A evolução das Milícias

8.ª parte

 

A mobilização das Milícias e da população em 1810

 

Os anos de 1810 e 1811 viram as Milícias a cumprir cabalmente as funções para que tinham sido criadas, como veremos. De facto, não servindo fundamentalmente para atacar em campo aberto as tropas napoleónicas, servirão perfeitamente para atacar as linhas de comunicação do exército francês e ocupar territórios na sua retaguarda e flancos, que passavam a estar desse modo impedidos às correrias dos destacamentos encarregues de arrecadar mantimentos.

 

A população deslocada das províncias em 1810 em Lisboa,
na calçada de Arroios, uma das entradas da cidade

A mudança da estratégia britânica no outono de 1809, após a campanha de Talavera, na Extremadura espanhola, no seguimento da expulsão do exército de Soult de Portugal, levou o governo de Londres, aconselhado pelos seus agentes militares e políticos no local, a considerar que deveria ser a Grã-Bretanha a dirigir a estratégia anti napoleónica na península Ibérica, tendo como base principal Lisboa e já não Cádis. Até ao verão de 1809 os britânicos viam-se a si próprios unicamente como auxiliares do esforço bélico espanhol e potenciadores da vontade de resistência portuguesa, viam-se como adjuntos e consideravam a Espanha a potência dirigente. Por isso a elaboração do plano de campanha conjunto na Extremadura espanhola contra as forças do marechal Victor fora delineado pelo general espanhol Gregorio Cuesta, capitão-general de Castela-a-Velha.

Esta modificação da estratégia britânica implicava o recentrar do esforço na defesa de Portugal, sobretudo de Lisboa – tornando-a uma base indefetível do esforço de guerra britânico –, criando a necessidade de um controlo político apertado do país e das suas forças militares, o que implicava a sua integração na máquina militar britânica, assim como o abandono do apoio ao esforço militar espanhol, enquanto a Espanha não aceitasse as importantes contrapartidas exigidas pelo governo de Londres. As operações do exército britânico, integrando quase completamente o exército português no seu seio, criando assim uma espécie de Exército de Sua Majestade Britânica na Península, tornar-se-iam totalmente independentes das operações espanholas.

Os dirigentes britânicos no local, Arthur Wellesley, o recente visconde Wellington, comandante-chefe do exército britânico na península; Richard Wellesley, marquês Wellesley, irmão primogénito do general, embaixador junto da regência espanhola e logo a seguir secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros; Henry Wellesley, embaixador em Espanha em substituição do anterior, seu irmão, assim como os embaixadores em Lisboa, John Villiers, o futuro 3.º conde de Claredon, e depois Charles Stuart, 1.º barão de Rothesay em 1828 –, sendo que o apoio no gabinete em Londres de um quarto irmão – William Wellesley-Pole secretário principal para a Irlanda, substituindo o irmão Arthur, transitando da Secretaria do Conselho do Almirantado, não era displicente –, determinavam a diplomacia britânica na região e influenciavam determinantemente a sua política externa. Os irmãos formavam uma fação política com bases estritamente familiares que, por isso, podiam ser frágeis, e perigosas.

É neste contexto que se devem entender as decisões de aumentar o número de oficiais britânicos no Exército português, e de preparar a integração de brigadas portuguesas em divisões britânicas. É de notar que os oficiais que foram recrutados eram na sua grande parte oficiais que estavam inativos na Grã-Bretanha, nos batalhões que guarneciam a ilha e que, não tendo fortuna e por isso possibilidade de adquirir postos em batalhões expedicionários, se viam impedidos de progredir na carreira. De facto, como afirmam Rui Moura e João Centeno:

 

"A possibilidade de prestar serviço em Portugal era muito aliciante para oficiais, jovens e ambiciosos, que tinham as suas promoções bloqueadas nos seus regimentos de origem. No Exército britânico a antiguidade era praticamente a única regra de promoção e só havia promoções para vagas existentes dentro de cada regimento, o que normalmente só ocorria por reforma, morte em combate ou doença, acontecimentos não muito frequentes, apesar das múltiplas campanhas. Por outro lado, era tradição "comprar" a promoção e alguns dos mais jovens não tinham proventos de família que permitissem o avanço na carreira."

 

Isto é, os oficiais britânicos a prestarem serviço no Exército português eram oficiais normalmente sem posses, sedentos de ação, reconhecimento e promoção, estando, naturalmente, agradecidos aos oficiais generais britânicos que lhes tinham dado esta hipótese de progredir na carreira militar. Eram, claramente, um bom meio de enquadramento de quaisquer atitudes menos amistosas do corpo de oficiais português.

O controlo apertado do exército português de campanha necessitava de um controlo apertado do governo português – da regência –, já que do governo do Rio de Janeiro não era expectável qualquer tipo de entrave. O príncipe regente D. João, ao transferir a Casa Real para o Brasil entregara a continuidade dos seus direitos soberanos, e da sua família, à coroa de Portugal nas mãos da Grã-Bretanha, e mesmo a defesa da continuação da legitimidade a esses direitos, ao transferir-se para as terras austrais, já que esses direitos só seriam possíveis de restabelecer por meio de uma vitória do seu aliado na contenda com a França de Napoleão Bonaparte. Mas não só, D. João entregara também a defesa das suas ações perante as velhas monarquias europeias, que não simpatizavam com a transferência da casa real para o Brasil em 1808. O seu principal ministro, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, completamente isolado nos resquícios de corte nos trópicos que lhe era hostil, como se percebe da discussão do texto do que viria a ser o Manifesto do príncipe regente de 1 de maio de 1808, estava totalmente dependente da boa vontade de D. João e dos acordos que realizasse com os britânicos para que estes mantivessem o interesse na defesa dos direitos da casa de Bragança à coroa de Portugal. Como José de Vasconcelos e Sousa, marquês de Belas, escreveu:

 

"faça-se com Inglaterra um Tratado de Comércio, ou com outro qualquer pretexto, e seja o artigo principal: Que Inglaterra não há-de fazer a Paz sem o Príncipe de Portugal ser restituído ao seu Trono da Europa."

 

Os acordos, como se sabe, foram desastrosos – e serão conhecidos pelos contemporâneos como "ominosos" – e a falta de solidariedade do governo do Rio de Janeiro para com o esforço de guerra português, na sua luta contra a destruição do país empreendida pela França napoleónica e perante as intromissões britânicas apoiando sistematicamente, mas naturalmente, as posições dos agentes britânicos na sua luta pelo controlo do governo português. De facto, quanto mais "autónomas" foram as ações do governo de Lisboa em relação às determinações da coroa no Rio de Janeiro, mais naturalmente penderia o príncipe D. João a apoiar os agentes britânicos em Portugal, que lhe asseguravam, em último caso, quaisquer que fossem as suas atitudes de intromissão, os seus direitos e os da casa de Bragança ao trono português.

 

continuação

 

 

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