D. João III

D. João III

 

DISCURSO DE FRANCISCO DE MELO

 

Discurso do Doutor Francisco de Melo, na abertura das Cortes de Évora, no Domingo dia 13 de Junho de 1535.

 

 

O discurso do célebre humanista português, membro do conselho de D. João III, curto como era de esperar nestas ocasiões, tinha como pano de fundo o reconhecimento como herdeiro ao trono do infante D. Manuel, segundo filho do rei, já que D. Afonso, o primogénito, tinha morrido em 1526 pouco tempo após o seu nascimento. O infante D. Manuel acabaria por morrer também na infância, em Abril de 1537 com 6 anos, assim como todos os outros seis filhos varões de D. João III, que também não lhe sobreviveram.

As cortes de Évora realizaram-se num período bastante atribulado do reinado de D. João. Realizadas pouco tempo depois da resolução diplomática da «Questão das Molucas», acontecida em 1529, reúnem-se no momento em que na Corte portuguesa se discutia intensamente, primeiro por volta de 1529, o abandono da Índia e, mais tarde, sobretudo a partir de 1534, das praças de Marrocos, e que teve um começo de resolução em 1541, com o abandono das praças marroquinas de Safim e Azamor. 

Mas a reunião de Évora ocorreu também no período de maior intensidade da guerra de corso francesa contra o comércio marítimo português no Atlântico, entre 1529 e 1537; na época em que o Papado se preparava para autorizar o estabelecimento de um tribunal da Inquisição em Portugal, pedido em 1525 e concedido em Maio de 1536; no ano em que uma força expedicionária portuguesa dirigida pelo infante D. Luís, irmão do rei, ajudava o imperador Carlos V na conquista de Tunes, e num momento em que se fazia sentir uma grave crise de subsistências, que provocou fome em Lisboa e no país em geral. 

Finalmente, as Cortes realizam-se em Évora, devido ao surto de peste aparecido em Lisboa em 1531, calamidade que tinha sido seguida de um violento terramoto, que destruiu uma parte importante do centro da Lisboa renascentista, e que obrigou a corte a estabelecer-se noutra cidade.

É por isso que as decisões destas cortes se centraram no pedido e aprovação de novos impostos para fazer face às despesas sempre crescentes com o Império, e que o orador fala na resolução do problema das subsistências pelo monarca. 

No discurso, está explicita a teoria tomista do poder, mantida em Portugal durante o século XVI. O orador apresenta a origem comunitária do poder, não havendo ainda qualquer cedências à teoria da monarquia de direito divino, defendendo o rei como cabeça do corpo político e social - místico -  que tem que «principalmente deliberar todas as coisas necessárias a seus vassalos» sendo que à população, e às Cortes, é dado um importante poder de consulta já que, segundo o orador, era necessário «que pratiqueis bem, e consulteis os apontamentos que para o bom regimento e sossego destes reinos vos parecerem mais convenientes, e necessários».

 

«ASSIM COMO EM A CABEÇA A NATUREZA PÔS OS MAIS PRINCIPAIS SENTIDOS, ASSIM PARECE QUE O PRÍNCIPE E REI DEVE MAIS QUE TODOS SENTIR AS NECESSIDADES DE SEUS SÚBDITOS»

 

« Muito alto e muito poderoso Príncipe, Rei e senhor. Sentença é muito antiga de todos os filósofos e sabedores, que as artes e prudência humana trabalham em tudo imitar e arremedar as maravilhosas obras da natureza. Porque como estas sejam regidas e ordenadas por engenho, artifício, saber infalível e poder muito sublimado, nelas se acham muitas em desordem, suficiência sem defeito, conformidade sem repugnância. E claro está que entre todas as obras da natureza mais perfeitas está nossa fraca composição, feita e formada à imagem e semelhança de Deus, corresponde em si as maravilhas de tanta, e tão formosa universidade e por isso é uma divina semelhança de todo este universo, e ainda do omnipotente, e eterno Deus do qual como fonte perenal [como Santiago escreve] todas as perfeições do mundo manao. 

E portanto, se com devida atenção quisermos considerar, os extremos da nossa composição com passo de tão desvariados membros, o número e ordem de tantas potências poderemos manifestamente conhecer que nos deu a natureza em nós mesmos não somente a mostra de suas grandes maravilhas mas ainda um copioso e expresso regimento para o governo de nossas vidas, porque quem bem discutir, e especular, o assento tão firme dos pés o artificio tão grande sobre eles edificado, o foro do corpo tão robusto e largo; a lonjura dos braços, o engenho e subtileza das mãos, as luzernas dos principais sentidos postos em a cabeça como em atalaia de todo o corpo verá evidentemente como em nós estão traçados os fundamentos e princípios de toda a prudência humana, e governo da boa e perfeita república, verá como digo em nós desenhada uma república sobre todas mais excelente que é o reino ajuntado de muitos e desvairados estados sob uma cabeça de senhor e príncipe em toda a ordem paz e tranquilidade governados, e quanta necessidade nela há de serem os Povos, principalmente os agricultores favorecidos para poderem suster o cargo, o peso de tão grande corpo, e sobre ele se edificar a variedade de tantos artifícios mecânicos que como desnecessários [e contudo úteis] parecem não ser da essência do corpo, e porém a ele conjuntos, e nele apegados à largura dos ombros, e foro sobre que a cabeça se assenta e descansa, claramente nos mostra quão prejudicial é em os do conselho a sobeja cobiça e propósito de particulares interesses. Verá isso mesmo o estado militar que como braços deve ser escudo amparo, e defesa de todo o corpo da república cujo esforço e valentia sintam os estranhos, e não os naturais: e como é necessário que sejam os ministros da justiça muito solícitos e artificiosos para emendar os públicos erros não metidos como mãos sem proveito no seio de seus retretes, sendo postos nas públicas praças prestes para socorrer a todas as públicas e particulares necessidades, que por isso os mandava Deus no testamento velho assentar às portas das vilas e cidades. 

Verá quanta obrigação a cabeça de todo este corpo místico que é o príncipe tem de ser assim como é em poder e estado mais alto assim em prudência, virtudes e saber mais excelente e esperto. Que ele só deve [como Epaminondas dizia] vigiar porque todos possam sem sobressalto dormir; e assim como em a cabeça a natureza pôs os mais principais sentidos, assim parece que o Príncipe e Rei deve mais que todos sentir as necessidades de seus súbditos; e como o vento oeste atrai para si as nuvens, assim o bom e virtuoso príncipe para descanso de seus povos, deve sobre seus ombros tomar todos os cargos e trabalhos dos seus para que nele como em porto seguro ancorem os perigos e tormentos de seus vassalos. Sobretudo é muito de notar a ordem, diligência e concórdia com que estes tão desvairados membros ao foro servem sem contradição e obedecem os inferiores aos mais principais, e cabeça, o que claramente mostra como em todos nossos prazeres, contentamentos e proveitos deve sempre preceder o bem comum, e por ele não somente a fazenda mas a vida se deve prontamente oferecer, e pela mesma razão o ser, ter, e vida dos membros inferiores da república pelas necessidades honra e vida de seus príncipes, como pela cabeça de todo este corpo místico que o rege e conserva, tão desordenada em tanta ordenança paz e sossego, e donde todos recebem vida, descanso, e ensino, cujos olhos por todos vigiam , cuja razão por todos se aconselha, cujo juízo a todos determina, e assenta para bem e prol de todos e posto que ao Rei como a cabeça da república, em que reside a razão, instrumentos e artifício dela pertença principalmente deliberar todas as coisas necessárias a seus vassalos, contudo três coisas sobre todas lhe são mais particularmente encomendadas como escreve Aristóteles em os livros da sua república principalmente no que toca ao culto divino que não requer ao ofício sacerdotal, a paz e guerra de seus reinos a providência e cuidado da justiça e das leis para a execução delas necessárias, a quarta a meu ver não menos necessária, o provimento de mantimentos em tempo de grande e geral carestia, porque pois as virtudes se não podem exercitar sem a vida, pouco aproveitará o bom ensino delas sem prover as cousas necessárias para viver; e disto foram muito louvados grandes príncipes e singulares capitães Romanos, e a este fim aquele grande Pompeu foi enviado por Lúcio Sila ditador à Sicília por socorro de mantimentos numa grande carestia que em Roma ouve; quanto cuidado invictíssimo Senhor os Reis, e Príncipes destes reinos vossos progenitores, de todas estas cousas sempre tiveram, seria largo de contar. 

E porque a todos é manifesto como estes seus reinos tantos anos dos inimigos da fé sem muita contradição possuídos, com grande ânimo, singular indústria, esforço e lealdade dos seus nobres e povos foram deles em pouco tempo recobrados, e não contentes de os defender a seus inimigos, e possuir em muita paz e sossego, foram em pessoa fora de seus reinos defender amparar e pacificar as terras de seus amigos. e vizinhos , e eles foram os primeiros que em África depois que nela reina a torpe seita de Mafamede [Maomé] passaram e nela conquistaram  lugares, cidades e vilas; eles foram os que tomaram aquela nobre e famosa cidade de Ceuta no estreito do mar Hercúleo, e libertaram a cristandade do jugo, e tributos que os navios que por ele passavam nela davam e pagavam  aos Mouros; e nesta tão nobre, santa e virtuosa empresa como hereditária obrigação todos sempre perseveraram, e hoje em dia V. A. persevera com tanta e tão continua despesa tanto número de nobres e esforçados cavaleiros com tanta honra fama e boa ventura que o nome Português e as santas insígnias de nossa salvação por muitas diversas partes do mundo por eles são publicadas, e exalçadas, e a fé e religião de Jesus Cristo, nelas quase extinta, restituída e de novo plantada. São disso testemunhas as grandes e nobres vitórias del Rei Dom Manuel de gloriosa memória vosso pai, que ainda em nossa recente memória [foram] dignas de eterna fama, glória e louvor; não quero dizer com que zelo, e quão santo proposto a seita Maomética e perfídia judaica destes reinos sem escândalo, e desassossego de seus povos exterminou, pois na reformação dos religiosos e eclesiásticos quem não viu sua muita diligência perseverança, e cuidado, o que V. A. como legítima herança tanto ampliou, e acrescentou que parece que nenhum outro tem por mais principal, e importante ao reino. 

Também falar na lembrança, indústria, e despesa que teve em socorrer as grandes e espantosas esterilidades destes reinos, e prover juntamente os lugares de além mandando trazer de Sicília, Turquia, Alemanha e Polónia provisões, e mantimentos para tantos anos e gerais necessidades, e nos trabalhos que destes e outros maiores lhe sucederam seria nunca acabar, só me quero recolher no provimento da justiça e leis, virtude tão excelente e de que V. A. tem tão especial cuidado para o que nunca cessou de inventar, e dar toda boa ordem de justiças, virtuosos e letrados, por que os idiotas e ignorantes, ainda que queiram a não sabem fazer, acrescentando grandemente a todos seus mantimentos, e salários, povoando as universidades de estudantes em boas letras, inventando novos modos para encurtar as demandas, e novos ofícios, para isso recebendo nos seus conselhos, no governo do reino e sua particular conversação homens muito virtuosos, letrados honrados, e favorecendo-os muito mais que seus antecessores; e certo assim é que não podem as repúblicas ser bem aventuradas, e prósperas (como diz Platão) se os Príncipes e governadores delas não forem letrados ou amigos das letras, de maneira que em nenhuma cousa se ocupa V. A. mais que em prover como de todo sejam com justiça os públicos vícios de seus reinos extirpados. 

E portanto quando agora nos mandou para o juramento do Príncipe seu filho nesta nobre congregação chamar, porque vossa vinda e ajuntamentos não fosse somente para seu particular contentamento quis, e ordenou, que nele juntamente se tratasse do proveito do bem comum, para o que vos mandou por vezes ajuntar, e agora vos encomenda e manda que pratiqueis bem, e consulteis os apontamentos que para o bom regimento e sossego destes reinos vos parecerem mais convenientes, e necessários para com vossa informação nestas Cortes os despachar e assentar; porque S. A. em verdade não deseja do todo o poderoso e eterno Deus, mais vida e saúde que para contudo o servir, e empregar em prol, e proveito, honra e prosperidade de seus reinos, e vassalos.»

 

Fonte :

«Memoria das côrtes que se fizeram em a cidade de Evora, convocadas por elrei D. João 3.º, e  juramento do principe D. Manuel», O Panorama, Jornal Litterario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, Vol 3.º, 2.ª Serie, 1844, págs. 370-372. 

Ligações:

A ler:

  • José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política. Introdução à Teoria Política, Lisboa, ISCSP, 1996

 

 

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