perdurou, não sendo do agrado ou da conveniência da mulher. A França usou o bioco, – porque o bioco, nas suas mãos, foi uma arma terrível de sedução. Tapou a cara, – porque percebeu que, estando mais oculta, seria mais cobiçada. 0 seu instinto disse-lhe que, revelando-se menos, perturbaria mais. A mulher que passa é sempre o mistério. A mulher que passa escondida no seu manto, encapuzada no seu rebuço, – é mais do que mistério: é desejo, é tentação. Por isso, quando no ano de graça de 1720, uma Lise ou uma Clóri de manto passava a, caminho da missa, muito tapada no seu rebucilho preto, ramalhando contas, ondulando, saracoteando-se, quase danando no ar doirado da manhã, – era certo que levava atrás dela um faceira, dois faceiras, às vezes três, quando Deus queria um rancho inteiro de salta-pocinhas de cabeleira a la greca,, o chapéu de três cantos empoleirado no sovaco, a mão no peito à melancólica, seguindo-a, espreitando-a, farejando-a, metendo-lhe a cara. No século XVII, era de joelhos pela lama que o chomberga, elegante de Lisboa, seguia a cadeirinha da sua dama; no século XVIII, quando a mulher deixou de ser adoração para se tornar volúpia, o faceira limitava-se a segui-la a pé com muito menos respeito, mas com muito mais comodidade. A esta perseguição galante pelas ruas, a esta forma de namoro em que se ia no rasto duma mulher embuçada, tentando adivinhá-la, dizendo-lhe tolices, acompanhando-a à igreja, cocando-a do adro, seguindo-a às lojas dos italianos, acabando por levá-la a casa e por guardar-lhe a porta, – chamava-se, no tempo de D. João V, escudeirar em seco.

Nada mais fácil, – supor-se há; pelo contrário: nada mais difícil.

Para escudeirar em seco com bom partido, era preciso, antes de tudo, ter graça, – graça natural, respostas prontas, conceitos vivos. Faceira calado era homem morto. Tinha de falar sempre, de papaguear sempre no encalço da embuçada, sem perder o falsete, que inculcava francesia, fingindo de vez em quando um arrotinho, que afidalgava muito; e se a frança se dava por entendida, se respondia num descuido de manto, se se esquivava espreitando, como quem diz segue-me, – era preciso apertar, insistir, dar-lhe troco, redobrar de finezas, de equívocos, deslumbrá-la, estonteá-la, obrigá-la a quebrar caminho, a desfazer o bioco, a parar, a sorrir, – a render-se. Mas onde estava o faceira improvisador, o faceira com espírito bastante para, do Loreto à Sé, do Rossio ao Bairro Alto, das capelas da Ribeira à missa de S. Roque, aguentar esse jogo de lazzi e de conceitos, ter sempre a graça vivaz e a réplica pronta, saber interessar, atrair, vencer pela eloquência, tornar esse passeio um minuto e essa perseguição um encanto? Contavam-se pelos dedos. Eram raros como os melros brancos. 0 faceira vulgar, o casquilho que não confiava nos seus recursos, via-se obrigado a estudar frases, a arranjar narizes de cera, e quando saía de casa, de quitó doirado e chapéu à malbruca, para escudeirar em seco as embuçadas do seu, bairro, já levava de cor um bafio de finezas; um bolor de galanteios do padre Chagas e da Feliciana de Odivelas; que eram “prata quebrada para os encontros”, que passavam de geração em geração, que já todas as bandarras conheciam de pequeninas, que tinham já servido para o namoro das mães, que elas ouviam dez, vinte vezes ao dia numa só volta de bioco, do Lausperene para casa, da missa para os Genoveses, mas – para que escondê-lo? – que tinham sempre para elas o vago encanto, a vaga delícia de todas as mentiras de amor, eternamente velhas e eternamente novas... Que diziam eles? Sempre o mesmo. As embuçadas eram “sol entre nuvens”; as de luto, “crocolidos de nata”; as de leque, “pestes de neve que matam pelo ar”; os olhos pretos, “figas de Cupido”; os azuis, “ciúmes da vista”; os verdes, “morte da esperança”; as mãos eram “jasmins de carne”; os pés, “onças de neve”; se a frança galgava as escadas do Carmo, “eram as de Jacob, por que as subiam anjos”, – e a todos os cantos, a todas as esquinas, para tudo, para todas, em falsete, em tiple, aos trejeitos, aos pulinhos, a mesma frase, a frase eterna, a frase que fazia estacar as mulheres mais virtuosas, como o nome de S. Bento fazia parar as aranhas:

- “É linda, Deus a guarde!”

Se, ao chegar a casa, ao sumir-se na escadinha estreita de rodapés de azulejo, a frança, ainda rebuçada no seu mantéu, vinha abrir o postigo da rótula e espreitar para a rua o faceira que a escudeirava, – não tinha que ver: pegava o barro, cantava a mulata, e era certo o namoro.

 

Júlio Dantas  

Anterior: Namoro de Bufarinheiro Topo da página Seguinte: Namoro de Estafermo e de Estaca

 

 

© Manuel Amaral 2009-2010