DISCURSO DE GEORGE CANNING
Discurso proferido na Câmara dos Comuns britânica, em 12 de Dezembro de 1826
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George
Canning, ministro dos Negócios Estrangeiros britânico e dirigente da Câmara
dos Comuns (Leader of the House of
Communs, uma espécie de ministro dos Assuntos Parlamentares) desde
1822, defendeu perante a câmara o envio de uma força expedicionária
britânica para defender o recentemente estabelecido regime cartista
português das incursões absolutistas dirigidas pelo tenente-general
Manuel da Silveira Pinto da Fonseca, 1.º marquês de Chaves e 2.º
conde de Amarante, que eram apoiadas pelo governo espanhol. O debate
realizou-se em 12 de Dezembro devido ao envio de uma mensagem de Jorge
IV ao Parlamento apresentando o pedido formal de assistência militar
feito por D. Pedro de Sousa, na altura marquês de Palmela, embaixador
de Portugal em Londres, em nome da Regência e com a aprovação das câmaras
instituídas pela Carta. O estabelecimento na península Ibérica em
1820 de regimes liberais combatidos pelos governos da Santa Aliança,
que levou à intervenção, em 1823, do Exército francês em Espanha,
restabelecendo ali o regime absoluto, tinha levado George Canning a
definir uma linha política que o próprio descreveu, numa segunda
intervenção, na continuação do debate, com uma frase que ficou célebre:
“chamar à coação o mundo novo para ajustar a balança do
velho". A
decisão favorável das câmaras britânicas ao pedido de apoio foi
apresentada por D. Francisco de Almeida, futuro conde de Lavradio,
ministro dos Negócios Estrangeiros, às câmaras portuguesas em 19 de
Dezembro. A divisão comandada pelo general William Clinton, oficial que
tinha participado na Guerra Peninsular, que se tinha concentrado em
Plymouth e em Portsmouth a partir de dia 11, chegou ao Tejo em 24 de
Dezembro de 1826 e reembarcará em 2 de Abril de 1828 por ordem de D.
Miguel, que entretanto passara a deter o governo de Portugal e se
preparava, assim, para assumir o poder absoluto. Apresenta-se uma parte do muito longo discurso de Canning à Câmara dos Comuns britânica. |
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«Vamos voar em ajuda de Portugal, independentemente de quem o atacou, porque é nosso dever fazê-lo, e deixaremos de interferir quando terminar essa obrigação.»
Senhor Presidente1, Ao
propor à Câmara dos Comuns o agradecer o benigno discurso de S. M., e
responder-lhe em termos que sejam o eco dos sentimentos e o
desempenho das suas esperanças, estou persuadido de que apesar do quanto
confio na justiça e clareza da medida que a mensagem compreende, na
qualidade de ministro britânico me cumpre, recomendando a Câmara dos
Comuns qualquer passo, que mesmo se aproxime ao risco de uma guerra, o
usar da linguagem da mágoa e do sentimento. Posso
assegurar a Câmara que não há ninguém neste recinto mais vivamente
convencido de que os ministros de Sua Majestade, nem indivíduo algum mais
intimamente persuadido do que eu, que agora tenho a honra de vos falar, da
vital importância da continuação da paz para este país e para o mundo.
Tão fortemente me acho convencido desta opinião e isso por motivos que
explicarei antes de me sentar que eu declaro não haveria questão alguma
de dúvida, vantagem actual ou antecipação de remota dificuldade, que eu
não preferiria pôr de parte, ajustar ou diferir antes do que rogar a sanção
da Câmara dos Comuns a qualquer medida que pareça ter uma tendência
hostil. Porém os meus sentimentos são os mesmos que têm tido os
melhores estadistas da nação, e os parlamentos que os apoiavam. Vejo que
há duas causas, e só duas, com que se não pode transigir, nem podem ser
diferidas: estas causas são a boa fé e a honra nacional. Se
eu não considerasse que a presente questão compreende estas duas causas
não falaria a Câmara como agora o faço, plenamente confiado em que a
mensagem do trono achará da parte da Câmara aquele acolhimento que Sua
Majestade antecipou. A
fim de apresentar a questão ao conhecimento do Parlamento do modo mais
breve antes de entrar em considerações colaterais que a acompanham, peço
licença para declarar que é esta uma questão mista de direito e de
facto – de direito das gentes de uma parte e de um facto notório da
outra, a qual quando for submetida a consideração do Parlamento, só
poderá ser contemplada num ponto de vista e só poderá tender a uma
conclusão. Entre
as alianças pelas quais, em diferentes épocas da nossa história, este
país se tem relacionado com outras nações da Europa, nenhuma há tão
antiga e é tão clara nas suas obrigações – nenhuma se tem mantido
por tanto tempo e tem sido cumprida tão fielmente – nenhuma está tão
ligada na memória com os registos mais brilhantes dos nossos triunfos,
como aquela pelo qual a Grã-Bretanha se relaciona com Portugal. A sua
origem remonta a séculos distantes e tem sobrevivido a inúmeras
vicissitudes dos tempos. Existindo anteriormente à subida ao trono de
Portugal da Casa de Bragança, recebeu, no entanto, novo vigor, a partir
desse momento, e nunca a partir dessa época até ao presente, tem a
monarquia independente de Portugal deixado de ser apoiada pela amizade da
Grã-Bretanha. Esta aliança nunca foi seriamente interrompida, mas tem
sido renovada por repetidas sanções. Tem-se mantido mesmo perante
dificuldades pelas quais a fidelidade de outras alianças foi abalada, e
tem sido defendida em campos de sangue e de glória. “O
Tratado de Aliança concluído no Rio de Janeiro a 19 de Fevereiro de
1810, sendo fundado em circunstâncias temporárias, que felizmente
deixaram de existir, se declara pelo presente Artigo por nulo e de nenhum
efeito em todas as suas partes, sem que por isso contudo se invalidem os
antigos tratados de aliança, amizade e garantia, que por tanto tempo e tão
felizmente têm subsistido entre as duas Coroas, e que se renovam aqui
pelas duas Altas Partes Contratantes, e se reconhecem ficar em plena força
e vigor.”3 A
fim de apreciar a força desta estipulação – recente no tempo,
recente, também, na ratificação do Parlamento –, espero que a Câmara
me permitirá explicar resumidamente as circunstâncias em que foi
realizado. No ano de 1807, quando, após a declaração de Bonaparte que a
Casa de Bragança tinha deixado de reinar, o rei de Portugal, a conselho
da Grã-Bretanha, foi levado a zarpar para o Brasil, quase ao mesmo tempo
do embarque de Sua Majestade Fidelíssima, foi assinada uma convenção
secreta entre Sua Majestade e o rei de Portugal, que estipulava que, em
caso de Sua Majestade Fidelíssima estabelecesse a sede do seu governo no
Brasil, a Grã-Bretanha jamais reconheceria no trono de Portugal qualquer
dinastia que não fosse da Casa de Bragança4.
Como disse, esta convenção foi contemporânea da emigração para o
Brasil, um passo de grande importância na época, removendo das garras de
Bonaparte a família real de Bragança. Mais tarde, no ano de 1810, quando
a sede do governo do rei de Portugal se tinha estabelecido no Rio de
Janeiro e quando parecia provável, na situação, aparentemente sem
esperança, dos assuntos da Europa de então, que era provável que por lá
continuasse por muito tempo, a convenção secreta de 1807, cujo principal
objectivo tinha sido conseguido na concretização da emigração para o
Brasil, foi revogada, e um novo tratado público foi concluído, para o
qual foi transferida a estipulação de 1807, obrigando a Grã-Bretanha,
enquanto Sua Majestade Fidelíssima fosse obrigada a residir no Brasil, a
não reconhecer qualquer outro soberano de Portugal que não fosse membro
da Casa de Bragança. Aquela cláusula, que tinha ficado secreta
até então tornou-se, assim, patente,
e parte conhecida da lei das nações. Senhor
Presidente5,
sendo este o estado moral e político das nossas obrigações para com
Portugal, é óbvio que, quando Portugal, receoso da tempestade que se
aproximava, pediu auxílio à Grã-Bretanha, a única hesitação da nossa
parte só podia ser – não se a assistência era devida, admitindo que a
ocasião para o exigir tivesse surgido, mas simplesmente se era aquele o
momento, por outras palavras, se o casus
foederis tinha surgido. (…) Respondi
assim à suposta crítica sobre o atraso na resposta ao pedido do Governo
português. O
principal problema, no entanto, é este: era nossa obrigação dar
cumprimento a esse pedido? Por outras palavras, tinha o casus
foederis surgido? Em nossa opinião tinha. Grupos de rebeldes
portugueses, armados, equipados e treinados em Espanha, tinham atravessado
a fronteira espanhola, levando o terror e a devastação ao seu próprio
país, e proclamando, por vezes, o irmão do soberano reinante em
Portugal, por vezes, uma princesa espanhola, e às vezes até Fernando de
Espanha, como o legítimo ocupante do trono Português6.
Esses rebeldes atravessaram a fronteira, não num único local, mas em vários
pontos, pois é claro que a agressão, em que o pedido de socorro original
à Grã-Bretanha se baseou, não é a agressão devido à qual o pedido
foi aceite. Se
uma simples companhia de soldados espanhóis tivesse cruzado a fronteira
com intenções hostis, não se poderia, presumo, duvidar da qualidade de
agressão. Podem corpos armados de homens, vestidos e municiados por
Espanha, pôr a ferro e fogo o interior do país vizinho que a não
ofendeu, e poder-se-á fingir que não ocorreu nenhum ataque, nenhuma
invasão, porque, de facto, estes atentados são cometidos contra Portugal
por homens que Portugal viu nascer e nutriu? Não seria um subterfúgio
mesquinho dizer que uma invasão de Portugal vinda de Espanha não era uma
invasão espanhola, porque a Espanha não empregou os seus próprios
soldados, mas contratou mercenários para realizar os seus objectivos? E
que diferença faz, senão como agravante, que os mercenários, neste
caso, sejam naturais de Portugal? Senhor
Presidente, acabo afirmando que havia motivos suficientes, de acordo com o
penso, para que nada senão um ponto de fé nacional ou de honra nacional
justificasse, no momento actual, qualquer aproximação deliberada à
possibilidade de uma guerra. Deixe-me explicitar bem, no entanto, que isto
não significa dizer que tememos a guerra por uma boa causa (e de nenhuma
outra forma pode este país envolver-se!) ou por desconfiar da capacidade
do país para a iniciar, ou dos seus recursos para a manter. Temo-a, de
facto, mas por motivos muito diferentes: temo-a pela compreensão das
enormes consequências que podem surgir com o início de hostilidades em
que nos poderemos envolver. Há alguns anos atrás, na discussão das
negociações respeitando à guerra da França contra a Espanha, tomei a
liberdade de aludir a este problema8.
Naquela época afirmei que a posição deste país, no estado actual do
mundo, era a neutralidade, não só entre nações rivais, mas entre os
princípios em conflito, e que só por meio da manutenção da nossa
neutralidade é que poderíamos manter esse equilíbrio, cuja preservação
acreditava ser essencial para o bem-estar da humanidade. Disse na altura
que temia que a próxima guerra, que se acenderia na Europa seria uma
guerra, não tanto de exércitos mas de opiniões. Não passaram quatro
anos, e eis que as minhas preocupações se realizaram! De facto, esta
guerra de opiniões está confinada actualmente dentro de estreitos
limites, mas é uma guerra de opinião que a Espanha (seja como governo ou
como nação) está a travar contra Portugal; é uma guerra que começou
no ódio das novas instituições de Portugal. Durante quanto tempo será
razoável esperar que Portugal se abstenha de retaliar? Se este país for
obrigado a entrar nessa guerra, participaremos nela com um desejo sincero
e ansioso de atenuar, em vez de exasperar – e de nos misturarmos apenas
no conflito armado, e não no conflito mais fatal das opiniões. A
consequência de deixar à solta as paixões que estão de momento
acorrentadas e confinadas, seria produzir um cenário de desolação, que
nenhum homem pode contemplar sem horror, e eu não conseguiria facilmente
dormir no meu sofá se estivesse consciente de que tinha contribuído para
o precipitar num determinado momento. Esta
é, portanto, a razão – uma razão muito diferente do medo – o contrário
de uma consciência de debilidade, porque temo o regresso das hostilidades
a qualquer parte da Europa. Porque suportaria muito, e porque me
controlaria por muito tempo, por que (como disse) aceitaria quase qualquer
coisa que não tocasse nem na fé nacional nem na honra nacional; para não
deixar escapar as fúrias da guerra, o controlo do que temos em mãos, não
sabendo quem pode atingir, ou até onde os estragos podem chegar. Tal é o
amor pela paz do governo britânico e tal é a necessidade de paz a que a
situação actual do mundo obriga. Não levarei mais longe este ponto.
1
No original “Mr. Speaker” 2.
Tratado celebrado entre o Príncipe
Regente o Senhor Dom João e Jorge III Rei da Grã-Bretanha, para a
abolição do tráfico de escravos em todos os lugares da costa de África
ao norte do Equador, assinado em Viena a 22 de Janeiro de 1815. 3.
Canning leu exactamente o estipulado no Tratado. A Gazeta
de Lisboa não o traduziu correctamente. Damos aqui a tradução
publicada em José Ferreira Borges de Castro, Colecção
dos Tratados, Convenções, Contratos e actos públicos celebrados
entre a Coroa de Portugal e as mais Potências…, tomo V, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1857, pág. 22. 4.
Convenção secreta sobre a
transferência para o Brasil da sede da Monarquia portuguesa, e ocupação
temporária da ilha da Madeira pelas tropas britânicas, assinada
em Londres a 22 de Outubro de 1807, ratificada por Portugal em 8 de
Novembro e pela Grã-Bretanha em 19 de Dezembro seguinte. A convenção
tinha sido negociada por Canning quando ocupou pela primeira vez a
pasta dos Negócios Estrangeiros, entre 1807 e 1809. 5.
No original “Sir”. 6.
Refere-se ao infante D. Miguel, à infanta D. Francisca, casada desde 1816
com o infante D. Carlos, o futuro pretendente “carlista” ao trono
de Espanha, e a Fernando VII, rei de Espanha. 7.
George Canning, sem o afirmar explicitamente – já que podia ser
politicamente contraproducente –, estava a declarar que a força
militar a enviar para Portugal actuaria como “auxiliar” das forças
portuguesas, o que, de facto, de acordo com o direito internacional, não
implicava hostilidade da potência auxiliar em relação à potência
contrária ou a qualquer outra, auxiliar ou aliada desta. É bom
lembrar que tinha sido a posição do governo português em 1795,
quando enviou tropas para ajudar – “auxiliar” – a Espanha, na
sua luta contra a França revolucionária, considerando que, por isso,
não estava a hostilizar a França. A posição tem sido considerada
pela historiografia portuguesa desde o século 19 errada, ou
insuficiente, e muito criticada, mas fazia como é claro parte do
direito internacional desde o Tratado de Vestefália. 8.
Refere-se à invasão de Espanha pelo exército
francês, em Abril de 1823, exército que ficou conhecido pelo nome de
os “Cem mil filhos de São
Luís” e que com autorização das grandes potências continentais
europeias – a Santa Aliança – reunidas no Congresso de Verona, em
Janeiro anterior, repôs a monarquia absoluta de Fernando VII,
terminando assim o Triénio Liberal espanhol começado em Janeiro de
1820.
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Fontes: Gazeta
de Lisboa,
n.º 303 de 26 de Dezembro de 1826, págs. 1381-1386. A ler: William
Jennings Bryan, ed., The World’s
Famous Orations, Vol. IV: Great
Britain,
II: 1780–1861.
Funk and Wagnalls, 1906. Ligações:
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