Crónica de D. João I, de Fernão Lopes.

 

Apresenta-se os dois capítulos que descrevem a "Insurreição de Lisboa", após o assassinato do conde Andeiro por D. João, mestre de Aviz, combinada com Álvaro Pais, antigo Chanceler-mor de D. Pedro I.

 


PRIMEIRA PARTE

CAPÍTULO XI

DO ALVOROÇO QUE HOUVE NA CIDADE CUIDANDO QUE MATAVAM O MESTRE E COMO LÁ FOI ÁLVARO PAIS E MUITAS GENTES COM ELE

O pajem do Mestre, que estava à porta, a quando lhe disseram que fosse pela vila, segundo já estava preparado, começou a ir rijamente a galope, em cima do cavalo em que estava, dizendo a altas vozes, bradando pela rua: Matam o Mestre! Matam o Mestre nos paços da rainha! Acudi ao Mestre que o matam! ? E assim chegou a casa de Álvaro Pais, que era dali grande espaço. 

As gentes que isto ouviam saíam à rua a ver que cousa era. E, começando a falar uns com os outros, alvoroçava-se-lhes o coração, e começavam a tomar armas cada um como melhor e mais depressa podia. 

Álvaro Pais, que estava prestes e armado com uma coifa na cabeça, segundo uso daquele tempo, cavalgou logo à pressa em cima de um cavalo, apesar de que anos havia que não cavalgara, e todos os seus aliados com ele, dizendo em brados a quaisquer que achava: ? Acudamos ao Mestre, amigos, acudamos ao Mestre, que é filho de el-rei D. Pedro! ? E assim bradavam ele e o pajem indo pela rua.

Soaram as vozes do arruído pela cidade, ouvindo todos bradar que matavam o Mestre. E assim como viúva que rei não tinha, como se lhe este ficara em lugar de marido, se moveram todos com mão armada, correndo à pressa para onde diziam que se fazia isto, para lhe darem a vida e livrá-lo de morte. Álvaro Pais não parava de ir para lá, bradando a todos: Acudamos ao Mestre, amigos, acudamos ao Mestre, que o matam sem porquê!

A gente começou a juntar-se a ele, e era tanta que era estranha cousa de ver. Não cabiam pelas ruas principais, e atravessavam lugares escusos, desejando cada um ser o primeiro. E, perguntando uns aos outros quem matava o Mestre, não faltava quem respondesse que o matava .o conde João Fernandes, por mandado da rainha.

E por vontade de Deus, todos feitos de um só coração com vontade de o vingar, quando chegaram às portas do Paço, que tinham sido fechadas antes que chegassem, com medonhas palavras começaram a dizer:

- Onde matam o Mestre? Que é do Mestre? Quem fechou estas portas?

Ali ouviam-se brados de diversas maneiras. Tais havia que certificavam que o Mestre era morto, pois as portas estavam fechadas, dizendo que as quebrassem para entrar dentro, é veriam que era do Mestre, ou que cousa era aquela. Alguns bradavam por lenha e que viesse lume para porem fogo aos paços e queimarem o traidor e a aleivosa. Outros teimavam pedindo escadas para subir acima, para verem que era do Mostre. E em tudo isto era o tumulto tão grande ,que se não entendiam uns com os outros nem determinavam cousa nenhuma. E não somente era isto à porta dos paços, mas ainda em redor deles, por onde quer que coubessem homens e mulheres. Umas vinham com feixes de lenha,, outras traziam carqueja para acender o fogo, pensando queimar com ela o muro dos paços, dizendo muitos doestos contra a rainha.

De cima não faltava quem gritasse que o Mestre estava vivo e o conde João Fernandes morto. Mas isto ninguém o queria crer, dizendo:

- Pois se está vivo, mostrai-no-lo e vê-lo-emos.

Então os do Mestre, vendo tão grande alvoroço como este e que cada vez se acendia mais, disseram que fosse sua mercê de se mostrar àquelas gentes, de outra maneira poderiam quebrar as portas, ou pôr-lhes fogo, e entrando assim dentro à força não as poderiam depois impedir de fazer o que quisessem.

Ali se mostrou o Mestre a uma grande janela que dava sobre a rua, onde estavam Álvaro Pais e a maior força da gente, e disse:

-Amigos, sossegai, que eu estou vivo e são, a Deus graças.

E tanta era a perturbação deles, e de tal maneira tinham já em crença que o Mestre fora morto, que tais havia que porfiavam que não era aquele.

 

CAPÍTULO XII

COMO O BISPO DE LISBOA E OUTROS FORAM MORTOS E LANÇADOS DA TORRE DA SÉ ABAIXO

A cidade estava toda ocupada neste tumulto, e a multidão acompanhava o Mestre que deixava o Paço da Rainha e descia para os Paços do Almirante. Ao passarem pela Sé lembraram-se alguns de que à ida, passando por ali com Álvaro Pais, tinham gritado aos de cima que repicassem os sinos. Mas, repicando em S. Martinho e nas outras igrejas, não quiseram repicar na Sé. E souberam que o bispo estava em cima e que mandara fechar as portas sobre si.

E porque ele era castelhano disseram logo que era do partido da rainha e do conde e que fora sabedor da traição e morte que quiseram dar ao Mestre, e que por isso não repicaram. 

Assacavam-lhe estas e outras muitas suspeitas e não faltava quem as desse como certas. Ficou logo ali grande parte do povo aceso com brava sanha, para entrarem à pressa a Sé, e tomarem logo vingança do bispo.

O bispo era natural de Samora, e chamava-se D. Martinho. Sendo bispo do Algarve obtivera o bispado de Lisboa por via de Gonçalo Vasques, licenciado em Direito Canónico, que lho ganhou do papa Clemente, para haver o priorado de Guimarães. Este bispo era grande letrado e bom eclesiástico, e regia muito bem a sua igreja, morando por cima do claustro dela para continuadamente vir às horas e ofícios divinos, e ali tinha a intenção de mandar fazer casas para morarem todos os cónegos, para mais facilmente poderem fazer o seu serviço.

E estando ele naquele dia comendo com o prior de Guimarães -que havia mais de um ano que não via - ouviram grande tumulto no Paço da Rainha, que era ali perto, e carpidos de mulheres, com grandes vozes de gente pelas ruas à volta, bradando todos que matavam o Mestre. O bispo ouvindo tamanho tumulto, e que cada vez era maior, bem cuidou que não era caso leve. E para se acautelar contra qualquer eventualidade deixou a mesa a que estava e desceu por uma escada ao claustro, ele e o prior de Guimarães, e um tabelião de Silves que chegara Asse dia pára trabalhar com ele.

Com estes dois convidados e alguns homens seus se foi o bispo à mais alta torre da Sé, onde estão os sinos, mandando primeiro fechar por dentro todas as portas da igreja. E quando Álvaro Pais por ali passou à ida bradaram 200 aos de cima, como dissemos, que repicassem. 0 homem bom não sabia que tumulto era aquele. E, além disso, como dar ao sino em tal igreja daria lugar a grande alvoroço na cidade, teve muita dúvida em o fazer.

Eles, quando viram que não tinham repicado na Sé e que o bispo daquela maneira estava na torre, as portas da igreja fortemente fechadas, e que as não podiam tão depressa quebrar, obtiveram escadas e entraram por uma janela, e muito à pressa foram as portas abertas. Entraram então quantos quiseram, porém muito poucos em comparação com os que estavam de fora. E a comum voz de todos era que fossem acima ver quem estava na torre e porque não repicara como nas outras igrejas, e que se fosse o bispo que o deitassem abaixo.

Silvestre Estevens, homem honrado, procurador da cidade, e o alcaide pequeno dela e outros subiram por uma estreita escada de caracol, pela qual não cabia mais que um atrás de outro nem podia ninguém entrar na torre enquanto de cima a quisessem defender.

O bispo, vendo como era castelhano e de nação contrária a eles, receava muito em tal ajuntamento, o que toda a pessoa sensata deve recear, e não lhes dava lugar a que entrassem. Porém, vendo-se sem culpa, e além disso pessoa tal e eclesiástica, dando-lhe os outros seguro a ele e aos que com ele estavam, deixou-os entrar. E, perguntando-lhe porque não mandara dar ao sino, pois aquelas gentes bradavam que repicassem, ele se desculpou por suas mansas e boas razões, de jeito que todos foram satisfeitos.

A cega sanha, que em tais feitos a nenhuma cousa atende, começou a arder tanto nos entendimentos do povo que estava à porta principal da igreja que começaram a bradar altas vozes perguntando aos de cima que estavam fazendo que não deitavam o bispo abaixo. E diziam:
- Guardai-vos, não vamos nós lá. Porque se nós lá vamos todos vós haveis de vir abaixo com ele.
Os de cima, que não tinham vontade de lhe fazer mal nem contrariedade, era-lhes muito pesado fazê-lo, à uma por ser bispo, e mais seu prelado, depois pelo seguro que lhe tinham dado. E não sabiam que fizessem.

A sanha apressava os corações de todos, e com ira grande começaram de bradar, olhando todos para cima e dizendo:

-Que demora é essa que lá fazeis, que não deitais esse traidor abaixo? E como? Já vos tornastes castelhanos como ele? Pagou-vos para não o atirardes e entendestes-vos com ele?

Então começaram todos a jurar que se não atiravam o bispo, iriam lá acima e então viriam todos abaixo. E, porquanto todo o temor é justo quando um homem está em perigo de morte ou perto disso, tiveram disto os de cima tão grande receio que logo o bispo foi morto com golpes e atirado à pressa abaixo, onde lhe foram dados outros muitos golpes -como se ganhassem perdões -, que sua carne já pouco sentia.

Ali o desnudaram de toda a vestimenta, dando-lhe pedradas com muitos e feios doestos, até que se enfadaram dele os homens e os garotos. E foi roubado de quanto tinha.

Semelhantemente foi atirado abaixo aquele prior de Guimarães, seu convidado, porque um escudeiro que lhe queria mal, subindo acima com os do concelho, viu ocasião azada para o matar, e, buscando-o pela torre, achou-o escondido e matou-o. E, não tendo ninguém sentido da morte dele, porque estava com o bispo, nem havendo quem o levasse dali, deitaram-no da torre abaixo.

O coitado do tabelião, que tinha tão pouca culpa como os outros, começaram a trazê-lo para baixo e a insultá-lo e empuxá-lo, dizendo que ele, que estava com o bispo, bem sabia parte daquela traição. Começaram a dar-lhe punhadas. Depois feriram-no e mataram-no.

E assim morreram todos três e outros fugiram. E jazeram ali aquele dia e a noite o prior e o tabelião.
E logo nesse dia algumas pessoas refeces lançaram ao bispo, que jazia nu, um baraço nas pernas, e chamando muitos garotos que o arrastassem ia um rústico adiante bradando:

-Justiça que manda fazer nosso senhor o papa Urbano VI neste traidor cismático castelhano, porque não estava com a Santa Igreja.

E assim o arrastaram pela cidade, com as vergonhosas partes descobertas, e o levaram ao Rossio onde o começaram a comer os cães, que ninguém o ousava enterrar. E, sendo já muito comido, enterraram-no ao outro dia ali no Rossio. E os outros dois foram depois enterrados, para tirarem o fedor diante de suas vistas.

E, posto que a algumas pessoas tais cousas parecessem mal e desonestamente feitas, ninguém se atrevia a dizer o contrário.


Fonte:
António José Saraiva (editor)
As Crónicas de Fernão Lopes,
2.ª Ed., Lisboa, Portugália, 1969
páginas 197 a 203

Fernão Lopes,
Crónica d'el-Rei Dom João I de boa memória e, dos Reis de Portugal, o décimo,
1.ª edição, 1644

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