A Guerra de 1801

 

 

 

Portugal e a defesa da neutralidade 

Em princípios de 1801 Portugal considerava-se um país neutral, situação reconhecida internacionalmente desde 1782, quando D. Maria I assinou um tratado com a Rússia de Catarina a Grande, a fim de integrar a Liga Armada dos países neutrais do Norte da Europa, no decurso da Guerra da Independência Americana. Quando a França revolucionária declarou guerra à Grã-Bretanha e à Espanha, Portugal foi arrastado para o conflito por motivo do tratado de 1778 assinado com a Espanha, que obrigava as partes a ajudar a outra em caso de ataque por uma terceira potência. O governo espanhol solicitou em 29 de Janeiro de 1793 essa ajuda de Portugal - e obteve-a. A partir de então a França deixou de reconhecer o estatuto de neutralidade, afirmando que Portugal ao combater contra a República se tornara uma potência beligerante, e por isso em guerra.

Dona Filipa de Vilhena

Dona Filipa de Vilhena armando seus filhos
cavaleiros, por Vieira Portuense (1801)


A posição de Portugal agravou-se com a assinatura da paz de 1795 entre a Espanha e a França, pelo Tratado de Basileia, e com a constituição da aliança ofensiva e defensiva entre essas duas potências, pelo Tratado de Santo Ildefonso de 18 de Agosto de 1796, e a declaração de guerra da Espanha ao Reino Unido, em Outubro seguinte. A aliança com a Espanha mantinha-se, mas Portugal assinara agora um tratado de aliança com a Grã-Bretanha. Mesmo sabendo-se que a aliança franco-espanhola era dirigida contra a Grã-Bretanha, Portugal encontrava-se, necessariamente, no meio da luta entre a Espanha e o Reino Unido. O país confrontava-se com um triplo problema: a França considerava-se inimiga, fazendo guerra de corso nos mares; aceitava discutir a paz sob mediação espanhola, mas continuava a exigir o fecho dos Portos portugueses aos britânicos, como condição prévia à assinatura de qualquer tratado, para além de querer a liberdade de navegação no rio Amazonas. Nesta situação, Portugal fora convertido em parte integrante dos planos de ataque franceses e espanhóis contra a Grã-Bretanha, ao contrário do que as duas potências sustentavam. 

Este era o problema a que a diplomacia portuguesa tinha de dar resposta. Era-lhe essencial manter a relação preferencial com a Grã-Bretanha, a fim de manter as rotas comerciais marítimas livres de perigo, e assegurar o mercado britânico para o vinho do Porto, o mais importante e valioso produto de exportação português, e que não tinha nenhum outro mercado importador de substituição. Estes constrangimentos impediam o país de ter uma política externa totalmente independente, e tornavam-no, aos olhos dos governos continentais, e sobretudo da França, uma potência submetida aos interesses estratégicos e comerciais britânicos. 

Qualquer das posições francesas e espanholas referidas era inaceitável para Lisboa. Não se considerava em guerra com a França, e defendia intransigentemente o estatuto de neutral, ao afirmar que participara na campanha do Rossilhão como potência auxiliar da Espanha, o que de acordo com as regras diplomáticas da época, não o tornava uma potência beligerante. Também não queria aceitar a mediação espanhola pois essa opção colocaria o país em situação de potência secundária, equivalente às monarquias italianas, por exemplo, sendo que desde D. João V, com a outorga pelo papa do título de Rei Fidelíssimo, Portugal tinha ganho o direito a um estatuto de igualdade com as principais potências europeias. Finalmente, o fecho dos Portos poderia ser considerado pela Grã-Bretanha como uma quebra da aliança, um acto pouco amistoso ou mesmo uma declaração de guerra, sendo qualquer das situações inaceitáveis para os interesses portugueses. De facto, o governo de D. João queria manter-se equidistante nas guerras europeias, mas sobretudo entre as duas potências que lhe estavam mais próximas. Era um caminho difícil de seguir, necessitando, como necessitou, de avanços e recuos, mudanças rápidas de estratégia, tudo em defesa das posições que eram vistas como essenciais ao interesse nacional. 

Até 1801, a situação diplomática com a França nunca foi resolvida, já que o tratado assinado em 1797, em Paris, por António Araújo de Azevedo, finalizando as conversações entre Portugal e França, com o conhecimento da Grã-Bretanha, sem o consentimento da qual não se podia ratificar nenhum tratado de paz, de acordo com o Tratado de Aliança de 1793, não foi ratificado pela Coroa portuguesa. Assim, manteve-se a situação de guerra não declarada, continuando Portugal sob o espectro de uma declaração formal de guerra por parte da Espanha e da França. 

Portugal aguardara uma invasão do seu território em 1796 e depois em 1797, tendo então concentrado uma parte do exército na Azambuja, preparando-o para a guerra. Contudo, a derrota da frota espanhola em Fevereiro em frente ao Cabo de São Vicente, a chegada de um corpo de tropas britânico a Lisboa, e a assinatura do Tratado de Paris, levou a Espanha a adiar a decisão de atacar o vizinho, como lhe exigia a França republicana. Em 1798, Portugal preparou-se novamente para a guerra pensando que a frota francesa concentrada em Toulon se pudesse dirigir para a Europa. A expedição de Bonaparte dirigiu-se, afinal, para o Egipto, e a destruição da frota por Nelson na baía de Aboukir, afastou o perigo. Por isso, quando em 1799 e 1800, as potências europeias unidas pela segunda coligação expulsaram os exércitos franceses da Alemanha e de Itália e obrigaram-nos a recuar quase até às fronteiras de 1789, Portugal teve a esperança de uma solução rápida da guerra, que evitasse a sua participação efectiva. 

Nada de mais enganador. No princípio do Outono de 1799, os exércitos franceses conseguiram deter o avanço dos aliados, e nalguns teatros de operações conseguiram mesmo contra-atacar. Com a tomada do poder pelo general Bonaparte, por meio do golpe de Estado de Brumário, em Novembro de 1799, o governo francês passou a ter uma capacidade de actuação muito maior, e uma estratégia única e clara para repor o domínio da França sobre o Continente europeu. 

Parecendo não perceber os planos do novo governo de França, Portugal desmobilizou, no princípio de 1800, uma parte significativa do Exército, em armas desde 1796, tentando diminuir os custos financeiros da mobilização, mas também resolver a falta de mão-de-obra na agricultura, causada pelo recrutamento excessivo para o Exército e para a Marinha de Guerra, ao longo da última década do século XVIII. Este erro de análise, que parece mostrar uma certa dificuldade do governo português da altura em fazer prospectiva, baseado possivelmente na falta de capacidade de alguns dos seus embaixadores em informarem convenientemente o governo das modificações políticas acontecidas nos países onde residiam, pode ter tido consequências graves para o futuro da participação britânica numa campanha na Península, já que parece ter mostrado ao governo de Londres uma certa facilidade do governo do príncipe regente em desistir de preparativos para uma possível guerra, quando existia uma importante força expedicionária britânica em Portugal. 

Mas, nesse ano de 1800, Portugal mantinha a única política possível para uma potência europeia menor: esperava para ver. Sabia que uma solução da guerra no centro da Europa favorável à França possibilitaria o envio de tropas para o extremo ocidental do Continente. Mas não tinha nenhuma possibilidade real de mudar o curso dos acontecimentos. A única coisa que o governo português podia fazer era tentar manter o interesse da Grã-Bretanha na defesa de Portugal, e tentar fazer perceber ao governo espanhol, que uma guerra na península Ibérica, com apoio de forças francesas, não era do interesse espanhol, porque não traria qualquer entendimento entre a Espanha e a Grã-Bretanha. 

Infelizmente, Portugal não conseguiu manter a colaboração da Grã-Bretanha. Devido à posição de D. João de Bragança, duque de Lafões, e do "partido aristocrático" que o rodeava, afastou as forças britânicas estacionadas em Lisboa desde 1797. Os regimentos britânicos, que só podiam servir na Europa, que tinham participado em campanhas no Mediterrâneo e em Cádis, mas regressado em Outubro de 1800 sob o comando de sir Charles Murray Pulteney, não puderam desembarcar tendo saído de Lisboa em Dezembro de 1800, mantendo-se somente os regimentos de emigrados franceses. A política do duque de Lafões de recusar um comando britânico das forças conjuntas, que o subalternizariam; a sua oposição à guarnição de praças costeiras por tropas britânicas, as de Lisboa mas também as do Algarve; a sua resistência à mobilização e preparação do exército para a guerra, impediu uma preparação conjunta para o conflito. Actuação de que o gabinete de Londres era informado regularmente pelo general Charles Stuart, comandante britânico em Portugal até meados de 1800,  e depois pelo seu agente diplomático. 

A situação é bem resumida pela frase atribuída ao marechal general, escrita por Pinheiro Chagas na sua História de Portugal, quando numa suposta carta ao general marquês de Solana, comandante da Divisão de Vanguarda do Exército espanhol que invadiu o Alentejo em 1801, escreveu: "porque nos havemos de bater? Portugal e Espanha são duas bestas de carga. A Inglaterra nos excita a nós, e a França vos aguilhoa a vós. Agitemos e toquemos pois as nossas sinetas; mas, por amor de Deus, não nos façamos mal algum. Muito se ririam em tal caso à nossa custa." 

A saída das tropas britânicas de Portugal foi considerada importante para manter a neutralidade portuguesa, esperando-se que afastasse o espectro da guerra imediata, mas foi uma vitória de Pirro do duque de Lafões. Ascendeu à direcção do ministério em Janeiro de 1801, e nomeado ministro-adjunto ao despacho, mordomo-mor da Casa Real e secretário de Estado da Guerra, acabou por afastar desta repartição o seu principal inimigo político, Luís Pinto de Sousa, o mais claro representante da tradição pombalina no governo português desde 1788. A Espanha e a França notaram a quebra de solidariedade entre as duas potências marítimas e aproveitaram-na para tentar separar de vez Portugal da Grã-Bretanha, obrigando Portugal a aceitar o fecho dos Portos aos ingleses e a paridade entre as várias marinhas de guerra europeias, e visando mesmo uma guerra terrestre. 

A ameaça de invasão agravou-se em princípios de 1801, com a saída dos embaixadores espanhol e francês de Lisboa em 19 de Fevereiro, e culminou com a declaração de guerra em 28 de Fevereiro. Devido à demora entre a declaração de guerra e o ataque a Portugal, só acontecido em finais de Maio, o duque de Lafões pensou que a Espanha não estava interessada nesta guerra. Nada de mais enganoso, desta vez! Ao demorar o ataque, a Espanha pretendia obter mais concessões francesas e tentava abrir negociações directas com o novo governo britânico de Addington, que acabava de subir ao poder em Março. Quando obteve as concessões de Paris que pretendia, e viu recusadas as negociações directas com Londres, atacou. Nesse dia fatídico, 20 de Maio de 1801, a posição política do duque, baseada na possibilidade de se conseguir manter a paz, entrou em rápido declínio. 

Mas o desfecho da participação de Portugal nas guerras da revolução francesa, que precederam as guerras do império, deu-se de uma forma menos negativa que em muitos outros países. Como dirá Rodrigo de Sousa Coutinho mais tarde, Portugal foi o país que tendo perdido menos na Europa, exceptuando a Grã-Bretanha, conseguiu realizar os seus objectivos no Brasil, conquistando vastos territórios a sul e a ocidente.

 

continuação


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