Nova Edição

Capa da edição de 1945 da
História de Portugal Restaurado

 

O CONDE DA ERICEIRA

DOM LUÍS DE MENESES

 

Apreciação de António Álvaro Dória sobre «O Portugal Restaurado»

 

(...) A História de Portugal Restaurado ocupa, inegavelmente, lugar de relevo entre as obras históricas anteriores à renovação da historiografia empreendida pela benemérita Academia Real da História Portuguesa e, depois, continuada pela Academia Real das Ciências entre os fins do século XVIII e a primeira metade do século seguinte. Efectivamente pouco ou nada de comum existe entre a obra do 3.º Conde da Ericeira e, por exemplo, a dos chamados historiadores alcobacenses, os últimos dos quais foram contemporâneos do ilustre fidalgo, estadista, escritor e soldado.

Em Portugal parece que uma fatalidade histórica impõe a todas as grandes revoluções científicas, literárias, artísticas ou filosóficas só chegarem quando lá fora já deixaram de ser combatidas ou discutidas, entrando no domínio comum. Não achamos necessário fundamentar esta asserção com larga cópia de exemplos, tão patentes eles estão à nossa vista e tão frequentes eles são. Limitamo-nos, por isso, a considerar restritamente aquilo que respeita à historiografia, que, entre nós, só quase em nossos dias se desembaraçou definitivamente da «ganga do maravilhoso com que ainda no século XVIII, até mesmo no seio de Academias respeitáveis como as duas citadas, era de uso envolver factos históricos cuja explicação não podia ,fundamentar-se documentalmente, ou se fazia mister vincar melhor com fins patrióticos ou «narcisistas», como hoje é uso dizer-se. Por isso se explica que, pelo menos até à obra monumental de Herculano, não exista qualquer da envergadura, por exemplo, das de Gibbon, de Hume, de Niebhur, para apenas nos referirmos aos maiores dos historiadores oitocentistas, que nem de longe tiveram sequazes, ou sequer imitadores, no nosso país.

Quando em França, na Inglaterra, na Alemanha, nos grandes países pensantes, a história abandonara, havia muito, o tom panegírico da crónica, em Portugal, no seio mesmo da ilustre Academia que se propunha renovar os processos da historiografia portuguesa, no primeiro quartel do século XVIII, se confundia a história política de Portugal com a sua história religiosa, e se pretendia erguer o edifício grandioso de uma Lusitânia Sacra, reduzido afinal às obras parcelares (valiosas, embora) de alguns dos seus membros mais ilustres. E a obra imponente de D. António Caetano de Sousa, que pudera ler sido una verdadeiro monumento feito em moldes diversos dos usados até então, e da qual poderia datar-se a renovação da nossa historiografia, essa mesmo quase só vale pela soma de documentos coligidos nas Provas, muitos deles hoje desaparecidos.

Não devemos, porém, ser demasiado severos para com os que, sem quererem enfileirar na coorte inumerável dos frequentadores do Parnaso, preferiam conviver espiritualmente com os homens de outras eras e, ao mesmo tempo, erguer os seus louvores até ao Rei que pagava a obra ou poderia deixar cair, do alto do trono, benesses sobre o autor. Isso explica por que um livro de história era, então, invariavelmente um panegírico dos Monarcas, muitas vezes extensivo a todos os seus parentes vivos e até aos seus antepassados. Disso mesmo temos a prova evidente na obra presente, em cujo Livro I quase não há palavra de censura para os actos censuráveis de muitos Monarcas. Era, então, a norma que tais actos, ou se omitiam, ou se justificavam com larga cópia de argumentos, quase sempre teológicos, ou ainda pelo recurso aos factos da história bíblica, como tantas vezes, do alto do púlpito, o fez o grande Vieira.

Apesar de tudo, porém, a História de Portugal Restaurado não pode confundir-se com as suas anteriores e até com outras que viram a luz do dia muitos anos mais tarde. E se abstrairmos do Livro I, cujas doutrinas controversas apontámos nas notas finais ao mesmo, podemos dizer que a obra do 3.° Conde da Ericeira é um monumento de erudição. Pouco, muito pouco se sabe acerca dos processos do autor, que, modestamente, jamais faz alarde das numerosas fontes a que teve de recorrer para erguer o seu edifício. Ele confessa, no Prólogo, que, para as negociações diplomáticas da época, se baseou nas informações dos próprios Embaixadores e nos seus relatórios, e, para os acontecimentos da guerra, nos documentos das secretarias do Estado e da Guerra, além de outras «testemunhas interessadas, que tiveram, sem dependência, parte em todos os sucessos políticos e militares» (pág. 7). Há poucos anos ainda, o Sr. Gastão de Melo de Matos, distinto investigador, publicou um documento inédito do próprio Conde da Ericeira, que acompanha uma ordem para ao autor se entregarem «todos os papéis de documentos (. . .) tocantes aos sucessos da nossa guerras 1. Por aqui se vê qual a probidade do ilustre historiador, cuja empresa só pode avaliar bem quem percorrer com vagar as páginas compactas destes quatro grossos volumes.

Se considerarmos que o autor não pretendeu apenas historiar os acontecimentos da Metrópole, mas alargou o seu campo de acção às negociações diplomáticas, por vezes tão confusas, e à guerra com os holandeses no Brasil e no Oriente, que relata com veracidade que hoje nos espanta, e se considerarmos ainda que o seu exaustivo trabalho de recolha, consulta, comparação de documentos, das mais variadas procedências, se fez durante urna curta vida de 58 anos (1632-1690), parte dela tomada pelas ocupações de soldado combatente, outra parte pelas suas tentativas frustradas de sanear a economia portuguesa e criai a indústria que nos faltava, isto ainda agravado pela loucura que o assaltou subitamente no fim da vida, então se relevarão os erros, as faltas e as omissões de uma obra que até em nossos dias, com grande parte da documentação publicada ou facilmente consultável, com tantas fontes acessíveis e com facilidades desconhecidas no século XVII, não poderia escrever-se de ânimo leve, e consumiria anos de vida do historiador mais operoso.

Tem-se acusado o 3.º Conde da Ericeira de parcial nos seus juízos, precisamente a parte mais fraca da obra. Não podemos, porém, acusá-lo de desvirtuar, tendenciosamente, o sentido dos factos e dos acontecimentos. Os que persistem em considerar a história uma ciência negarão, por certo, ao autor, a sua qualidade de historiador, levados por um falso conceito acerca da própria História que, como ciência (admitamo-la, como tal) nasceu há poucos anos, relativamente. Se tivéssemos de negar ao autor a qualidade de historiador, ver-nos-íamos obrigados a fazê-lo in limine das idades, a começar em Heródoto (pelo menos), relegando para o limbo de simples memorialistas, homens da envergadura de Tucídides, de Xenofonte, de César, de Tácito e, mais próximos de nós, de Joinville, de Froissart, de Ayala, de Fernão Lopes e, por aí fora, até aos meados do século XIX, de quantos escreveram a história do seu tempo e dos factos a que se encontraram ligados e em que estiveram envolvidos. Tal conceito parece-nos não só erróneo como perigoso, precisamente porque lançar sobre tais nomes a suspeita da parcialidade é querer destruir a maior parte das fontes históricas que possuímos respeitante a muitos acontecimentos, muitos factos e muitos homens de que mais nenhum documento possuímos além do testemunho dos seus contemporâneos.

É certo que só o tempo faz justiça aos homens e, por isso, o juízo dos seus coevos é, quase sempre, prematuro. Mas, apesar de tudo, anão tem a moderna exegese histórica confirmado os juízos de tantos historiadores de que os séculos duvidaram? O mesmo Heródoto, que a própria antiguidade reputou de fabuloso, não está a reentrar no areópago dos historiadores dignos e sérios pela mão dos investigadores dos nossos dias que têm visto confirmados os seus depoimentos de visu?

Com a sua fria inteligência de historiador, de olhos postos nos grandes modelos da antiguidade, o próprio 3.° Conde da Ericeira nos adverte da suspeita que sobre ele poderia lançar-se perguntando «quais serão os inconvenientes, quais os perigos quase invencíveis, a que se arroja quem tomou a temerária resolução de imprimir em sua vida a história do seu tempo?» (pág. 4). E, logo adiante, concretiza o seu pensamento: «Encarecer os beneméritos, será inveja dos indignos; louvar os viciosos, opróbrio dos beneméritos; contar todos os sucessos, é empenho invencível; calar alguns, pode ser queixa dos interessados». E acentua: «Nos casos grandes e ainda nos inferiores ajustarem-se todos em que são verdadeiramente contados, dificultosamente se poderá conseguir, porque eu experimentei, achando-me em quatro batalhas e em outros encontros, com muitos mil homens, não se descobrirem dois que concordassem no mesmo facto», o que ele judiciosamente explica, dizendo «que a razão desta variedade vem a ser, que como um só homem não é possível assistir a todos os sucessos de um conflito, entendendo erradamente que cai no descrédito de não ter parte em tantas acções diversas, todas as que não pode alcançar com a vista desacredita por fabulosas». E não deve causar-nos estranheza este juízo céptico do ilustre autor; pois no mesmo século em que viu a luz a 3.a edição da sua obra, José de Seabra da Silva (ou talvez o próprio Conde de Oeiras), na Dedução cronológica e analítica, acusava os Jesuítas de escreverem a História de Portugal Restaurado e, ainda mais, de a haverem desfigurado 2.

É certo, porém, que na questão candente da deposição de D. Afonso VI, de que o próprio autor foi comparsa, há muitos bons espíritos a acusá-lo de parcial ou, como escreveu há anos um ilustre escritor do nosso tempo, de não dizer talvez a verdade toda 3. Todavia, há ainda bem poucos meses, em obra nossa editada nesta mesma Biblioteca, tivemos oportunidade de realçar a veracidade do 3.º Conde da Ericeira que, ao relatar essa tragédia-farsa, apenas pecou em pretender justificar os actos do Infante e os da Rainha, um e outra com intuitos diversos a impulsioná-los.

Era D. Luís de Meneses cortesão, mas não levou a sua cortesania ao ponto de omitir as faltas dos próprios Reis, como neste mesmo volume a cada passo pode ver-se. Foi mais longe até, pois não poupou censuras a Reis, a Príncipes e ao próprio espírito da Corte, que conhecia como ninguém.

Em conclusão: o Conde da Ericeira deixou-nos na sua obra monumental um modelo exacto de história narrativa, ordenado nas suas partes, com sequência lógica e precisa, e ainda hoje fonte segura dessa. época tumultuosa da nossa vida política. Pena foi que só ao fim de dois séculos se visse a necessidade de uma reedição, muito gostosamente incluída nesta «Biblioteca Histórica de Portugal e Brasil», que pretende constituir repositório seguro e escolhido de fontes para a nossa história. Percorrendo estas páginas, tem-se a noção exacta, quase física, do ambiente da época, e vislumbram-se esses milhares de homens que então se moveram no palco da História, com as suas alegrias, as suas dores, as suas ambições, os seus ódios, numa palavra, as suas paixões, não de ontem, nem de hoje, ruas de sempre, enquanto existir o planeta e sobre ele palpitar o «vasto e inquieto coração humano», como algures escreveu Eça de Queirós. (...)

 

«Prefácio» in Conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. I, nova edição, Porto, Livraria Civilização («Biblioteca Histórica, Série Régia»), 1945; págs. IX - XV.


Notas:

1.   Sobre o valor histórico do «Portugal Restaurado». História, série (a). volume 1, pág. 67.

2.   Parte primeira, Introdução Prévia, pág. IV.

3.   Fidelino de Figueiredo, «Historia da Litteratura Classica», 3.ª Epocha, Lisboa, 1924, pág 34.

 

Historiografia
O Conde da Ericeira
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