Maria de Lourdes Pintasilgo

© Bettmann / Corbis

Maria de Lourdes Pintasilgo, primeira-ministra, em 26 de Setembro de 1979

Discurso de Maria de Lourdes Pintasilgo

Discurso de apresentação do Programa de Governo pela primeira-ministra
do 5.º Governo Constitucional, em 13 de Agosto de 1979

 

 

Maria de Lourdes Pintasilgo apresenta na Assembleia da República o programa do governo a que presidiu. Antiga ministra dos Assuntos Sociais no II e III Governos Provisórios, embaixadora de Portugal na UNESCO, foi chamada pelo presidente da República da altura, general Ramalho Eanes, para dirigir o 3.º governo de iniciativa presidencial, este com um mandato específico de organizar as eleições legislativas intercalares de 1980.

O programa de Governo foi muito contestado, tanto pelos partidos da direita parlamentar, como pelo PS, que o consideraram demasiado programático e propondo-se tomar medidas que extravasavam em muito as competências de um governo de gestão.

 

O Governo a que presido, embora constitucional,
surge marcado pela "transição"

 

Senhor presidente da Assembleia da República, senhoras deputadas, senhores deputados: 

Eis-me perante a Assembleia da República a cumprir o preceito constitucional de apresentação do Programa do Governo. 

Faço-o na plena convicção de que me e concedido um privilégio: expor aos legítimos representantes do povo perante os quais o Governo é responsável as traves mestras de uma actuação e de uma filosofia para o que tenho vindo a chamar de "marcha dos cem dias". 

A decisão, já tomada pelo Sr. Presidente da República, de dissolução desta Assembleia em nada prejudica ou diminui o acto que hoje realizo. Pelo contrário: tenho a consciência de que uma clara transparência - que o mesmo é dizer rigor e profundidade em termos dos objectivos e das perspectivas globais do programa - é exigida ao Governo durante o debate que hoje iniciamos. 

Mais: sabendo a intensa actividade legislativa realizada pela Assembleia na presente legislatura, é-me particularmente grato poder afirmar que o Governo a que presido se honra de poder dar execução às leis aqui votadas, independentemente do conhecimento dos grupos que contribuíram para, em cada caso, se estabelecer uma maioria. 

Na verdade, em democracia o voto não é qualificado, não surge afectado de qualquer coeficiente que ligue a decisão maioritária obtida a um ou outro sector do hemiciclo. E essa neutralidade objectiva do voto e para o executivo mais uma garantia de que, fazendo cumprir as leis, assume a vontade da maioria (garantia que ganha maior força pelo facto de ao longo da historia desta legislatura, a maioria não ter tido configuração monolítica) 

Assim, o que para o Poder Legislativo poderá ter sido um caminho de alianças e confrontos vários - normais e correntes em qualquer Parlamento, torna-se para o Poder Executivo mais uma certeza do não estar, na sua prática, a favorecer nenhuma formação política em detrimento de outras. Que outros factores não houvera e já este era suficientemente forte para postular a total isenção do Governo! 

Julgo, porém, que a Assembleia tem o direito de saber, de forma mais completa, se possível, que imagem tem o Governo de si próprio: que Governo, e como entende sê-lo. As circunstâncias especiais que conduziram à formação deste Governo levantaram, naturalmente, dúvidas quanto à sua natureza e aos seus limites. Não pode o Governo escamotear, perante o povo, tais interrogações. Por isso tenta responder-lhes, à guisa de questões prévias, no I capítulo do Programa, ao enunciar "as referências políticas" em que se enquadra. 

Tendo o Sr. Presidente da República anunciado simultaneamente a realização de eleições intercalares e a formação de um executivo que governasse o País até nova clarificação do equilíbrio das forcas partidárias nascida da consulta popular, o Governo a que presido, embora constitucional, surge marcado pela "transição". 

Transição e não rotura que tal seja bem entendido. O Governo insere-se numa prática e numa interdependência das instituições democráticas exigidas pelo espírito do 25 de Abril que não permitem encará-lo como uma descontinuidade, uma interrupção, um parêntesis na vida democrática. 

Transição que o Governo, sentindo-lhe as limitações, está, no entanto, disposto a aproveitar nas virtualidades que encerra. 

Primeiro, porque tal período poderá ser um "tempo de actuação" útil para os partidos e torças políticas, permitindo a necessária clarificação da vida política portuguesa e, em consequência, a prossecução de um projecto de vida que corresponda, sem temores, desvios ou hesitações, às aspirações legítimas do povo português. Depois, porque, num período de transição, a sociedade em trânsito não é uma sociedade fechada sobre si própria. Escoa-se de um tempo já vivido para se alongar, adentrando-se, num tempo ainda desconhecido 

O Governo de uma tal sociedade tem necessariamente de se projectar para o futuro, agudamente consciente não só de que todas as suas decisões devem ser fermento revitalizador do tecido social da vida e da democracia portuguesas, mas também de que todos os seus actos têm de ser garante da liberdade de actuação dos dirigentes que as eleições intercalares levarem a assumir a condução da coisa pública. Tem este Governo, assim, a firme convicção de que lhe compete preparar, a muitos níveis, as tarefas dos que vierem a seguir. Não considera, de modo algum, os Governos futuros como inimigos ou rivais. Com plena consciência da sua responsabilidade política, procurará gerir as questões do Estado de tal modo que, nem por incúria nem por falta de previsão, esses Governos se venham a encontrar a braços com situações cuja solução esteja fora do alcance das suas possibilidades governativas. 

Um governo de transição supõe ainda outro factor: é que não lhe é dado tempo para procurar, experimentando-as, várias soluções. Tem de gerir, decidir, executar tudo perante um horizonte fixo no tempo. 

Paradoxalmente, é assim um governo de transição aquele que, para poder governar, mais exige à partida um conjunto nítido de valores éticos e políticos que lhe sirvam de referencial e uma concepção eficaz e rigorosa da sua estrutura e funcionamento. 

Ora os valores e referências que norteiam a acção do Governo constam sucintamente do II capítulo do Programa, intitulado "Perspectivas globais da acção governativa". Que me seja permitido indicá-los, antes da leitura que os Srs. Deputados oportunamente poderão fazer, a um tempo, na perspectiva de uma visão colegialmente assumida, que o Governo para si mesmo definiu e na sequência das convicções pessoais de que, ao longo de vários momentos da história destes anos, tenho vindo a testemunhar ao País: 

1 - O Governo considera-se vinculado, pelo seu mandato, de forma prioritária às eleições intercalares. É a esse mandato que vai buscar os vectores determinantes da sua actuação e as perspectivas globais em que os seus objectivos se enquadram. 

A primeira condição para o exercício da governação é neste período, a criação de um clima de serenidade que, para além de proporcionar o enquadramento necessário para que o acto eleitoral se realize com a correcção e a dignidade que lhe são próprios, torne possível que os Portugueses se ponham a si próprios as verdadeiras questões que dizem respeito à sua vida, hoje e no futuro. 

Ora estas questões não se identificam necessariamente com as zonas de confronto rígido em que frequentemente se categorizam as opções. Elas ultrapassam os dilemas meramente ideológicos para se situarem no plano das aspirações, das perplexidades e das motivações que tocam o quotidiano da vida individual e colectiva. 

Pelo seu estilo e pela sua conduta, o Governo procurará, nas breves semanas de que dispõe, contribuir para pôr em relevo outros dilemas bem mais complexos e que estão presentes em todas as formas de regime político, conscientes e democráticas. São esses dilemas, entre outros, a relação entre a economia e os direitos sociais, entre a acumulação e a distribuição, entre a promoção individual e a responsabilidade colectiva, entre a afirmação da identidade cultural de cada povo e a diversificação do seu relacionamento com outros povos. 

2 - O clima de serenidade que é intenção do Governo reforçar não poderá deixar de ser uma atmosfera e vivência de liberdade, querida e consentida, onde mutuamente se enriqueçam as virtualidades pessoais e as aspirações colectivas. 

Atento à inviolabilidade da liberdade de consciência e ao pleno exercício das restantes liberdades fundamentais, o Governo procurará estimular os Portugueses a desenvolverem a capacidade de se situarem criadoramente, sem constrangimentos, face à história que lhes é dado viver. 

Não esquecerá também que a criatividade individual encontra terreno fértil em todas as formas de associação onde estão patentes a comunidade de interesses e de afectos. 

Procurará, assim, dar especial relevo aos espaços e aos gestos que exprimem a originalidade de cada um tentando que se criem e fortaleçam organismos vivos onde a interacção criadora se possa estabelecer. 

Este clima de liberdade pessoal e de grupo é condição para a expressão de uma identidade cultural consciente dos seus valores e dos seus objectivos. Nela repousará a liberdade colectiva que culmina na afirmação inequívoca da independência nacional e nos esforços para a tornar actuante no conserto dos condicionalismos internacionais. Creio bem que, longe já das épocas distantes de um isolamento sem brio, não podemos permitir qualquer submissão a poderes alheios, por mais neutrais que sejam as suas aparências e benevolentes as suas intenções. Onde quer que Portugal está presente, é uma história e um povo - que não se renegam, não se curvam nem se amedrontam. 

[Vozes do PS: - Muito bem!] 

A afirmação das liberdades vai de par, em democracia, com a prioridade atribuída à satisfação das necessidades básicas de cada povo. No contexto português, tal prioridade é claramente afirmada pela Constituição em termos de resposta aos direitos fundamentais dos cidadãos. A consciência desses direitos conduzirá toda a acção do actual Governo, exigindo que a política de produção de riqueza e a sua distribuição sejam subordinadas à satisfação das necessidades que condicionam o dia-a-dia da vida nacional. Altera-se assim a tradicional correlação entre a economia e o social e impede-se que as chamadas "exigências da economia"- invadam todo o campo da decisão política, provocando o estrangulamento dos objectivos sociais prioritários. 

Em termos práticos, isto significa que o Governo procurará, na medida do possível dentro do tempo de que dispõe, minorar o fosso existente entre a camada da população que detém um poder de compra elevado e as largas franjas que não chegam sequer a aceder aos níveis mínimos de subsistência. 

Entender-se-á assim facilmente que a alimentação, a saúde, a habitação, a educação e a segurança social constituam o conjunto de necessidades básicas que merecerão deste Governo todo o esforço que a sua curta duração lhe permitir. 

4 - A preparação do acto eleitoral supõe também a mobilização de todos os recursos humanos para uma maior capacidade de decisão e de empenhamento. Procurará, por isso. o Governo dar incremento á todas as iniciativas em curso e leis em execução que, repartindo a autoridade, reforçam a responsabilidade de cada cidadão e de cada comunidade humana, qualquer que seja a sua dimensão. Valorizar-se-ão, assim, todas as formas de vivência colectiva e democrática que se manifestem em qualquer local ou distrito do continente e das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. 

São as comunidades coesas e homogéneas que modelam a identidade cultural, que salvaguardam e enriquecem o património, que determinam a orientação da produção, que asseguram o modo mais conveniente de se organizarem e estabelecerem as normas da sua convivência. Mas este movimento social legítimo e necessário só será operativo se a ele corresponder um aparelho de Estado capaz de se adaptar às exigências e responsabilidades que daí decorrem. 

Entende o Governo que para tal é indispensável descentralizar de forma clara as decisões políticas e desconcentrar as decisões técnicas. Tal desconcentração permitirá encarar com realismo a diversidade tão rica em potencialidades das várias zonas do País e responder com rapidez às exigências reais e legítimas das populações. 

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados: 

Para além das traves mestras que acabo de enunciar ao nível dos valores, o Programa a que tenho a honra de apresentar traduz, ao nível das estruturas e do funcionamento do executivo, algumas inovações que, embora introduzidas a nível experimental, não deixarão de abrir caminhos para uma mais eficaz gestão da coisa pública. 

Tal é o conteúdo dos capítulos III e IV do Programa, onde se enunciam, respectivamente, objectivos por áreas de problemas e medidas sectoriais a nível político e legislativo. 

Pela primeira vez, a área social e a área cultural aparecem na estrutura do Governo, a par da área económica. Na área social se incluem não só os sectores da saúde e da segurança social, mas também o trabalho, a habitação e obras públicas, os transportes e comunicações. Com tal integração se pretende manifestar o peso da intenção social do Governo relativamente aos ministérios responsáveis por tais sectores. Na área cultural incluem-se os sectores da cultura e da ciência - agora integrados num Ministério - e os sectores da educação e da comunicação social. Também aqui há uma intenção que pretende dar à cultura o carácter pluriforme que necessariamente tem na sociedade moderna. 

Não hesita o Governo em declarar, perante a Assembleia, que esta estrutura está longe de ser uma mera reorganização de sectores, nem tão pouco um qualquer organigrama. Ela destina-se a permitir que o Governo realize a tarefa que lhe cabe relativamente á Administração Pública: descompartimentar para melhor coordenar. 

Ao enunciar no capítulo IV as "principais medidas políticas e legislativas", o Governo não as identifica com o somatório dos programas internos que necessariamente guiarão a acção de cada Ministério. Secretaria de Estado ou serviço público. Houve a preocupação de indicar, de forma selectiva, as medidas que correspondem a opções políticas, abandonando assim o esquema até agora seguido da listagem exaustiva das acções a empreender. Isso permitiu manter a dimensão do Programa dentro dos limites que eu própria tinha dado. 

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados: 

Era minha intenção ter completado o Programa do Governo com uma simples folha que, para mim mesma, apelidei de "exortatória". Não o fiz por escrito, mas faço-o agora. 

Ao expor algumas linhas do Programa do Governo, deixei claras as motivações e as finalidades do compromisso que, com os meus colegas no Governo, livremente assumi. A esta Assembleia - e por ela ao povo português - alguma coisa peço em troca: a participação activa e consciente nas tarefas que nos cabem, porque, homens e mulheres deste país, somos a maior riqueza que ele possui: a tolerância e o respeito mútuo, reparando injustiças, procurando soluções dialogantes para os conflitos, desfazendo os equívocos que facilmente se propagam, nos enleiam, nos comprometem: a confiança nos outros, para além das discriminações, das passividades, das ideias feitas, talvez das calúnias. 

Fora este Governo ocasião de um tal desabrochar de valores e a sua missão estaria cumprida. Por isso um só voto exprimo: que no termo dos cem dias me possa apresentar aqui para dizer que "da obra ousada é minha a parte feita". O "por fazer" é só com os homens e com Deus.

 

Fonte :

Diário da Assembleia da República, 14 de Agosto de 1979, I.ª Série, n.º 93, págs. 3585-3587.

A ler:

  • Luísa Beltrão e Barry Hatton, Uma História para o Futuro. Maria de Lourdes Pintasilgo, Lisboa, Tribuna («Biografias»), 2007 [a ser publicado em Outubro de 2007].

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