Oliveira Martins

Oliveira Martins

DISCURSO DE OLIVEIRA MARTINS.

 

Discurso de Oliveira Martins em 20 de Janeiro de 1892. Ministro das Finanças no governo presidido por Dias Ferreira, Oliveira Martins apresentou o programa financeiro do novo governo, empossado em 17 de Janeiro, para substituir o governo de João Crisóstomo, que tinha tido Mariano de Carvalho por ministro das finanças..

 

Discurso de Oliveira Martins, o conhecido historiador, tendo por fundo a crise política despoletada pelo ultimato britânico de 1890, a que se juntou a crise financeira provocada pelos encargos do Estado português com a sua dívida externa consolidada que tinham ascendido, em 1891, a cerca de 20% das suas despesas.

«A falta de dinheiro tornou-se um dos principais factores da política portuguesa na década de 1890», como afirmou Rui Ramos. Entretanto, à crise financeira e política, juntou-se neste ano de 1892 uma depressão económica, que afectou todos os países europeus, e que obrigou o governo português, nesse mês de Janeiro, a afirmar que seria impossível pagar pontualmente os encargos com a dívida. 

A tentativa de encontrar uma solução para esta crise orçamental teve em Oliveira Martins, assim como em Mariano de Carvalho e, mais tarde, Augusto Fuschini, três intelectuais, ministros da fazenda em rápida sucessão, com ideias relativamente claras sobre quais as mudanças que a sociedade portuguesa, que estava «materializada» e «sem fé» segundo o primeiro deles, necessitava.

Oliveira Martins foi ministro da Fazenda até 27de Maio de 1892, porque Dias Ferreira, o presidente do conselho, não queria que no «meu Governo, outro ministro que não seja eu se dê ao incómodo de pensar». Enquanto esteve no ministério Oliveira Martins conseguiu começar e adiantar o seu livro A Vida de Nun'Álvares.

 

«O governo não veiO aqui para estabelecer guerra de classes, veio, em nome da salvação pública, para pedir a todas as classes do país um concurso de esforços enérgicos para ver se conseguimos salvar a nossa terra da situação deplorável a que a levaram.»

 

Tomando a palavra nesta ocasião, cumpre-me agradecer ao meu ilustre colega e amigo o Sr. Abílio Lobo as palavras que acaba de me dirigir. Não posso também deixar de agradecer a recepção tão simpática e direi até, de certo modo, calorosa, feita ao governo nesta casa do parlamento na sessão de anteontem. Procurarei quanto possível responder às observações que me foram dirigidas por sua Ex.ª, mas antes disso direi algumas breves palavras, porque entendo que a gravíssima questão que nos aflige a todos e quase nos esmaga debaixo da sua pressão, questão gravíssima que já fez soçobrar, sucessivamente, três ministros da fazenda e que, provavelmente, me fará também soçobrar a mim - que essa questão, digo, tem de ser encarada sob aspectos diferentes, mas que entre, si se relacionam de uma maneira intima e quase inseparável.

Eu não tenho por hábito falar de mim, nem desejo ocupar muito tempo à câmara, todavia direi sempre que a câmara foi testemunha de que eu não disputei o lugar que estou ocupando. (Apoiados.)

Conservei-me na reserva mais absoluta., quanto às opiniões que podia ter formado sobre a marcha do governo que precedeu o actual, e abstive-me, porque entendo que todo aquele que está na vida pública e que do seu posto critica os actos alheios, contrai ipso facto a obrigação de, no dia em que seja chamado a ocupar o lugar que ficou vago, assumir as responsabilidades que tomou, criticando esses actos.

Como eu não me sentia com forças, nem com ombros para arcar com as dificuldades em que via soçobrar indivíduos em quem reconheço qualidades muito superiores às minhas, abstive-me, sistematicamente; e, só quando foi dado para ordem do dia o projecto em discussão, o projecto das pautas, só então entendi dever intervir, porque me pareceu que esse assunto tinha um alcance mais largo e independente da crise que nos ocupa; porque, quanto a mim, há de passar por cima dela, e há de ser um dos elementos da resolução dessa crise. (Apoiados.)

Para mim a crise, sob a qual nós vergamos, tem de ser encarada sob três aspectos. O primeiro é o desequilíbrio orçamental; o segundo é a circulação fiduciária; e o terceiro é o desequilíbrio capitalista ou económico, como se quiser chamar, quero dizer, a diferença entre o ingresso e as saídas, quer de mercadorias, quer de capitais.

Ora, invertendo a ordem por que enumerei estes três elementos, começarei pelo último. Não cansarei a câmara reproduzindo algarismos que todos conhecem, e fazendo considerações que hoje, felizmente, estão no espírito de todos e que é deplorável que o não estivessem há muito tempo; (Apoiados.) porque o facto é que, desde longos anos, nós vivemos uma vida completamente artificial, abandonando as fontes da riqueza natural do pais. Nós chegámos a este estado, verdadeiramente anormal, de consumir exclusivamente produtos estrangeiros e de trabalhar exclusivamente com capitais estrangeiros; (Apoiados.) de nos dessangrarmos anualmente com o serviço desses capitais e com o preço desses produtos! Assim vivíamos efectivamente e assim vivemos durante largos anhos, se o espaço de meio século, pouco mais ou menos, se pode chamar largos anos; mas vivemos como? Vivemos exagerando a soma da dívida pública até às proporções verdadeiramente esmagadoras em que hoje se encontra

Em 1852 os encargos da dívida pública não excediam 2.500 contos de réis, e hoje esta soma está multiplicada dez vezes; porque hoje os encargos da dívida pública excedem a soma de 20.000 contos de réis.

Ora, evidentemente, a soma correspondente à capitação desta diferença de encargos representa uma quantia que, seja qual for a taxa da capitalização que se lhe aplique, representa uma quantia de cerca de 10.000 contos de réis levantados anualmente, por meio de empréstimos.

Isto é um facto correspondente aquele que qualquer pessoa mal governada pode experimentar desde que começa a pedir dinheiro emprestado porque chega o momento em que, para saldar a dívida dos encargos provenientes dos débitos, tem de contrair novos empréstimos, com juros compostos e, preso deste modo às garras da usura, não há força que o salve da ruína.

Por outro lado sucedia que nós chegámos a afirmar a tese, por exemplo, de que Portugal era um país que não podia cultivar trigo porque estava fora da zona da cultura dos cereais, e que, portanto, tínhamos de mandar vir de fora o pão para a, nossa alimentação; e assim sucedia efectivamente.

A câmara sabe que por uma importação anual de réis 40.000 contos temos uma exportação que pouco excede a 20.000 contos de réis. Não garanto bem estas somas, mas em todo o caso é aproximadamente um terço para dois terços.

É evidente que a diferença entre a importação e a exportação havia de ser paga em espécie, isto é, com o dinheiro recebido por empréstimos e com o dinheiro que nos rendia a emigração para o Brasil, emigração que nos dava capitais muitíssimo consideráveis.

Mas chegou um dia em que, por infortúnio nosso, coincidiram duas crises, qual delas a mais grave; uma do nosso descrédito, e outra a da desorganização económica e politica do Brasil. De um momento para o outro faltaram os recursos dos empréstimos, e as remessas de dinheiro do Brasil. Assim, vimo-nos momentaneamente sem nenhum dos recursos com que podíamos mascarar o nosso estado económico. É esta a crie fundamental, a crise que reclama todas as atenções e para a qual não bastam medidas legislativas; é esta a crise que só o tempo, muito estudo, muito trabalho e muita dedicação podem resolver. Mas, enquanto nós não resolvermos esta crise, ou, pelo menos, enquanto nós não encaminharmos a resolução desta crise, não poderemos contar, por forma alguma, com a estabilidade da máquina politica, nem da máquina financeira de Portugal.

Ora, por isso eu disse que me tinha ocupado do projecto das pautas, porque entendo, e sempre o entendi assim, desde muito largos anos, desde quando eu era quase como o profeta vox clamantis in deserto, que somente no desenvolvimento do trabalho nacional, quer agrícola, quer industrial, nós podíamos encontrar elementos de um rejuvenescimento económico. As pautas são efectivamente a expressão deste pensamento, e vem neste momento como fruto de duas sementes. Uma é precisamente a crise em que nos encontramos, porque o proteccionismo hoje em Portugal não é imposto somente por uma teoria; é imposto pelo prémio de ouro. É estritamente impossível deixar de ser proteccionista neste momento em Portugal, porque, desde que não temos ouro com que pagar os objectos que tenham de vir de fora, não é licito pensar de outra maneira. (Apoiados.)

Mas, alem disso, a pauta proteccionista é imposta também pela política económica generalizada em todas as nações.

Quando todas as nações do mundo, porque pode dizer-se que o movimento passou da Europa para a América, quando todas as nações do mundo adoptam medidas defensoras do seu trabalho nacional, seria perfeitamente absurdo que nós não procedêssemos exactamente da mesma maneira. (Apoiados.)

Eu creio que nestas breves palavras disse o que era necessário quanto à crise principal, à crise principalissima que nós atravessamos neste momento. Mas, além dessa, e relacionada com a crise da economia nacional, nos termos em que já tive ocasião de expor à câmara, está a crise financeira, isto é, o desequilíbrio orçamental. Se V. Ex.ª, Sr. presidente, consentir que eu exponha quais são os resultados numéricos das contas do tesouro do ano de 1890-1891, recentemente publicadas, vê-se que, para receitas ordinárias na soma de 39.877 contos de réis, nós tivemos despesas ordinárias na soma de 43.046 contos de réis, e despesas extraordinárias na soma de 8.381 contos de réis, quer dizer, despesas totais na soma de 51.427 contos de réis.

Daí o deficit líquido, sem entrar nas distinções mais ou menos especiosas do que são as despesas ordinárias ou extraordinárias, o deficit líquido de 11.550 contos de réis, quer dizer, um deficit que é de quase 30 por cento das receitas! Se alguém imagina que um indivíduo, uma família ou uma nação pode existir, pode viver, pode manter-se gastando mais um terço do que ganha, creio que quem assim pensar, como nós infelizmente pensámos, durante largos anos, será levado à situação tristíssima em que nos encontramos (Apoiados.) É por isto, Sr. presidente, que o papel que me foi distribuído é o mais ingrato, e que eu, contando desde já com a sorte que me espera, não duvidei todavia de aceitar este encargo, por isso mesmo que ninguém o queria neste momento. Chegámos a uma situação em que as medidas médias, os paliativos, são absolutamente improcedentes (Apoiados.) Ou nós conseguimos, por um acto de energia, por um movimento de dedicação patriótica, equilibrar o orçamento imediatamente, ou estamos perdidos. (Apoiados.) Isto é que é necessário que esteja na consciência de todos; ou nós conseguimos equilibrar o orçamento do estado à custa dos sacrifícios, sejam eles quais forem, (Apoiados.) ou estamos irremediavelmente perdidos. (Apoiados.)

Na declaração que o Sr. presidente do conselho proferiu nesta casa, apresentando o gabinete, referiu-se sua Ex.ª a sacrifícios que era necessário reclamar, não só dos funcionários públicos, como dos credores do estado. Eu não necessito confirmar as palavras de sua Ex.ª até porque elas eram, não a expressão de um pensamento individual, mas sim a expressão da opinião colectiva do governo. Mas quando o meu colega e amigo o Sr. Abílio Lobo reclama de mim que lhe diga em que termos e de que maneira se há de realizar esse sacrifício dos credores do estado, eu respondo a sua Ex.ª que não sei ainda. (Apoiados.) 0 sacrifício dos credores do estado não me parece que tenha de tomar a forma de um confisco, nem de uma redacção de capital, ou de outra forma igualmente violenta; parece-me que é possível encontrar alguma coisa que não seja isso. 0 sacrifício dos credores do estado há de ser proposto pelo governo, mas discutido, e resolvido pela câmara. (Apoiados. - (Vozes : - Muito bem.)

Ela é que há-de decidir.

O governo há-de propor o tomar a responsabilidade inteira e completa das suas propostas; mas é à câmara que cumpre resolver.

Referiu-se sua Ex.ª ao efeito que a declaração ministerial tinha tido sobre o valor dos fundos públicos. Eu direi a sua Ex.ª que telegramas de Londres, que vi ainda esta manhã, acusam, em vez de urna descida, uma alta na cotação dos fundos públicos.

O Sr. Abílio Lobo: 

- Referi-me ao mercado interno.

O Orador: 

Creio que o mercado externo que é propriamente o regulador da cotação dos títulos, em vez de receber mal a expressão de uma politica franca, politica que diz claramente ao país qual a sua situação, que pede abertamente ao país os sacrifícios de que ele necessita, em vez de receber esta notícia, fazendo baixar a cotação dos fundos públicos, elevou-os. De resto, não foi isto uma surpresa para mim.

Qualquer pessoa que tenha lido os jornais financeiros de toda a Europa vê que eles dizem que era um erro consumado o governo encobrir uma situação patente infelizmente para todos.

O que posso dizer ao Sr. Abílio Lobo é que o governo envidará, todos os seus esforços para que a proposta dessas medidas, a que eu chamarei de salvação pública, seja presente nesta câmara no mais curto prazo possível.

Reclamar, entretanto de um governo que ontem se sentou nestas cadeiras, que lhe diga hoje o que vai fazer, quanto há-de ser a redução do juro da dívida pública, parece-me que isto não tem precedente e que é exigir impossíveis.

Referiu-se mais sua Ex.ª à divida flutuante e à impressão da notícia que as disposições do governo podem ter sobre as operações que diariamente se fazem.

Devo declarar, e estimo muito ter esta ocasião de o fazer, que, quaisquer que sejam as medidas que o governo entenda conveniente propor, quaisquer que sejam os sacrifícios que o governo entenda dever pedir aos credores do estado por dívida fundada, essa exigência de sacrifícios de modo algum pode abranger a dívida flutuantes a qual, como é sabido, tem uma natureza completamente diferente e está sujeita a outros encargos. (Apoiados.)

Passarei agora a outro ponto do discurso do ilustre deputado, quando chamou corrente de jacobinismo reles à ideia de tributar os vencimentos dos servidores do estado.

Não me proponho discutir a expressão com que sua Ex.ª entendeu dever classificar esta ideia do governo.

O Sr. Abílio Lobo: 

- Peço perdão a V. Ex.ª; eu não me referi à ideia do governo. Eu não taxei a ideia do governo de jacobinismo reles; mas disse que não se deixasse o governo arrastar por uma corrente que havia contra o funcionalismo público, corrente que denomino de jacobinismo reles.

Quanto à ideia do governo de fazer uma justa dedução nos ordenados dos empregados públicos, entendo que é uma necessidade urgente nas condições em que se encontra a nação.

O Orador: 

Estimo muito ouvir essa declaração ao ilustre deputado.

Mas direi a este respeito, que o facto das deduções, ou do agravamento do imposto sobre os vencimentos dos funcionários públicos, não é um caso por forma alguma novo; mesmo na nossa história mais recente. A lei de 1848, depois a de 1852; mais tarde ainda, o decreto de 1869, todos, sucessivamente, estabeleceram deduções nos vencimentos dos empregados públicos, e em circunstâncias incomparavelmente menos graves do que são as actuais

Os desejos que sua Ex.ª manifestou, de que o governo procurasse fazer entrar na norma de seus deveres os empregados relapsos, e de que o governo tratasse a cada qual conforme os seus merecimentos, todos esses bons desejos, não os tem sua Ex.ª em maior grau do que os tem o próprio governo; mas sua Ex.ª há de concordar que pretender que urgentemente, dentro em poucos meses, muito poucos, como são aqueles em que esta questão tem de ser resolvida, se resolva tudo, se reformem os diferentes serviços e os costumes: sua Ex.ª há de concordar que é absolutamente impossível.

Nós com comprometemo-nos solene e absolutamente, e creio que os decretos que hoje foram publicados no Diário são já uma prova disso; (Apoiados.) comprometemo-nos, digo, solene, completa e absolutamente, a assim proceder; todavia o que, não podemos é esperar dessas medidas só o equilíbrio orçamental. Não queiramos ilusões; nós não estamos aqui sentados para iludir o país com expressões vagas, cujas consequências caíram sobre a cabeça ele quem as proferisse. 0 equilíbrio orçamental não se obterá senão à custa de uni sacrifício feroz, permita-se-me a expressão, que tem ele abranger todos os funcionários, credores do estado, proprietários e industriais. (Apoiados.) Só assim é que o movimento pôde ser nacional e o sacrifício corresponder ás exigências da situação e do país.

Este sacrifício tem de abranger empregados civis e militares, há-de abranger todos, absolutamente todos em igualdade de condições. (Apoiados.) 0 governo não veia aqui para estabelecer guerra de classes, veio, em nome da salvação pública, para pedir a todas as classes do país um concurso de esforços enérgicos para ver se conseguimos salvar a nossa terra da situação deplorável a que a levaram.

Estas são as considerações que eu tinha a fazer com respeito à segunda face da crise que nos oprime, quer dizer, a crise financeira propriamente dita, por isso que as observações que foram dirigidas ao governo pelo ilustre deputado se incluem todas nesta categoria. Todavia, além dela resta-nos ainda observar o terceiro aspecto, sob o qual a crise tem de ser encarada, a da circulação metálica A primeira consequência do desequilíbrio económico da sociedade portuguesa foi que os primeiros saldos que havia a pagar no estrangeiro, tiveram de ser solvidos por nós por meio da exportação do ouro, por isso que o oiro é a única moeda internacional.

Daqui resultou que, a breve espaço, a circulação metálica estava substituída quase que pelo papel. É isto um bem, é isto um mal? Como sintoma acho-o excelente porque nunca país algum deu prova, como o nosso, de mais civismo e inteligência, aceitando sem resistência a circulação do papel, que hoje se pode dizer está espalhada por todo o país. Há males que vem por bem.

Hoje pôde dizer-se que a circulação fiduciária, generalizada em todo o país, abraçada por todas as classes, sem a mais pequena relutância ou dificuldade e tornou-se a moeda nacional.

Quanto a mim isto é excelente e sobre todos os aspectos. Excelente, porque a moeda de papel é muito superior à guarda-fiscal na defesa das fronteiras. Com a moeda de papel não há contrabando. É excelente também pela superioridade da moeda fiduciária, porque, como não tem valor intrínseco, funciona de graça.

Isto são considerações conhecidas de todos; mas, o que é necessário, é que esta moeda nunca, por forma alguma, corra o risco de começar a depreciar-se, porque, a correr esse risco, então a catástrofe é certa. Toda a câmara conhece os numerosos exemplos de catástrofes financeiras que têm sofrido os diferentes países que têm abusado das emissões de moeda de papel. Entre nós não há semelhante risco a temer, porque, embora considerável como é a emissão de papel do Banco de Portugal, essa emissão está longe ainda da capacidade que as necessidades do país reclamam.

Enquanto as notas não atingirem o limite ou vazio que deixou o oiro, não há receio de que elas, por superabundância, percam valor.

É necessário distinguir entre dois factos que muitas vezes são simultâneos, mas que no nosso caso o não são.

Esses casos são a depreciação do valor da nota e o prémio do valor do ouro. Em toda a parte onde a nota começa a sofrer depreciação, o ouro tem prémio; mas, em muitas partes onde o ouro tem prémio, a nota não sofre depreciação. O ouro funciona como mercadoria económica para saldar as transacções internacionais, e portanto está sujeito à regra geral das mercadorias, quer dizer à lei da oferta e da procura; e a prova está no facto de que, se o prémio do ouro significasse] a depreciação da nota, esse prémio havia de ter subido constantemente e gradualmente.

Ora, não se vê isso; a câmara sabe perfeitamente que as libras chegaram a ter o prémio de 1.500 réis, mas depois desceram a 1.200, 1.000 e 800 réis, e assim tem sofrido oscilações mais ou menos consideráveis.

Essas oscilações, o que traduzem é a procura de libras no mercado para se pagarem obrigações que só com libras se podem pagar, porque nós não temos géneros de exportação suficientes para solver completamente os nossos compromissos externos.

Portanto, digo eu, que não há de modo algum a temer que as notas do banco de Portugal sofram qualquer espécie de depreciação.

O que é necessário, para que as coisas se normalizem, não é restabelecer a circulação metálica.

Restabelecer essa circulação seria, na minha opinião, o supremo erro. (Apoiados.) Em primeiro lugar porque seria destruir uma obra eficaz que a grande desgraça da crise portuguesa obteve, e, em segundo lugar, porque o que sucederia era que, não sendo possível que duas espécies de moeda coexistam, tendo uma valor diferente da outra, a pior expulsaria a melhor.

Isto é conhecido de todos; isto é elementar. (Apoiados.)

Desde que se lançasse na circularão uma porção, grande ou pequena, de prata ou oiro, imediatamente esse metal desapareceria; quer dizer, teríamos visado os cofres do banco de Portugal, sem vantagem absolutamente alguma.

De maneira que o restabelecimento da circulação metálica seria, a meu ver, um erro capital.

Agora, a reconstituição das reservas metálicas do banco de Portugal, essa é que é a suprema necessidade, para nos por ao abrigo de uma depreciação das notas.

O Sr. Fuschini: 

- Mas defenda bem essas reservas.

O Orador: 

É claro que hei-de procurar defendê-las.

A câmara toda sabe que entre os países da Europa que têm a moeda papel está a Rússia.

A Rússia funciona exclusivamente com o seu rublo papel, que não é nota de banco, que é papel-moeda propriamente dito.

A Rússia tem, todavia, quer no tesouro do país, quer em Inglaterra, na França e espalhados por todos os mercados da Europa, somas verdadeiramente colossais.

Ultimamente o ouro disponível à ordem da Rússia atingia a soma de 1.600 milhões de francos, e a deslocação do ouro pertencente àquele país na praça de Londres, depois da falência Baring, ia produzindo uma crise naquele mercado.

Mas a Rússia não restabelece a circulação metálica; a Rússia o que procura é firmar o valor do seu rublo papel com a segurança de que um tesouro metálico está pronto a responder pela moeda que anda em circulação.

Nós não somos precisamente a Rússia, somos um país muito mais pequeno, tudo se reduz a proporções mais limitadas; mas os factos são em si, absolutamente idênticos, de modo que, se o equilíbrio orçamental, quanto a mim, é por todos os motivos uma urgência inadiável para a crise em que nos achamos; esse equilíbrio tem de ser acompanhado com mais alguma coisa: com a amortização o da divida ao banco de Portugal para constituir as reservas e consolidar a situação fiduciária. Portanto, se me é licito exprimir nas suas três faces, correspondentes ás três faces da crise, o meu pensamento, que é o pensamento do governo, consiste no seguinte: quanto à crise financeira, o equilíbrio orçamental imediato, à custa ainda dos maiores sacrifícios; quanto à crise monetária a reconstituição das reservas metálicas do banco de Portugal, para assegurar a circulação das notas do mesmo banco; quanto à crise económica o desenvolvimento do trabalho nacional pela protecção pautal.

Eu não creio que se possa separar absolutamente qualquer destes três diversos aspectos, sobre que a crise portuguesa há de ser encarada. É multiforme e tem de ser combatida em cada um dos diferentes aspectos.

A Itália, na sua situação actual, por tantos lados semelhante à nossa, porque se encontra a braços com as mesmas três crises, orçamental, monetária e económica, está nos dando o exemplo procurando exactamente o mesmo que neste momento estamos pensando; e digo nós, porque vejo nos apoiados, com que a câmara me tem honrado, o mesmo desejo, o mesmo pensamento, que eu manifesto. (Apoiados gerais.)

Agora tenho a dizer uma vez que expus o meu pensamento - qual é o processo que entendo dever pôr em prática para o realizar.

Em primeiro lugar o governo usará de um espírito de economia estrita. e intransigente absolutamente em tudo que diz respeito às despesas, ainda as mais mínimas. (Apoiados.) Em segundo lugar, o governo usará de uma franqueza, absolutamente completa, perante o parlamento. (Apoiados -- Vozes: - Muito bem.)

O governo não quer de modo algum arrogar a si, porque sabe que não pode com ela, a responsabilidade de tentar resolver a crise por meio de combinações reservadas (Apoiados.) O governo quer expor a crise perante o parlamento - quer que o parlamento colabore com ele leal e francamente, (Apoiados - Vozes: - Muito bem.) porque assim está convencido que conseguiremos vencer as enormes dificuldades em que nos achamos.

Parece-me que posso talvez reclamar de todos os meus amigos, e creio que na câmara conto bastantes; (Muitos apoiados.) creio que posso, digo, reclamar deles a justiça de que, na maneira como eu hei de proceder, hei-de usar sempre daquela integridade absoluta e completa, daquele espírito de justiça, sem o qual hoje nenhuma coisa humana pode ir por diante, até quando se trata. de obras desta natureza. (Apoiados.) Quanto à minha boa, vontade e dedicação, a maior prova que posso dar de ambas, asseguro-o à câmara com toda a sinceridade, é o facto de, neste momento, me achar neste lugar. (Vozes: - Muito bem.)

Se supusesse que tudo estava completamente perdido, teria a coragem de assim o dizer, e abandonar o campo, fazendo o que geralmente faz um exército em circunstâncias anormais: debandando. Eu não creio que tudo esteja perdido. Estará perdido, se não tivermos coragem para encarar de frente a situação e para lhe aplicar os meios que essa situação reclama, porque as nações não morrem senão voluntariamente - só morrem quando os indivíduos estão mortos. (Apoiados. - Vozes: muito bem.)

Quem sabe se a roda da fortuna, que já há tanto tempo, em voltas sucessivas, parece insistir em girar contra nós, quem sabe, digo, se neste momento quererá voltar em sentido contrário.

Essa vaga esperança, esse desejo, o medo do remorso que teria se num momento tal não tivesse prestado o meu auxílio à obra comum da salvação pública., eis, Sr. presidente, os motivos que me levaram a aceitar o pesado encargo, em que, praza a Deus, eu não seja também esmagado!

(O orador foi cumprimentado por toda a câmara.)

 

Fonte:

Diário da Câmara dos Senhores Deputados, Sessão n.º 9, de 20 de Janeiro de 1892, págs. 9 - 12.

Ligações:

A ler:

  • Rui Ramos, A Segunda Fundação (1890-1926), 6.º vol. da História de Portugal dirigida por José Mattoso, Lisboa, Editorial Estampa, 1998.

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