DAS MEMÓRIAS DA GRANDE GUERRA DE JAIME CORTESÃO


Jaime Cortesão foi médico do Corpo Expedicionário Português, durante toda a participação portuguesa na Guerra, actividade que exercerá durante pouco tempo.

Jaime Cortesão

Jaime Cortesão

A BATALHA DO LYS

9 de Abril de 1918

Lázaro, ergui-me do sepulcro. Vivo com a frescura de emoções de quem renasce.

Já vejo alguma coisa e dou o meu passeio pelo corredor do hospital.

Mas, porque a minha memória foi profundamente abalada e um véu de sombra me empana ainda os olhos, o mundo e a vida, onde eu reentro; surgem do Caos, brilham a custo, através de um nevoeiro espesso e primitivo. Não vejo as linhas contornais das coisas e dos seres. Lobrigo apenas manchas paradas e sombras que se movem.

Voltou-me com violência, nova o desejo de viver. Consequentemente o interesse pelas novas da guerra.

Das nossas tropas vem a notícia de mais um raid, realizado com grande valentia. O Américo Olavo consegue levar a sua gente até à segunda linha boche, mas a noite chuvosa, a terra encharcada, e mais do que isso a rápida retirada dos alemães, não lhe dão os felizes resultados que o seu valor merecia.

Com este é o terceiro grande raid das nossas tropas, pois já antes do Olavo, o capitão Vale de Andrade realizara uma incursão às linhas inimigas com muito e feliz arrojo.

De toda a parte chegam sinais de que a luta se intensifica. Espera-se, a cada hora, que a ofensiva alemã, iniciada na direcção de Amiens se generalize a outros pontos da frente.

Mas, - coisa inevitável, - os nossos soldados, começam a revoltar-se. Sim, inevitável. Pois se de Portugal não mandam reforços e nos esquecem, e os altos comandos, sem a coragem de protestar por todas as formas contra esse desprezo, fazem todos os dias aos soldados promessas de descansos e licenças que nunca chegam, e exigem dalguns milhares de homens o dolorosíssimo esforço, que nos outros exércitos se distribui por centenas de milhares, que menos se poderia esperar?.

O desfalecimento, a exaustão, o desespero atingiram o auge nas nossas fileiras.

Hoje enfim as nossas tropas da frente vão ser rendidas em massa. É uma deslocação total para a retaguarda. E como não há portugueses para essa rendição, o nosso pequeno sector vai cair em mão dos ingleses, ficando nós sem um soldado nas linhas!

Eu estou no Hospital das Doidas, em St. Venaint, numa grande parte do qual se improvisou o nosso Hospital de Sangue n.º 2. É um vasto conjunto de casas apalaçadas, dispersas num grande parque, em cerca.

Há ali algumas centenas de mulheres loucas.

Às quatro horas da manhã, deitado na minha cama, acordo ao trovão estupendo duma granada de 31 ou 38, estoirando próximo. O alto e vasto edifício baila sobre os alicerces, e os grandes estilhaços, como bolidos incendiados, rugem e sibilam, sinistros, cortando as paredes e os telhados. Depois outra. E não param. De espaço a espaço, um abalo fundo de terramoto é o espadanar estridulo da metralha. Para as linhas um rebentar de tempestade oceânica raiva, furibundo. O coração aperta-se à lembrança dos que andam àquela hora sobre as altas ondas de fogo e terra.

Quase todos os doentes, que podem levantar-se, vagueiam de luz acesa pelo hospital. Médicos e enfermeiros, tudo se ergueu. O trovejar da planície enche as almas de assombro. Só quando dealba a manhã, e as primeiras grandes novas chegam, eu e o Frazão nos erguemos.

Às dez da manhã sabe-se já que os alemães, numa ofensiva de grande estilo, cuja largueza é por enquanto difícil de avaliar, romperam as nossas linhas e avançam.

Os feridos entram constantemente.

As faces andam pálidas e espantadas. A batalha aproxima-se. Aumenta o seu marulho tonitruante. As novas que chegam rasgam a cada passo o âmbito da tragédia.

A larga cerca do hospital povoou-se pouco a pouco de vultos, clamores e autos, ofegando.

Chego à janela: uma turba que a bruma do dia afunda, invadiu as ruas do parque e a antiga solidão de grupos gesticulantes, acampamentos de acaso, de mantas, máscaras, mochilas e armas, abandonadas sobre a relva dos talhões. Mais e mais grupos entram. Uma ambulância automóvel desliza lentamente e pára em baixo à porta. Do fundo; com vagar, saem em braços volumes humanos, as cabeças e os membros descaídos. Os meus olhos, cuja névoa de sangue deixa apenas entrever as coisas, desta distância enxergam tudo aquilo em sombras moventes.

Com o giro das horas inunda-se o parque; a turba vem às ondas e reflui até se afogar nas casas e nas áleas, e cada vez mais o rumor, que exala, me inquieta e aflige:

-Vai encher-se tudo com feridos, – dizem.

Resolvo então ir ajudar os camaradas, que lá em baixo se estenuam na faina cirúrgica. Esqueço a minha trémula convalescença e desço, agarrado ao corrimão, as escadas que, levam à cirurgia.

-A meio do último lanço chega-me, lá do fundo dos vastos salões, um bafo quente de fornalha e um borborinho confuso.

Entro na primeira estância: regurgita de feridos, lançados em macas, a esmo, sobre o ladrilho do chão, de lés-a-lés. Ao primeiro relance lobrigo apenas, lançada por terra, a massa azul-cinzenta das fardas, manchada de lama e sangue.

Ouve-se um remexer dorido, gemidos baixos, rouquejos. E logo, distintamente, salta-me aos olhos a visão dum grupo tragicamente imóvel, ali ao pé, rente a mim, e à orla do amontoado humano: é um padre que reza, ajoelhado, as orações da última hora, dobrado sobre um vulto estendido e inerte com uma face branca e fria de gelar.

O meu olhar, que sai da escuridão recente, ao encontrar-se de novo com o Mundo, cerra-se aflito e atónito.

Para seguir às salas da frente é mister entrar num cortejo de soldados, sopesando em macas mutilações humanas. Ali trabalham sem descanso três equipes de operadores.

Lançados ao acaso sobre as macas, os feridos de mais gravidade esperam a sua vez. Um cheiro pesado e morno a éter, sangue e entranhas violadas entontece e engulha. À beira deste ou daquele pingam nascentes de sangue. O chão é todo manchado pelo rio vermelho da vida que extravasa.

Oh! mas este odor a matança é intragável. Paro, hesito. Não, não posso. É demais para as minhas forças débeis. E depois, estes gritos! ... Alguns psalmodiam queixas lúgubres. E, a espaços, forma-se um coro desgarrado de apelos e uivos, como de reses mal abatidas.

Um homem com a cara cor de chumbo e lama, sacode no ar um coto de braço empanado, todo rútilo de sangue, e implora, uivando:

- Não me deixem morrer! Tenham pena de mim!

Ali, para um canto, caiu uma horrível massa humana ensanguentada e informe; não se lhe vê a cabeça, todavia aquilo geme numa suprema despedida, muito baixinho, de cortar o peito:

- Ai ! minha rica mãezinha ! - como um degolado, cuja voz, tão sentida é, nascesse do próprio coração. 

E a um dos lados, contra a parede, alçou-se agora da sua maça um vulto lívido, numa palpitação de fantasma, olhou de longe e à volta com duas brasas nos olhos, mexeu os lábios, quis dar um passo e recaiu pesadamente.

Vou tentar um esforço. A piedade galvanizou-me e dirijo-me a um dos médicos:

- Dê-me também que fazer.

Mas o odor e a vista da carnagem acabam de vencer-me. Cambaleio, fecho os olhos, descaio contra a parede.

- Não, você, - diz-me ele, - não pôde ficar aqui, suba à enfermaria dos oficiais e, se quer, dê os primeiros socorros aos gaseados.  

Saio; e resolvo não olhar aos lados, no receio de cair ao chão. Não obstante, aquela visão palpita à minha volta, já se esvanece, logo se aclara, numa lenta espiral de gestos e manchas de crúor. Vou à toa; os sentidos tacteiam.

Tropeço num vulto que está de bruços no chão. E, ao seguir no corredor, alguém, que passa sobre uma maca alta, chama peto meu nome, numa, voz passada de lástima e dor. Volto-me e, quase na frente, uma cara marfínea, aberta em fundos de agonia, coalha dois olhos glaucos contra mim. Fito, atónito, aquele rosto de espectro, sem atinar quem seja.

E a voz volta, carinhosa, esmolando já de longe:

- Não se lembra?!

- Não me lembro.

Revolvo cá dentro a memória atorpida; mas em vão. Tento sacudir este marasmo: tudo inútil. Quem será?! Aproximo a minha da sua horrível face. Que mágoa de o não conhecer! Mas, perante o meu espanto mudo, os olhos vítreos fecharam-se e a boca emudeceu também, selada por um cansaço infinito.

A maca segue e eu fico a olhá-la aturdido, quase com remorso. Aquela alma, a debater-se rio fundo da sua agonia, esperava decerto uma palavra amiga de conforto. Que chama de sofrimento lhe queimou a face, se a não conheço? Sigo, mas a lembrança do desconhecido alanceia-me agudamente.

Subo de novo. Oficiais gaseados entram constantemente. Os dois primeiros já morreram de colapso cardíaco. Um tem na cara roxa de defunto uns olhos rubros de laca. Outros vêm, figuras lívidas, queimadas, farrapos e crostas de lama, cambaleiam, desabam sobre as camas e depois que os despem ficam longamente sem falar nem bulir.

Há-os sacudidos de vómitos brancos, intermináveis.

- Da minha bateria escapei só eu, – diz um.

E aquele que está sentado, com a cabeça entre as mãos e os olhos perdidos, repete com voz cava, falando consigo:

- Foi o Alcácer-Quibir do C. E. P. ...

Há-os tão inertes que parecem empedernidos de cansaço. Outros endoideceram de espanto.

O capitão Queiroz do 20 de Infantaria, amparado por dois soldados, avança, todo encharcado em lama, negro, desvairado, pintado a sangue e pólvora. Tomo conta dele; faço-o despir, examino-o, dou-lhe os primeiros cuidados. Foi atingido e rasgado por estilhaços aqui e ali, numa perna, nas costas, no pescoço, e sufoca de gases. Como conhece o Frazão, que está ali perto e me auxilia, conta-lhe a batalha em gritos, anseios e gestos doidos. Mas dir-se-ia possesso daquela visão de inferno. Como alguém escapo a um cataclismo, treme todo ainda do grande arrepio.

- Eu estava nas linhas, Frazão. Saíamos hoje de manhã. Às 4 da madrugada rompe um dilúvio de metralha tão formidável, como nunca vi nem sonhei. A tempestade de ferro durou horas.

Um do lado confirma, com os olhos dilatados:

- Eu vi, eu vi: Ao atravessar os campos as granadas caíam aos milhares! Alevantavam o chão todo! A terra fervia em cachão!

E este

- As aldeias ardiam como archotes alumiando a noite!

E aquele:

- Lembrava o Inferno, a terra toda a ater!

O outro agora ergue-se e avança, recua, esbraceja, pincelando a sua história num delírio.

- Depois ao vir da manhã atacaram. Atacaram em massa, às ondas, sempre em ondas, numa catadupa de homem. Só muito perto os vimos surgir do nevoeiro espesso da manhã. De nós os que ficámos, raros intactos, resistimos até à última. Houve cargas de baioneta. Uma fúria! Tu sabes: a coisa que mais detesto são os falsos heróis. Mas ninguém, ninguém faria mais. E tu conheces como estávamos cansados... A seguir abateram ou manietaram tudo à força de número. Vi junto de mim, ali ao pé, oficiais alemães, pistola em punho, atirando sobre os poucos que tentavam salvar-se. Eu próprio estive envolvido. Atirei sobre um. Resisti. Furtei-me. O nevoeiro, o fumo da pólvora; a poeira levantada no ar eram tão densos, que pude escapar com duas ordenanças Todo o meu terror era cair prisioneiro: Antes morrer, morrer mil vezes! Lá venho. Mas os caminhos tinham sido apagados pelos fundões dos rebentamentos e andámos de cova em cova, aos rebolões, errando. Logo, alguns passos dados, caio e zás! fico enterrado até os ombros na lama dum dreno. Já me dispunha a morrer, a ficar ali, sem forças para mais. E os meus homens, -como eles são dedicados! - teimaram, que não arredavam pé e, à força de pulso, arrancaram-me ao charco. Lá vim, de trambolhão, caindo aqui, além me erguendo, no meio da tormenta. De começo, ao rebentar das granadas, ainda me lançava a terra; depois, perdido, cortando os campos ao acaso, ferido, exausto, cambaleante, nem as ouvia, nem me importavam, insensível ao perigo.

Este homem não cansa de falar. O furacão da batalha entrou, lá dentro, açoutou-lhe os nervos e a sua emoção despenhada rola e corre, sem parança. Ajunta traços novos: os feridos mais graves, que ficam à beira dos caminhos, de pernas jarretadas; nadando em sangue, à espera da morte.

Alguém pergunta:

- E onde estão os boches?

E ele:

- Não sei: em La Gorgue, em Laventie... no diabo... Os nossos resistem em muitos pontos da Village Line. E encontrei batalhões de escoceses, os que haviam de render-nos, marchando para lá, magníficos, a cantar.

Um enfermeiro vem e diz-me que um oficial ferido, há pouco chegado, me pede para ir falar-lhe.

- Onde é?

-No pavilhão, ao pé da capela do hospital.

Desço ao parque. A multidão peja o recinto.

A ressaca furiosa da batalha vem ali bater às golfadas, e espadana, volteia, ruge como as ondas, que invadem as grandes furnas a meio da costa, dentro do Mar.

Desde a manhã raras granadas calam nestas paragens; mas agora ao começo da tarde afluem umas trás doutras; e, aqui e além, desabam explosões, enquanto as shrapnells de 15 ribombam sobre o hospital.

As ambulâncias automóveis entram, correm, partem de novo ou estacam e arfam trepidando. Paro desnorteado. Para lá dos meus olhos baços vai um formilhar de espectros, que desemboca dos carros fundos, sopesa macas, e se dispersa ou chocarem redemoinhos e grita, comanda, ulula.

Entro no pavilhão e busco com o olhar algum rosto conhecido. As granadas caem, estoiram lá fora. Logo à entrada, dentro duma cama, vejo um homem em quietação extrema. Só a face, cujo tom plúmbeo ressalta na brancura do lençol, narra uma dor horrível.

Os olhos estão cerrados, mas a contractura violenta dos masseteres, o latejar das têmporas e o premir raivoso dos beiços, de comissuras caldas, dizem o esforço de não gritar. É o capitão Almiro de Vasconcelos. Um enfermeiro conta-me em voz baixa que tem uma coxa esfacelada.

As camas estão cheias.

Então lá do meio um gesto brando acena-me. Avanço até ao leito, donde sai um meio corpo inquieto e uma cabeça de face inchada, os queixos atados, deixando ver junto da boca o extremo duma larga ferida.

Custa-me a reconhecê-lo, tão deformado e branco tem o rosto. É o alferes Jaime Leote do Rego. E baixinho, que o bulir dos lábios abre-lhe dares na face, conta-me o seu caso.

Noite ainda, marcha para a frente, a restabelecer as ligações telefónicas. Já alguns ingleses abandonam as baterias esfaceladas. E ele continua na sua faina, em meio da tempestade, arrostando longo tempo, no cumprimento terrível do dever, o vendaval de ferro e fogo, até que um estilhaço lhe rasga a face desde a orelha à boca. Duas horas tem que andar a pé, esvaindo-se em sangue.

Lá fora e perto urna granada estoira com violência. Um sacudir convulso de paredes. E o moço herói, agora aniquilado, com inquietação febril, agarra-me na mão e pede que o não deixe, se acaso evacuarmos o hospital.

Vou saber, - digo-lhe; - e ao sair, acaba de se espalhar, veloz, a ordem de evacuação. Todos os doentes ou feridos que andem pelo seu pé, por grave que seja o seu estado, teem de abandonar o hospital e seguir para, as ambulâncias da retaguarda, a, mais próxima das quais está dali a três léguas. Os outros, os feridos de gravidade, hão de sair pouco a pouco nas ambulâncias automóveis.

Como a tarde cai rapidamente e já se ouvem as granadas de pequeno calibre, prenúncio de que a batalha se avizinha, e os automóveis carream para ali novas de horror e faces de tragédia, o clamor, a angústia, o redemoinhar precipito da turba decuplicou.

Mais um automóvel com feridos.

São os homens patilhados da brigada do Minho. O capitão Franco esfarrapado, coxeando, cor de cera; o tenente Branco com a cara e as mãos queimadas, em carne viva, e outros, outros ainda. Dentro do automóvel, em viagem, um estilhaço veio matar um dos feridos.

Encontro-me com o Frazão. Temos que sair quanto antes. A noite e os boches estão perto. Os corações das gentes batem com o ritmo espantosa da tragédia. Algumas levas abalaram já e a estas horas seguem pelas estradas. Conto-lhe do Leote. Temos que ir lá, e vamos os dois falar-lhe. Ele sabe já. Mas os ecos surdos ou violentos das explosões incessantes, o receio de ficar para ali abandonado ou sepulto em escombros, na noite e na catástrofe, acendeu-lhe o desejo de viver numa fogueira de aflição. E, pois que se esvasou em sangue e lhe encheram os vasos de estimulantes para lhe manter o coração, tomou-o uma embriaguez louca. Tenta erguer-se, agarra-se-nos, e suplica-nos, com gestos desvairados, que o não deixemos ali.

- Mas como, - dizemos nós, - se está exangue, sem forças e aos primeiros passos vai cair por terra?!

- Não! Não me deixem! Não me deixem l Vou amparado. Vocês seguram-me, verão... Eu posso...

O escuro da tarde já invadiu a sala. Há vultos que lutam, peito a peito, com a sombra e o pavor. E eu vejo apenas alumiando aquele fantasma estrebuchante os dois olhos fixos, a arder, como carvões acesos.

Pam... Pam... Boum... fazem lá fora as granadas. E ele quer saltar, ir connosco. Debate-se, alteia-se, crispa as mãos, como um afogado, prestes a afundar-se.

Está doido, está bêbado de pânico...

Eu que já conheço, por experiência própria, aquele estado de terror, que segue as grandes quebras físicas, em casos tais, sofro com angústia da minha piedade, impotente.

Saímos. É forçoso abalar. No parque gente chama, corre, dá ordens. Os automóveis vêem, voam, partem; a noite aguilhoa o movimento da turba vertiginosa.

Eu, o enfermeiro Baldaia, o meu impedido, o tenente Frazão e outros oficiais partimos num grupo. Ao sairmos, uma granada cai perto. Alguns, soldados lançam-se por terra, e o Frazão increpa-os com escárnio, dizendo para lá das palavras o seu espanto de que àquela hora alguém tenha ainda o receio de perder a vida.

Na estrada vamos engrossar o longo cortejo dos que retiram: - farrapos de regimentos, famílias de civis com as crianças ao colo, carretas conduzindo os restos dos lares, trabalhadores chineses, e, em grupos soturnos, soldados portugueses, ingleses, australianos, tudo numa torrente apressada, silenciosa, devorada pelo drama comum.

Atrás afogou-se na sombra o palácio dos doidos, dos cadáveres, dos mártires, dos moribundos, erguido à beira do rio humano, como um genial monumento de aflição.

Vamos, como feras acossadas por um incêndio, olhando de vez em vez para trás com olhos endoidecidos pelo espanto. Vamos levados, impelidos, arrastados, como coisas inertes na catadupa dolorosa. Andamos horas. Sigo amparado, vacilante; esfrangalhado.

A névoa, a noite, a fome, a fadiga, a cegueira, que de novo me empana os olhos, o surdo estrépito da caravana maldita galgando os caminhos, aquele potenciar constante de misérias e dores já me alucinam.

Que verdade?! que pesadelo?! que sonho hediondo é este?!

E um desejo desesperado se enraíza cá dentro de juntar as derradeiras forças para numa revolta última, atirar-me à valeta e ficar ali até que a morte me salve.

 

Fonte:
Jaime Cortesão,
Memórias da Grande Guerra (1916-1919),
Porto, Renascença Portuguesa,"Biblioteca Histórica, Memórias II", 1919,
pp.200-214.


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