D. RODRIGO DE SOUSA COUTINHO
E O EXÉRCITO*

 

 
D. Rodrigo de Sousa Coutinho

D. Rodrigo de Sousa Coutinho

 

Manuel Amaral

 

As tentativas de reforma do Exército, no interior de um projecto global de reformas da sociedade portuguesa de finais do Antigo Regime.

 

INTRODUÇÃO

D. Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado da Marinha e Ultramar e, em seguida, da Fazenda, de Setembro de 1796 a Agosto de 1803, e, num segundo período, no Brasil, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, de 1808 a 1812, foi redescoberto pela historiografia portuguesa contemporânea nos últimos vinte anos.

A visão da sua actividade política limitou-se, até à pouco tempo, à análise do seu programa no campo das reformas financeiras, ou na tentativa de compreensão das suas posições como chefe do chamado "partido inglês". O que se tem tentado é mostrar as tentativas de reformas da elite dirigente de finais do Antigo Regime, ao ser confrontada com a crise financeira do Estado, provocada em Portugal pelo aumento brutal das despesas militares devido à entrada em 1793 na guerra contra a França revolucionária. Este quadro de análise manteve-se no campo do marxismo, ou "economicismo" se se quiser utilizar uma expressão mais inócua, que defende – ou defendia, já que a crise do modelo é muito sensível, sobretudo em Portugal – que as crises revolucionárias são provocadas pela crise financeira do regime político vigente, e que, não sendo este mais do que uma super estrutura do regime económico existente num determinado período, é o reflexo da crise do modo de produção. Por isso, considera-se normalmente que estas tentativas de reforma estão, a médio prazo, sempre votadas ao insucesso1.

Este artigo tenta ser um contributo para uma visão mais ampla da actividade de D. Rodrigo de Sousa Coutinho no decurso da sua actividade nos diferentes Ministérios em que participou, estudando a sua política no campo militar, mas tendo a preocupação de a inserir no seu programa político global. Na verdade, a sua influência nas reformas do exército português neste período é muito importante, primeiro na Secretaria de Estado dos Domínios Ultramarinos e Marinha por meio da qual controlava, não só a Marinha de Guerra, mas também as forças militares terrestres das diferentes colónias; posteriormente, como ministro da Fazenda, onde, por meio do cargo de presidente do Erário controlava as despesas do Exército português.

Mas esta influência não pode ser separada da sua política financeira, ou da sua política ultramarina, ou da sua política no âmbito da marinha de guerra, ou da política de fomento económico. Todas elas são meros aspectos sectoriais do seu projecto global de desenvolvimento económico.

O que tento mostrar neste artigo é que para o futuro conde de Linhares as diferentes partes que compunham o aparato militar do Antigo Regime português entravam, numa parte não negligenciável, nos seus planos de aplicação de um programa de reformas globais, assim como na defesa intransigente do país contra as tentativas hegemónicas francesas, mas também inglesas, participação que terá preparado o Exército para uma intervenção política autónoma que era desconhecida durante o Antigo Regime, e que só era possível a partir do momento em que a instituição militar estava institucionalizada, e vivia com regras claras e autónomas. O que também me levar a discutir o contributo de D. Rodrigo para o problema diplomático em que Portugal estava enredado desde 1793 e que teve em finais de 1807 a solução que se conhece2.

A ACTIVIDADE DE D. RODRIGO À FRENTE DOS ASSUNTOS ULTRAMARINOS E DA MARINHA

Quando o antigo embaixador em Turim tomou conta da Secretaria de Estado dos Negócios Ultramarinos e da Marinha, em Setembro de 1796, tinha atrás de si uma prolongada estadia no reino da Sardenha,ponto privilegiado de observação das tentativas de reforma, tanto da monarquia francesa, confrontada desde o fim da Guerra dos Sete Anos com uma grave crise financeira, como dasreformas das monarquias da península italiana, assim como dos progressos da Revolução Francesa.

A questão essencial que se colocava às monarquias de finais do século era para D. Rodrigo a do desenvolvimento económico. Os dois problemas fundamentais com que se confrontava Portugal no fim do século XVIII – o problema das finanças e o da defesa – seriam, para ele, resolvidos dessa maneira. Como tinha escrito já em 1784, antes do eclodir da Revolução, a riqueza das nações devia ser a principal preocupação dos "soberanos que vêem crescer a um tempo a opulência dos vassalos, a força do estado, e as suas próprias rendas"3.

Ora um facto com que Portugal se confrontava, e continuaria a confrontar num futuro economicamente mais desenvolvido, era o da sua vulnerabilidade. Vulnerabilidade face à Espanha, sobretudo quando aliada à França; vulnerabilidade das rotas marítimas face a qualquer tipo de ataque vindo ele das frotas espanhola, francesa ou mesmo inglesa. Para os homens do século XVIII, como o tinha sido para os do século XVII, Portugal não podia enfrentar uma aliança franco-espanhola sem a ajuda militar inglesa, sendo que estas potências não conseguiriam nunca proteger, nem mesmo conjuntamente, as rotas comerciais marítimas contra uma ameaça inglesa.

Logo, é natural que o desenvolvimento económico estivesse intimamente ligado ao do desenvolvimento da capacidade de defesa, que permitisse defender não só os domínios ultramarinos base essencial, para D. Rodrigo, do futuro enriquecimento nacional, mas sobretudo, porque mais vulneráveis, as rotas comerciais. Está ligado, por isso, ao aumento significativo da marinha, que nunca tinha sido possível, desde 1640, tornar uma força numerosa. Na verdade, só uma marinha numerosa poderia proteger as rotas comerciais atravessadas pelo comércio marítimo português.

Um caso paradigmático, para Sousa Coutinho, é o problema do Mediterrâneo. A inexistência de uma marinha numerosa, e eficaz, impossibilitava que o comércio português com a península italiana se pudesse realizar em navios mercantes portugueses, pois a Regência de Alger (os piratas, em resumo) estava em guerra com Portugal4.

O modelo que vai tentar aplicar é, na sua totalidade, francês. É o programa do duque de Choiseul, ministro francês da marinha e da guerra de 1761 a 1770. As reformas de Choiseul na marinha de guerra francesa, realizadas por meio da Ordenança de 25 de Março de 1765, tinham possibilitado a duplicação do número de navios num período de dez anos. Ao mesmo tempo, a técnica de construção naval tornara-se a melhor da Europa, ultrapassando mesmo a inglesa, devido à criação de uma escola de arquitectura naval. Para o manuseamento desta nova frota criou-se, em 1769, o corpo real de infantaria e artilharia de marinha e armazéns nos principais portos franceses da Europa e das colónias, assim como uma academia naval em Brest. Em 1778 a França tinha 80 navios de linha em comparação com os 123 ingleses, e podia pensar em pôr em causa com êxito, aliada à Espanha, o predomínio inglês nos mares5.

A actividade legislativa de D. Rodrigo, no campo específico da Marinha de Guerra, começou, significativamente, e de uma maneira à primeira vista inócua, com a resolução de 20 de Outubro de 1796,  em que se ordenava "que nas promoções de postos superiores aos de capitão de fragata  [equivalente ao posto de tenente-coronel no exército] se não considere de modo algum a antiguidade como título para aumento de posto, cuja graça somente servir de prémio ao merecimento, e capacidade"6. Uma semana depois, em 26 de Outubro, publica-se a carta de lei que  reorganiza o Conselho do Almirantado, criado em  1795 por Martinho de Melo e Castro, e para o qual deveriam ser nomeados, a partir daquele momento, oficiais "sem que a antiguidade, ou superioridade de patente lhes dê mais algum direito"; que cria a Junta da Fazenda da Marinha, para que "os conhecimentos do oficial militar da marinha venham coadjuvar os dos administradores, recebendo também destes o necessário auxílio, e destruindo radicalmente os vícios que  podiam ainda sentir-se à de administrações hereditárias". A junta é composta pelos responsáveis dos diferentes departamentos que estarão sob a sua alçada, o que é, para a época, uma novidade "radical". Para além disso, instituiu-se o Corpo dos Engenheiros Construtores. É uma clara tentativa de criar uma administração naval baseada em princípios meritocráticos, tendo como base os conhecimentos técnicos, tentando suplantar o patrimonialismo vigente.

Com estes objectivos, em fins de 1796, pelo decreto de 14 de Dezembro, definiu-se claramente a estrutura de comando nos navios de guerra, separando as funções de comando das funções administrativas. Em 28 de Agosto de 1797, criou-se a Brigada Real de Marinha, que agrupava num só corpo os 2 velhos regimentos da Armada e o recentemente formado regimento de Artilharia de Marinha. A novidade era  a militarização dos marinheiros das equipagens, organizados na divisão (equivalente ao batalhão no exército) de "artífices e lastradores marinheiros." A intenção era unificar num único corpo militar as três componentes das guarnições dos navios de guerra – os marinheiros, os artilheiros e os soldados que os defendiam. O corpo era composto de mais de 5.000 homens, e, segundo parece, a sua organização foi muito criticada7.

Mas a criação de uma marinha de guerra numerosa implicava o desenvolvimento de uma base produtiva suficiente para a realização dos projectos de expansão, e vice-versa. Assim, mandaram-se plantar pinheiros e sobros na coutada do Pinheiro, para que a marinha tivesse "abundância de Alcatrão, e Pixe", mas também para "procurar a Lisboa o combustível mais barato".

Tentou-se retomar a exploração das minas de ferro de Figueiró, aumentar a produção de cânhamo no Brasil, entre muitas outras decisões que afectariam todos os sectores de actividade do país. Para que a marinha tivesse, em quantidade e qualidade, os produtos necessários à sua actividade reformou-se, e expandiu-se, o Arsenal da Marinha, assim como a Real Fábrica de Cordoaria e Lonas. Desenvolvimento económico, modernização administrativa, aumento significativo dos meios de defesa naval, mas também terrestre como veremos, eram diferentes aspectos de uma política de desenvolvimento e inseparáveis dela8.

O plano de D. Rodrigo estava delineado desde o primeiro momento em que entrou para a Secretaria de Estado da Marinha, como a sua produção legislativa prova, mas tem, como é natural, dificuldade em ser aplicado. Para ultrapassar as dificuldades, como diz José Luís Cardoso, "Sousa Coutinho agia de forma a determinar a direcção política do governo, recusando um estatuto de  subalternidade equiparada", e logo em Fevereiro de 1797 pediu, pela primeira vez, a demissão; método que utilizará frequentemente, numa clara tentativa de conseguir maior espaço de manobra na condução da sua política9. Todas estas decisões, já referidas, não podem deixar de ter em conta que Sousa Coutinho se preparava para intervir no campo que considerava essencial para a manutenção da monarquia  portuguesa e para o seu desenvolvimento económico - as relações com os domínios ultramarinos, fundamentalmente com o Brasil. D. Rodrigo preparava o que chamaríamos hoje um "pacote" legislativo com vista a redefinir as relações no interior do espaço imperial português. A sua ideia era a de uma relação paritária entre as diferentes partes da coroa portuguesa.

As suas propostas serão apresentadas em Conselho de Estado em finais de 1797 ou princípios  de 1798, mas a promulgação das principais decisões será, por diferentes motivos, protelada  até 180110.  Mas algumas medidas foram desde logo tomadas, e, mais uma vez, a componente militar tem um papel precursor.  Na verdade, a partir do decreto de 16 de Setembro de 1799 os oficiais do Exército de  Portugal deixam de ter preferência no preenchimento dos postos militares dos domínios ultramarinos, e os que fossem enviados para o Brasil não teriam direito a avançar dois postos, como era habitual até aí.  Isto é, uma das mais importantes formas de subir rapidamente na hierarquia militar possibilitada aos  oficiais portugueses, e  não  só – a comissão no ultramar é extremamente importante para que sargentos e mesmo cabos acedam ao oficialato, muitos deles não passando pelo posto de alferes –, e de enriquecimento, pelo modo liberal como lhes eram dadas benesses (por meio de sesmarias no Brasil) no fim de cada comissão de três anos, é estancada.

Vale a pena ler parte importante do decreto pois ele aplica, no caso restrito dos assuntos militares, mas muito significativo para os brasileiros, as ideias de D. Rodrigo para o império:

"Sendo muito conveniente ao Meu Real Serviço que os Postos da Tropa Regular dos Meus Domínios se confiram indistintamente a Oficiais naturais de qualquer dos mesmos, havendo porém uma estabelecida proporção, que seja favorável aos naturais do Lugar do acantonamento da mesma Tropa; e querendo Eu ao mesmo passo que nos respectivos Provimentos se observe uma tão justa proporção, que nem uns nem outros tenham motivo de queixar-se: Sou servido proibir que os Oficiais, e Soldados do Exército deste Reino pretendam qualquer Posto para os Domínios Ultramarinos (...)  Hei outrossim por bem ordenar, que todo aquele Militar, que for servir nos referidos Domínios Ultramarinos, fique excluído do Direito de regressar ao Reino enquanto não obtiver o Posto de Coronel: e que igualmente não possa pretender mais do que o Posto de acesso, exceptuando os que forem despachados para o Reino de Angola, Capitania de Moçambique, e Estados da Índia, que poderão pretender outro além do que lhe competiria por acesso."

 No fundo, como se pode constatar da leitura, é fundamentalmente a ida para o Brasil que deixa de ser convidativa. O decreto deve ter tido aplicação prática pois seis  anos depois, em finais de 1806 e princípios de 1807, possivelmente no fim das comissões de 6 anos, nota-se o regresso de um número significativo de oficiais vindos sobretudo da Índia e de Angola, que possivelmente não quiseram continuar nas colónias e serem obrigados a preencher os requisitos da lei,  o de só regressarem quando ganhassem os galões de coronel. Convêm notar que esta lei não deve ter tornado Rodrigo de Sousa Coutinho muito popular junto de uma parte da oficialidade portuguesa, sobretudo dos aristocratas que eram, como grupo, os que mais beneficiavam das comissões de serviço no Brasil.

 

UM GRUPO DE ELITE PARA A APLICAÇÃO DE UMA POLÍTICA RADICAL DE REFORMAS: A SOCIEDADE REAL MARÍTIMA, GEOGRÁFICA E MILITAR.

 

A política de reformas para ser aplicada tinha que ultrapassar as oposições políticas, que se desenvolviam de todos os tipos de grupos de interesses11. Para isso, não só era preciso ganhar espaço político, como peso suficiente para ultrapassar as resistências de todos os tipos. Era preciso, em suma, organizar um grupo alargado de pessoas com capacidade para investigarem, proporem e liderarem essas reformas. Nos assuntos referentes ao Brasil, Sousa Coutinho tinha continuado e expandido a política de captação de membros da elite brasileira, começada por Luís Pinto de Sousa, alargada agora a gente com ligações radicais12.Em Portugal, para além do recrutamento de pessoal estrangeiro, de que o piemontês Napion será o principal exemplo, Sousa Coutinho propôs a criação de uma  instituição onde a discussão da aplicação do plano de reformas fosse uma realidade.

O  preâmbulo da lei de criação da Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica para o Desenho, Gravura e Impressão das Cartas Hydrográficas, Geográficas e Militares é muito claro nos  objectivos que se lhe dão, e que há primeira vista podiam parecer muito mais restritos.  No alvará de 30 de Junho de 1798 pode-se ler:  

"... Que desejando Eu por todos os modos possíveis ampliar e favorecer aqueles úteis  conhecimentos, que têm uma conexão mais imediata, seja com a grandeza e aumento da Minha Marinha Real e Mercante, seja com a melhor defesa dos Meus Estados, seja com a extensão das luzes, de que depende o mais exacto conhecimento de todos os Meus Domínios,  para poder elevá-los ao melhor estado de cultura, e promover as comunicações interiores, assim como favorecer o estabelecimento de Manufacturas, que se naturalizem facilmente, achando uma situação territorial, que mais lhe convenha. E sendo-me presente de uma parte a falta e penúria ... de boas Cartas Hidrográficas ... e da outra parte reconhecendo a necessidade de publicar-se a grande e exacta Carta Geral do Reino ...  E sentido igualmente a necessidade de fazer gravar para o serviço dos Meus Exércitos Cartas Militares ... Sou servida criar uma Sociedade Real Marítima ..."

 Os objectivos da Sociedade não são o de promover unicamente a impressão de diferentes espécies de cartas, mas prepararem todo o trabalho técnico que crie as bases do desenvolvimento económico do país. Aquele trabalho é necessário a este objectivo concreto, e por isso não o limita. Na verdade, das duas classes em que a Sociedade irá ser organizada,  a segunda, a classe das cartas geográficas, militares e hidráulicas, terá como objectivo secundário (o principal é publicar a carta topográfica) "gravar as Cartas de Canais e outras Obras Hidráulicas, que se julgarem mais próprias, para facilitarem as comunicações interiores do Reino, e para se fertilizarem os Terrenos por meio de irrigações." O grupo escolhido para a realização destes objectivos é o dos engenheiros, em Portugal ainda exclusivamente militares, acompanhado de alguns oficiais de Artilharia. São, de acordo com o título I da lei, oficiais da Marinha e do Exército, os professores das três academias militares, da Marinha, da dos Guardas Marinhas e da de Fortificação,  assim como quatro professores da Universidade de Coimbra.

Em 1807, de acordo com o Almanaque do ano de 1807, publicado originalmente pela Academia das Ciências, os membros são ao todo 68, dos quais 39 são oficiais do exército, e pelo menos 5 são oficias da marinha de guerra; 44 em 68 sócios, a quem D. Rodrigo de Sousa Coutinho explica, todos os anos, de 1798 até 1802 a política geral da monarquia portuguesa, assim como as realizações e os planos no domínio da política de reformas13.

Penso que se deverá considerar esta sociedade, não só como uma tentativa de criar uma câmara de ressonância para a divulgação dos projectos de reformas propostas por Sousa Coutinho, mas também a de criar à volta de um grupo alargado de técnicos um grupo de pressão no interior do aparelho de estado português. Grupo de que será interessante estudar a evolução política, sabendo, desde logo, da importância de Marino Miguel Franzini, um dos principais colaboradores de Sousa Coutinho, na defesa do regime liberal desde 1820 e que terá no ministro da marinha um dos seus principais patrocinadores,  assim como no irmão deste, o Principal Sousa, governador do Reino de 1810 a 181714.

Para além disto convêm, desde já, salientar que, pela primeira vez, Sousa Coutinho se imiscui num plano específico do exército, que era o da publicação urgente de cartas militares, e que, segundo parece, tinha sido proposto em 1797 pelo duque de Lafões, aquando da concentração do exército no  Alentejo devido ao perigo de guerra com a Espanha15.  Como veremos, o duque não lhe irá agradecer a intromissão, como seria de prever.

À sombra da actividade da Sociedade irá tentar-se realizar um conjunto de empreendimentos, que terão mais ou menos sucesso, que não vale a pena referir neste artigo. Interessa-me, tão somente, notar que aos engenheiros militares D.Rodrigo de Sousa Coutinho tentou entregar uma quota parte de responsabilidade no programa de reformas a tentar implementar em Portugal, pois só eles, enquanto grupo, tinham os conhecimentos técnicos necessários  à realização do plano global de reformas, tendentes ao desenvolvimento do país, e pensados por ele.

 

A PROPOSTA DE DESTRUIÇÃO DA JUNTA DOS TRÊS ESTADOS, E A MODERNIZAÇÃO GLOBAL DO EXÉRCITO

 Durante todo o Antigo Regime o Exército foi dirigido por meio de dois grandes tribunais régios, o Conselho de Guerra criado em 1640, como uma estrutura informal, e em 1643 como uma estrutura administrativa mais complexa, para tratar dos assuntos estritamente militares; e pela Junta dos Três Estados, criada em 1643, e reestruturada em 1654, pelas Cortes para administrarem, e dirigirem, a cobrança de um conjunto amplo de impostos para proverem ao pagamento das despesas militares, o principal dos quais foi o da Décima militar, e que substituiu uma comissão económica existente desde 164016.

Com a criação do cargo de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, em 1736, o Conselho de Guerra perdeu muito da sua importância na direcção dos assuntos militares, mas a Junta dos Três Estados, manteve a sua até finais do século XVIII, mesmo tendo perdido, para o Erário Régio em 1763, o controlo administrativo das tropas. Na verdade, a produção e compra de todo o tipo de material de guerra, dos mantimentos para o exército - "as munições de boca" para  homens e animais - estavam sob a sua direcção, assim como a inspecção das fortalezas de guerra, devido à qual os oficiais engenheiros estiveram, até 1752, sob a sua dependência directa. A Junta também controlava as coudelarias, entre outras repartições.

Quando Sousa Coutinho criou na Marinha a Junta da Fazenda e a Contadoria, mostrou o caminho que o exército devia seguir para melhor administração dos fundos que lhe estavam consignados. Em princípios de 1800, após o duque de Lafões ter apresentado a sua proposta de reorganização do exército17, a nova Junta Provisional do Erário Régio18, a quem foi enviado o plano, deu um parecer,  propondo que se criasse uma "Junta Militar Económica", que juntasse os chefes dos diferentes departamentos responsáveis pelas despesas militares, e que fosse presidida pelo próprio duque19.  A esta proposta, o duque de Lafões respondeu negativamente, considerando que a Junta dos Três Estados era a comissão económica tradicional e que, por isso, não era preciso inovar, mas sim repor-lhe o poder perdido; isto é, repor a situação anterior ao período de governo do marquês de Pombal. No fundo, dar outra vez à grande nobreza o controle completo das despesas do exército20. Ora o que estava em causa na proposta da Junta Provisional, de acordo com o modelo implementado na marinha, era a destruição desse tipo de administração patrimonial  e aristocrático, e substitui-la  por um controlo de tipo burocrático, e, em princípio, mais eficiente.  A proposta da Junta baseava-se no que tinha sido realizado na Marinha de Guerra, e por isso mesmo a resposta não deixa de ter isso em conta. Na verdade o velho duque afirmava que, "eu sou, Senhor, e serei sempre, quer se trate de mim quer dos outros, inimigo de todo o projecto que tende a concentrar nas mãos de um só indivíduo ou corporação  diversas  inspecções, maiormente  não tendo elas entre si afinidade [SIC]; e se para excusar-me da Presidência, que a Junta Provisional se lembrou de aconselhar a V.A.R. me confiasse, é preciso que a razões pessoais minhas, direi, Senhor, que me falta o génio para empregos de semelhante género..."

O que D. João de Bragança estava a criticar era o novo modelo proposto pelo ministro da marinha, e a concomitante concentração de poderes no secretário de estado, para além de críticas mais gerais (1.º) à criação de um comando unificado do Exército com a reunião num ponto do comando e da administração militares, e (2.º) à concentração do poder na Coroa, afastando a aristocracia, representada nos Tribunais régios, do poder. No fundo, o duque não queria a criação de um verdadeiro ministério da Guerra, que de facto só se conseguiu criar em 1821. Na verdade, a consulta da Junta Provisional tinha proposto o duque, como comandante em chefe do exército,  para presidente da nova junta, o que mostra, antes de tudo,  a natural preeminência de Lafões nos assuntos militares, mas o que Sousa Coutinho tinha realizado na marinha era a concentração de poderes no secretário de estado.  A proposta não será posta em prática, devido  à oposição do duque. Como dirá mais tarde o prussiano conde de Goltz,  "le Duc de Lafões n'aime point de nouveautés, à quoi vient encore le défaut d'activité et  de connaissances des détails.  Dommage, qu'il tient aux préjugés ...", concluindo que "si longtemps qu'il vivra,  l'ouvrage restera toujours incomplet, sans ensemble et sans réunion..."21.

As reformas a introduzir no Exército, consideradas necessárias por um grupo mais ou menos numeroso de personagens da corte joanina, só puderam ser postas em prática com a demissão forçada do duque de Lafões após a campanha de 1801 no Alentejo. A partir desse momento as reformas vão ser implementadas rapidamente. Assim, em Agosto é criada a Junta da Direcção Geral dos Provimentos de Boca para o Exército, e em princípios de 1802 é criada,  finalmente,  a comissão económica militar,  a  que se deu o nome de Real Junta da Fazenda dos Arsenais do Exército, juntamente com uma Contadoria dos Arsenais do Exército, Fundições, Praças, Armazéns,  Fábricas de Pólvora,  e Petrechos de Guerra22.

Mais tarde, em  Setembro,  cria-se, para apoio ao secretário de estado dos negócios estrangeiros e da guerra,  o Arquivo Militar,  para centralizar o depósito de cartas topográficas para uso militar, assim como a sua produção, mas também como centro de estatística23. Assim, a Junta dos Três Estados é, quase completamente, esvaziada das suas atribuições (resta-lhe, na parte militar, a inspecção das fortificações), e os seus oito deputados,  todos pertencentes à mais alta nobreza do reino, deixam de  pertencer a um importante tribunal régio.

Com Sousa Coutinho as instituições não são criadas para realizarem um único objectivo. É,  possivelmente,  uma das suas mais importantes deficiências, mas mostra-nos que os novos organismos, que eram considerados necessários para a realização das reformas, não tinham uma base suficientemente alargada de recrutamento, sendo por isso necessário concentrar nestes novos organismos actividades que lhes fossem complementares. Assim, à nova Junta da Direcção Geral dos Provimentos, presidida por D. Rodrigo enquanto Presidente do Erário, será atribuída, para além da administração das compras de mantimentos para o exército, a introdução de uma medida padrão em todo o país (título XVII do alvará de criação da  Junta), e que será o metro-padrão requerido à França republicana.

Para além desta medida de racionalização, propõem-se que a junta passe a intervir na fixação dos preços dos géneros agrícolas "vendendo-se [aos agricultores] em anos de escassez por preços razoáveis ... e sustentando em seu benefício os preços em anos de grande abundância, por meio de compras feitas com ordem, regularidade, e inteligência."(titulo V).

Mais uma vez, a um órgão integrado no aparato militar português era-lhe dado um objectivo de intervenção na sociedade em geral.

 

A TENTATIVA DE MODERNIZAÇÃO DA COMPONENTE MILITAR DO EXÉRCITO

 Com o afastamento do duque de Lafões podia-se pensar também em avançar decididamente na modernização da parte estritamente militar do exército, e para isso nomeou-se, em Dezembro de 1801, uma comissão de generais para propor as reformas necessárias24. A comissão,  presidida pelo secretário  de Estado D. João de Almeida e secretariada por D. Miguel Pereira Forjaz, o futuro secretário da regência de 1807 e1808 e regente de 1809 a 1820, é composta pelos três generais das Armas, e pelos respectivos inspectores gerais, pelo  novo quartel-mestre-general, assim como pelos dois marechais do exército.

O quartel-mestre-general marquês de La Rosière tentará não aceitar a nomeação, mas será obrigado a participar por ordem expressa do príncipe regente, e o marechal conde de Goltz, já em clara ruptura com D. João de Almeida, não assistirá a nenhuma reunião. As principais propostas serão apresentadas pelo general Forbes, escocês de nascimento mas português pelo casamento, entrado ao serviço de Portugal em 1762, e à data inspector-geral da infantaria, e são estas que serão enviadas, em princípios de 1802, com algumas modificações,  ao secretário de estado. A sua aplicação, sobretudo a reforma das Ordenanças, implicou uma preparação muito demorada e as propostas só estarão prontas em Abril de 1803.

Mas as reformas propostas não irão ser aplicadas imediatamente. O que defendo, é que terão sido proteladas por um misto de oposição no interior da corte, devido ao aumento de despesas que implicava a sua aplicação; de oposição do comando aristocrático do exército, sabendo-se como o marquês de Alorna e Gomes Freire de Andrade, aristocratas com influência política, se opunham a D. João de Almeida e a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, oposição que foi claramente manifestada nos Motins de Campo de Ourique; e do embaixador francês, o futuro marechal de Napoleão, Lannes, que desde que chegara exigira a passagem do exército ao pé de paz, o embarque dos regimentos de emigrados franceses ao serviço da Grã-Bretanha, e o afastamento de um elevado número de oficiais franceses ao serviço de Portugal25. É de qualquer maneira o que vai acontecer após a queda de D. João de Almeida e de D. Rodrigo. O Exército preparado, imediatamente após a campanha do Alentejo contra o exército espanhol, para a continuação da guerra (agora com a França que já tinha tropas estacionadas em Salamanca e Ciudad Rodrigo, comandadas por um dos muitos membros da família de Napoleão Bonaparte, o general Leclerc) por D. Rodrigo de Sousa Coutinho,  como secretário de estado da guerra interino, é desmobilizado após a assinatura do tratado franco-português de neutralidade, pela necessidade  de  diminuição das despesas. Mas propostas de reorganização, estranhamente, não irão ser esquecidas sendo nos anos subsequentes promulgados decretos que a vão regularizando, e que se prolongarão até 1816, mas de facto nunca sendo postas em prática.

Em Julho de 1803, D. Rodrigo de Sousa Coutinho mandou imprimir na Imprensa Régia, de que era o responsável enquanto Inspector, três livros em formato pequeno  com as propostas para reorganização do exército e das ordenanças.  Porquê D. Rodrigo, ministro da fazenda, e não D. João, o secretário dos negócios da guerra?26

A única maneira de compreender a "estranha" atitude do ministro da fazenda é perceber o que D. Rodrigo de Sousa Coutinho queria realizar na difícil conjuntura internacional de meados de 1803, com o regresso da guerra entre a França e o Reino Unido, e que se resume à tentativa de resistir por todos os meios ao hegemonismo continental de Napoleão, devido à, correcta, convicção de que a sucção de Portugal para o campo Francês, no âmbito da luta pelo domínio da Europa, nunca seria impedida por meio de paliativos de tipo monetário, por maiores que eles fossem, mas sim por meio da resistência militar.

É nesta perspectiva que me parece que devem ser entendidas as atitudes de Sousa Coutinho desde o momento do eclodir da guerra, em Maio de 1803, até Agosto de 1803, data do seu último pedido de demissão, desta vez aceite. As suas opiniões são-nos conhecidas pela carta-parecer que envia a D. João de Almeida no momento da discussão do tratado de subsídios a assinar com a França; assim como por uma carta ao príncipe regente, um pouco posterior27.

Para Rodrigo de Sousa Coutinho a estipulação de um montante global para a compra da neutralidade na nova guerra franco-britânica não era aceitável porque a assinatura do tratado não serviria para resolver o problema da intervenção militar francesa, mas só para o adiar. Por isso, só o pagamento de um subsídio anual de valor moderado era aceitável, numa perspectiva de adiamento da  inevitável invasão francesa, tempo considerado necessário para tentar pôr em movimento as alianças defensivas que Portugal tinha com a Rússia e a Grã-Bretanha, e também para que os valores gastos não fossem tão onerosos que impedissem a preparação para a guerra.  As nove medidas que D. Rodrigo propõe que se apliquem, para possivelmente dar força, numa primeira fase, às negociações com Napoleão, são, excepto uma, de carácter militar.

A 1.ª proposta é a de aumento do soldo ao exército, e a da nomeação de coronéis capazes, "sem haver consideração alguma particular para a sua qualidade" social; a 2.ª é a da diminuição das despesas da casa real; a 3.ª é de exercitar a artilharia a cavalo  (para Sousa Coutinho esta era uma espécie de arma "secreta" essencial ao exército),  a 4.ª é de realizar um novo recrutamento para completar o exército,  a 5.ª é a de estabelecer os armazéns de campanha, a 6.ª é a de criar um serviço de transportes militares mais eficiente, a 7.ª é a de reparar as fortificações mais importantes, a 8.ª é a de colocar o exército em acantonamentos, isto é em estado de entrar imediatamente em campanha, mas de maneira que permita o seu licenciamento na época das colheitas; finalmente, a 9.ª propõe a preparação da população para a guerra, por meio de folhetos.

O que propõe, em resumo, é que Portugal se prepare decididamente para a guerra. As suas propostas são consistentes pois entre as duas cartas, e possivelmente por isso mesmo, decidiu  levar ao maior  número  possível de oficiais as propostas de reorganização do exército, que estavam, ao que parece, adiadas  sine die, e que permitiriam preparar Portugal para a guerra. Compreende-se assim que seja Sousa Coutinho quem manda publicar, numa última tentativa de impor a preparação do exército para a guerra, as propostas da sua reforma e reorganização, e não D. João de Almeida.

As propostas não são de meros melhoramentos técnico-militares, como as que tinham sido propostas pelo duque de Lafões, ou como as que vão ser instituídas entre 1804 e 1807, no tempo de António de Araújo de Azevedo. São tentativas "radicais" de transformação das instituições militares portuguesas, que só serão verdadeiramente aplicadas, e mesmo assim só parcialmente, a partir de 1808, por D. Miguel Pereira Forjaz, e, mais tarde, pelo regime liberal28.

A organização proposta por D. Rodrigo de Sousa Coutinho não será aplicada, retendo-se dela as partes mais inócuas, mesmo que muitas delas tivessem vindo a ser defendidas desde há muito tempo por vários oficiais do exército, e por outras personalidades. Na verdade, para dar um exemplo, parece-me que a Organização Provisional das Ordenanças deve muito ao que Bacelar Chichorro tinha proposto na sua célebre memória sobre a província da Estremadura.

Em Agosto de 1803 D. João de Almeida‚ demitiu-se da secretaria de estado dos negócios estrangeiros e da guerra, logo seguido por D. Rodrigo. O chamado "partido inglês", o partido da resistência, cai, dando lugar ao partido do compromisso com a França, ao chamado "partido francês". Mas também podemos ver estes partidos numa outra óptica. Um como o "partido das reformas", outro, de acordo com o que na realidade fizeram, e não com aquilo que se pensa que poderiam  ter  feito, como o "partido  da  reacção", da contenção das despesas consideradas supérfluas,  para  manutenção, e mesmo alargamento, dos privilégios da aristocracia. Na realidade, ao contrário do que tinha vindo a ser proposto pelo grupo reformista, o que o "partido francês" realiza no âmbito militar, no período entre 1804 e 1807, é para além da rápida desmobilização do exército, a regulamentação clara dos diferentes tipos  de situação dos oficiais não empregados em serviço activo, e das suas antiguidades, a regulamentação do serviço dos engenheiros, assim como do Estado-Maior do Exército, para além do novo plano de uniformes, e da regulamentação das brigadas de infantaria, criadas em 1801 pelo duque de Lafões. Isto é, a preocupação essencial, deixa de ser a modernização material do exército preparando-o o melhor possível para a guerra, para passar a ser a da regulamentação de antiguidades, prerrogativas e privilégios.

O  que  me parece paradigmático da acção no âmbito militar do grupo que gira em torno de António de  Araújo, e anteriormente do duque de Lafões, é o decreto de 24 de Junho de 1806, em que se autoriza a promoção automática dos soldados cadetes filhos de conselheiros de estado,  isto é  dos filhos da mais alta nobreza, ao posto de capitão, saltando assim os dois postos de alferes  e  tenente.  A leitura do decreto ilustrar melhor o que digo:  

"Sendo-Me  presente,  que  uma das muitas e mui[to] distintas Considerações havidas pelos Senhores Reis destes Reinos com os Filhos de Conselheiros de  Estado,  que  buscam  o  Serviço  pela  carreira  das Letras, é a de serem promovidos aos Tribunais,  sem dependência de seguirem os primeiros Lugares; e que não sendo a Vida das Armas,  nem menos importante, nem  menos  trabalhosa, são contudo menos considerados aqueles Filhos dos mesmos Conselheiros, que, não só pelo antigo costume da Nobreza, mas até em consequência das Leis, que assim lho determinam, [as]sentam praça em algum dos Corpos do Exército ... Hei por bem declarar, que um dos Filhos de Conselheiros de Estado, que [as]sentar praça, seja qual for o motivo, porque entre no Serviço ... seja promovido em primeiro Posto ao de Capitão ..."

 O reforço dos privilégios da aristocracia no Exército, não é uma novidade, pois já  tinha sido proposta em 1801 pelo morgado de Mateus,  D.José Maria de Sousa Botelho quando, sendo secretário militar do conde de Goltz, defendeu a entrega dos regimentos a oficiais aristocratas,  pois,  segundo ele,  um dos  problemas do exército era a falta de "qualidade" [social] dos coronéis;  assim como pelo marquês de Alorna, quando, em 1799, defende o reforço do controle económico dos regimentos pelos seus comandantes, e liga-se à recusa da criação  de  uma  junta  económica  militar  pelo  duque  de Lafões29.  Não se pode deixar de falar em,  pelo menos, tentativa de reacção aristocrática no período que medeia  entre 1803  e 180730. Mas também nos permite compreender o porquê da escolha de um grupo de oficiais generais e superiores quase exclusivamente aristocrático para comandar em 1808 os  restos do exército português, a que Napoleão dará o nome, quando a força chegar a França, de «Legião Portuguesa».

A reforma do exército proposta por D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi assim posta completamente de lado, sendo que, como vimos, se regrediu em aspectos importantes. A ideia de que era possível defender Portugal de uma invasão francesa foi definitivamente posta de lado e, a partir daí, a política que prevaleceu foi rigorosamente a contrária, defendendo-se a impossibilidade de resistência a qualquer incursão bélica francesa.

A ideia de Sousa Coutinho era a de que era possível, mediante a organização da resistência popular, com um exército bem preparado e a cooperação da Grã-Bretanha, resistir a qualquer invasão. As suas ideias estão expressas, claramente, nas suas duas cartas citadas supra, mas a confirmação de  que esta ideia não era só uma mera hipótese teórica é-nos dada pela carta que Miguel Franzini lhe escreveu,  em Outubro  de  1808,  após a expulsão de Junot de Portugal.  Nela, o futuro deputado liberal, escreve:  

"Permita-me V. Excelência que de passagem tribute a minha admiração aos princípios sobre os quais V. Ex.ª se fundava quando demonstrava com a evidência matemática a impossibilidade de se vencer uma Nação quando ela verdadeiramente quer cuidar nos seus meios de defesa. Os incrédulos de então estão agora confundidos com o exemplo glorioso da Espanha. Oxalá que o entusiasmo e o patriotismo de Ex.ª se tivesse espalhado e se tivesse dignamente aproveitado"31.

 Parece-me difícil,  por isto mesmo,  e pelo  que  ficou dito  atrás  sobre a sua política de defesa,  aceitar que as propostas apresentadas por Rodrigo de Sousa Coutinho em 1803 sejam consideradas como podendo levar  a  considerar-se que este considerava unicamente viável a retirada da família real para o Brasil no caso de  uma  invasão  francesa,  como afirma Valentim Alexandre32.

 

CONCLUSÃO

Considerando, numa perspectiva global, a actividade de Sousa Coutinho é impossível não deixar de aceitar que só ele, e o grupo que girava à sua volta, consideravam possível a defesa de  Portugal contra uma invasão francesa, ou como era previsível mesmo naquele tempo, contra uma invasão conjunta franco-espanhola.

Mas não é neste campo limitado da possibilidade de defesa, ou não, contra uma força de invasão vinda de França, que a luta política na época se centrava. Era no campo das consequências dessa luta. Isto é, a luta política centrava-se no campo das consequências sociais da preparação do país e do seu exército para uma guerra "desesperada". Na necessidade  de reformar o exército, retirando à aristocracia o comando da força armada, de aumentar  ainda mais os impostos, fazendo-o incidir cada vez mais sobre as classes  possidentes, de racionalizar a estrutura da administração do país destruindo, na medida do possível, o patrimonialismo vigente, etc. etc.33

Foi neste campo que se jogou a carreira política dos homens de princípios de Oitocentos. Uns, que por isso se agrupam no chamado "partido francês", defendem o compromisso com a França, para, pelo menos para uma parte deles, manterem o status-quo interno; outros, agrupados no "partido inglês" defendem as reformas, mais ou menos radicais, que permitiriam criar as condições de defesa contra a invasão, aceitando como absolutamente necessárias compromissos com as classes intermédias.

Para  conseguirmos  descortinar  as  soluções globais propostas  por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, teremos que ter em conta que como embaixador de Portugal em Turim,  ele teve acesso  pessoal aos diferentes grupos de emigrados franceses que para lá  afluíram desde Julho de 1789 seguindo o conde de Artois,  irmão mais novo de Luis XVI e futuro rei de  França com o nome de Carlos X.  Aí conheceu o grupo aristocrático mais anti-reformista, mas também tomou contacto com antigos defensores de reformas como o antigo ministro de Luís XVI Calonne. Aí terá provavelmente conhecido também o marquês de Vioménil, futuro Marechal do Exército Português. O estudo das suas ligações com estes emigrados franceses, sobretudo o estudo comparado das suas propostas com as propostas reformistas dos ministros de Luís XVI anteriores à Revolução far-nos-ão provavelmente compreender melhor as suas intenções para Portugal. Na verdade, as propostas ao nível da política financeira poderão ser a parte mais visível da sua política reformista, mas estas estão longe de serem as únicas propostas.


NOTAS

* Este texto foi apresentando como comunicação ao XVII Colóquio da Comissão Portuguesa de História Militar: Nos 200 Anos das Invasões Napoleónicas em Portugal, realizado conjuntamente com Congresso Internacional e Interdisciplinar evocativo da Guerra Peninsular, tendo saído nas Actas publicadas com o título A Guerra Peninsular, Perspectivas Multidisciplinares, 2 vols., Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar e Centro de Estudos Anglo-Portugueses, 2008; vol. II, págs. 355-374.

1. V. José Luís Cardoso, O pensamento económico em Portugal nos finais  do  século  XVIII,  1780-1808, Lisboa, Estampa, 1989, sobretudo a Parte II: "Conjuntura financeira e política externa: os  Dilemas  de  desenvolvimento  numa  sociedade  bloqueada   (O trajecto  político de D.Rodrigo de Sousa Coutinho)", págs.125-211; Miriam  Halpern Pereira, "A  crise  do Estado de Antigo Regime: alguns problemas conceptuais e de cronologia", Ler História, n.º 2, 1983, págs.3-14, onde se afirma que "é a própria assunção de que a disfunção administrativa e económica é inerente ao sistema  político e… estrutura social, tornando imperativa uma mudança global, que define o eclodir da crise de um sistema político", pág. 13; Valentim Alexandre,"As ligações perigosas: o império  brasileiro  face  às convulsões internacionais (1789-1807)",  Análise Social, vol.XXIV (n.º 103-104), 1988, págs. 965-1016, que resume uma parte da sua tese de doutoramento de 1989 e publicada enquanto Os Sentidos do Império - Questão  Nacional e Questão Colonial na crise  do  Antigo  Regime Português, Lisboa, Edições Afrontamento («Biblioteca das Ciências do Homem – História», 5), 1993; Armando de Castro, "José Acúrsio das Neves, um doutrinador da sua época  historicamente  atrasado"  in  Obras Completas de José Acúrsio das Neves,  vol. 1, Porto, Afrontamento, s. d., págs. 61-136 (Acúrsio foi influenciado por D. Rodrigo). A fonte primordial para o estudo da actividade do futuro conde de Linhares é a obra do Marquês do Funchal, O conde de Linhares, Dom Rodrigo Domingos António de Sousa Coutinho, Lisboa, 1908; segue-se mais recentemente D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Textos Políticos, Económicos e Financeiros, Andrée Mansuy Diniz Silva (dir. ed.), Lisboa, Banco de Portugal («Obras Clássicas do Pensamento Económico Português», 7), 1993. A obra mais importante sobre D. Rodrigo de Sousa Coutinho é a de Andrée Mansuy-Diniz Silva, Portrait d’un homme d’État: D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte de Linhares, 1755 – 1812, 2 vols., Lisboa e Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2002 e 2006.

2. Tentativas de reforma, mais ou menos conseguidas, tinham vindo a ser propostas e realizadas desde os primeiros tempos do reinado de D.Maria I, sempre  numa perspectiva liberalizante. Mas uma perspectiva global das reformas que eram consideradas necessárias realizar, com vista ao desenvolvimento económico, parece-me que só D.Rodrigo de Sousa Coutinho a tinha. É, de qualquer maneira, nesta perspectiva que falo das reformas de Sousa Coutinho, sendo, por isso, desnecessário referir a origem de cada uma delas. Para dar dois exemplos, a nova delimitação das comarcas tinha começado com José Seabra da Silva, mas as bases em que ela devia assentar só D.Rodrigo as tentou criar consequentemente, com o impulso dado à realização dos trabalhos da carta topográfica de Portugal, necessários para um conhecimento claro da geografia do país. Outra criação atribuída a D.Rodrigo‚ a da Guarda Real de Polícia, já tinha sido proposta pelo conde de Oyenhausen, inspector da infantaria, e marido da futura Marquesa de Alorna.

3. Reflexões Políticas sobre os meios de criar e  fundar  solidamente em Portugal a cultura e manufactura da seda (1784), cit.em José‚ Luís Cardoso, O pensamento económico, cit., pág.132

4. Para o conceito de  vulnerabilidade, v. Valentim  Alexandre, art. cit., sobretudo as págs. 966-970; sobre a importância do comércio externo para Sousa Coutinho no desenvolvimento económico v.  J. L. Cardoso, ob. cit., págs. 135-138, em que se analisa o texto, que ficou  inédito, "Discurso sobre o comércio da Itália”.

5. Michael Lewis, The History of the British Navy, Harmondsworth, Penguin Books, 1957, págs. 156-158; Alfred Cobban, A History of Modern France, volume 1: Old Regime and Revolution, 1715-1799, 3.ª ed., Harmondsworth, Penguin Books, 1963 (1.ª ed., 1957), págs. 90-92; Hubert Méthivier, Le siècle de Louis XV, 4.ª ed., Paris,  P.U.F., 1977  (1.ª ed.,  1966),  págs. 106-110; Pierre Gaxote, Le Siècle de Louis XV, Paris, Fayard, 1961 (1.ª ed., 1933), págs. 342-343.

6. No exército a antiguidade deixava de  contar  somente  para  a promoção a Brigadeiro, primeiro posto do generalato.

7. As diferentes leis podem ser lidas na Colecção de Leis Militares, 1770-1809, Lisboa, na Impressão Régia, fls. 117, 119-123, 128-134, 139-142, e na Colecçãoo das Leis, Alvarás e Decretos Militares ...,  fls. 86-96.  Na carta que D. Rodrigo escreveu ao seu sucessor na Secretaria de Estado, o visconde de  Anadia,  afirma que a Brigada está "num pé‚ respeitável,  apesar das terríveis oposições, que tem experimentado da parte dos que por princípio detestam tudo o que pode ser útil." in Marquês do Funchal, ob. cit., p. 174. A brigada será  reorganizada e os seus efectivos diminuídos em 10 de Setembro de 1807, e criados os soldados nobres, equivalentes aos cadetes no exército, que a marinha nunca tinha conhecido.

8. O resumo dos planos realizados e a realizar sob o impulso de D.Rodrigo em todos os domínios encontra-se no discurso de inauguração da Sociedade Real Marítima, transcrito in Marquês do Funchal, ob.cit., págs. 105-115, assim como nos seguintes; para conhecimento  das propostas e medidas no campo financeiro, v. J. L. Cardoso, ob. cit., págs. 143 e ss.

9. J. L. Cardoso, ob. cit., p.144.

10. Kenneth Maxwell, "Condicionalismos da independência do Brasil" in Joel Serrão e A. H. de Oliveira  Marques  (dirs.), Nova História da Expansão Portuguesa, vol.VIII: Maria Beatriz Nizza da Silva (coord.), O  Império  Luso-Brasileiro, 1750-1822, págs. 335-395, sobretudo as págs. 374-382 sobre D.Rodrigo de Sousa Coutinho. Maxwell afirma que as propostas foram apresentadas em 1798.

11. Parto deste principio: não estou  preocupado em encontrar genealogias ideológicas e, por isso, como não penso que D. Pedro, O Condestável, tenha sido, em Albufeira e anteriormente, o primeiro representante da esquerda portuguesa, também não tento ver o "partido francês" como  representante do progressismo na luta dos partidos do tempo da Regência de D. João, e, dialecticamente, o "partido  inglês" como  representante do "conservantismo"  transportador, se me é lícito parafrasear António Sérgio. O anacronismo deste esquema chega a tal absurdo que se torna  inutilizável como base de uma tentativa de compreensão do que se discutia em Portugal em finais do século XVIII e princípios do XIX. 

12. V. Nova História da Expansão Portuguesa, vol. VIII, pp.376-380; esta política de recrutamento de "técnicos" vindos das franjas mais radicais da élite intelectual brasileira também é seguida por Sousa Coutinho em Portugal. Assim a Simões Marchiochi e Silva Lisboa  são-lhes oferecidas patentes de oficial na Marinha de Guerra, e mais tarde, com a transferência de D. Rodrigo para a Secretaria da Fazenda, ser-lhes-ão  possibilitadas  a transferência para o Exército, como oficiais engenheiros. Todos estes oficiais farão parte da Sociedade Real Marítima.

13. Uma visão alargada da actividade da Sociedade está  por fazer. O espólio deve ter ido para o Brasil, e outra parte para França com Junot.  Mas existem  materiais  espalhados  pelos  Arquivos  portugueses. Podem-se consultar José  Silvestre Ribeiro, História dos estabelecimentos  scientíficos, litterarios e artísticos de Portugal..., tomo IV, págs. 157-168, Lisboa, 1874; Ernesto de Vasconcelos, "Instituição da Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica", Arquivo das Colónias, vol. I, n.º 1, págs. 19-33, Lisboa, 1917; A. Teixeira da  Mota, "A Sociedade Real Marítima e os Primeiros Estudos das Marés em Portugal", Anais  do Instituto Hidrográ fico, n.º 2, Lisboa, 1965; idem, "Acerca  da  recente devolução a Portugal pelo Brasil de manuscritos da Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica (1798-1807)", Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, classe de Ciências, tomo XVI, Lisboa, 1972;  Max Justo Guedes, "Bicentenário do Chefe-de-Esquadra José Maria Dantas Pereira", ibidem, tomo XVII, Lisboa, 1974; Rosalinda Cunha, "Documentos diversos sobre a Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica, 1798-1809", Ocidente, LXXIII, Lisboa, 1967, págs. 57-67 e Inácio Guerreiro, "A Sociedade Real Marítima e o exame das cartas hidrográficas. Censura da Carta de Cabo Verde, de Francisco António Cabral (1790)", Série Separatas do Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 180, Coimbra, 1985.

14. Sobre Franzini ver de Maria de Fátima Nunes, O Liberalismo Português: Ideários e Ciências. O universo de Marino Miguel Franzini (1800-1860), Lisboa, INIC-Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, "Cultura Moderna e Contemporânea - 1",  1988.  Infelizmente, a relação essencial entre Franzini e os Sousa Coutinho nunca é abordada.

15. É o que afirma Garção Stockler nas suas Cartas ao Autor da Historia Geral da Invasão dos Franceses em Portugal..., Rio de Janeiro, 1813. Muitos investigadores militares de finais do século XIX vão utilizar esta defesa da actividade de Stockler como Secretário do Exército, sob o comando do duque de Lafões, de 1797 a 1801, como base para uma tentativa  de reabilitação o comandante-em-chefe do exército de 1801, tentando atirar as culpas da perda de Olivença para o poder político, tentando desculpar o comando militar. O capitão Sousa Pinto, o primeiro a apresentar essa justificação («A Campanha de 1801 – O Duque de Lafões», Revista Militar, Tomo III (1851), págs. 83-88) esquecia-se que nessa época o duque era o ministro assistente ao despacho, mordomo-mor da casa real e secretário de estado da Guerra – o de facto primeiro-ministro. Mas isso faz  parte da história das relações do exército com a monarquia tardo-novecentista.

16. v. Provas da História Genealógica da Casa Real.

17. As propostas só são conhecidas por intermédio da descrição de Stockler. A maior parte são consequência da experiência militar do  último quartel do século XVIII, como a de tentar aumentar o número de soldados voluntários e das tropas ligeiras (para os pensadores militares de meados do século XVIII uma coisa estava ligada à outra), assim como criar companhias de artilharia a cavalo, simplificar as evoluções tácticas, e criar um plano de exercícios práticos para os soldados e os oficiais. Outras vão no sentido do desenvolvimento normal das instituições militares portuguesas, como  as propostas de melhorar o recrutamento das Milícias, e de reformar as Ordenanças. Uma, é estranha, como a de tentar desenvolver na juventude portuguesa o espírito marcial e guerreiro, e que de facto é tentada por em prática em 1797 com a lei que obriga ao ingresso no exército a todos os herdeiros de vínculos, comendas e títulos. Outra é absurda, como a de tornar a cavalaria integralmente ligeira, mas mantendo aos soldados os peitos das couraças;  isto é  criar um cavaleiro híbrido, entre o couraceiro e o cavaleiro ligeiro, este naturalmente desprovido de qualquer protecção, pois a sua função não era o combate corpo-a-corpo.

18. Criada  em  6  de  Novembro de 1799 a Junta era composta por vários membros da aristocracia, sendo seu secretário o desembargador Tomás de Vilanova Portugal.

19. Arquivo do Tribunal de Contas, Fundo Geral do Erário Régio, "Livro de Registo  das Consultas da Junta Provisional do Erário Régio: Consulta sobre reformar-se o Exército,  criando-se  para esse fim uma Junta Militar Económica", n.º 5.333, fls.26-27.

20. A carta de resposta do duque de Lafões encontra-se em Ângelo Pereira, D.João VI, Príncipe e Rei, vol. I: A Retirada da família real para o Brasil, págs. 71-72.

21. Henrique de Campos Ferreira Lima, O Marechal Conde de Goltz, Comandante em Chefe do Exército Português, Separata do vol.VIII do Boletim do Arquivo Histórico Militar, Vila Nova de Famalicão, 1938, pág. 42; carta de 3 de Dezembro de 1800 (com o número 32), possivelmente  ao marquês de Ponte de Lima, mordomo-mor. Goltz, um dos responsáveis das reformas do exército  prussiano de 1788, tinha sido contrato em Maio de 1800, com a patente de marechal do exército, e chegado a Lisboa em fins de Setembro, nunca conseguindo ter uma  visão completa da situação do exército português, pois, segundo parece, ninguém lha conseguia ou não queria dar.

22. A Contadoria da Guerra tinha sido eliminada em 1763, pelo governo de Pombal, quando a Vedoria-Geral do Exército foi extinta, o que fez desaparecer a instituição que representava o controlo administrativo apertado do Exército pela Coroa, e entregando-a de novo, após os esforços de centralizaçõa do reinado de D.João V, à aristocracia cortesã que comandava, naquela época, os vários regimentos. O marquês de Alorna em 1799,  nas suas Reflexões..., vai propor um aumento ainda maior das atribuições  económicas dos coronéis, tentando diminuir ainda mais a capacidade de controlo económico e administrativo da coroa.

23. A direcção do Arquivo foi dada ao marquês de Marialva, filho do antigo ajudante-general do Exército e ajudante de campo do duque de Lafões. Os oficiais engenheiros empregados no arquivo eram também oficiais do antigo estado-maior do duque, como o capitão Neves Costa. É aqui que Marino Miguel Franzini, como oficial encarregue do desenho das cartas, empregado desde a sua criação, começou os seus célebres estudos estatísticos.

24. Também  se criou, em 20 de Julho de 1802, a Inspecção geral das Fronteiras e Costas Marítimas de Portugal e do Algarve, para propôr um conjunto de medidas, das quais só uma terá aplicação e que será a diminuição das praças fronteiriças e marítimas, por alvará de 27 de Setembro de 1805; e a Junta do Código Penal Militar, e melhoramento das Coudelarias do Reino, instituída em  21 de Março, composta de oficiais do exército e da marinha, e a que pertenceram o marquês de Alorna e Bernardim  Freire de Andrade, e que irá regular, em 9 de Abril de 1804, os diferentes tipos de crime de deserção e a proporcionalidade das penas a  aplicar a cada caso.

25. V. Manuel Amaral, “Uma reforma do Exército sempre adiada, 1801-1807”, comunicação apresentada no XV Colóquio de História Militar realizado em Novembro de 2005, e que será publicada nas Actas.

26. O barão de Widerhold, no seu artigo "Crise no exército português no ano de 1801...",   Revista  Militar,  vol  XV (1863), págs. 341-353, a pág. 343 afirma ter visto os avisos do ministro, de 11 e 14 de Julho de 1803, mandando imprimir os três livros. Nem todos os autores que abordam o problema seguem este autor, que é a sua única fonte, afirmando muitas vezes que a ordem de publicação é de D.João de Almeida de Melo e Castro.  cf. Fernando  Maia,  "Introdução" às Refleccões sobre o sistema economico do Exercito do marquês de Alorna; Ferreira Gil, A  Infantaria Portuguesa..., 1. D. Rodrigo era inspector da Impressão Régia e por isso era quem tinha que dar a ordem definitiva. Por esse motivo D. Rodrigo pode não ser a origem da ordem de impressão dos panfletos.

27. "Humilde parecer de D.Rodrigo de Sousa sobre comprar a neutralidade à França", de 20 de Junho de 1803,  in A.Pereira, D.João VI Príncipe e Rei, vol.1,  págs. 123-26 e "Quadro da situação política  da  Europa,  apresentado  ao  príncipe por D.Rodrigo de Sousa Coutinho", de 16 de Agosto de 1803, ibidem,  págs. 127-128. Ibidem,  págs. 125-126.  As propostas que apresenta um mês depois são mais alargadas. Agora propõe também a reforma das Milícias,  a  melhoria da qualidade da alimentação das tropas com introdução da carne na alimentação do soldado, e a militarização dos  transportes do exército, o que seria uma novidade na Europa do seu tempo, e que ainda nenhum exército tinha realizado, nem mesmo o francês.

28. Seria muito moroso resumir as propostas contidas nos três livros, tendo-o feito de uma maneira muito resumida na comunicação ao XV Colóquio de História Militar, já citada. A verdade é que, à primeira vista, tanto a proposta de "Organisação provisional do exército" como as outras, "Instrução  provisional para o comando das divisões do exército", como a "Organisação provisional para as  Ordenanças  ..." ultrapassam em muito as conclusões da comissão militar de 1802. O problema é que tirando o artigo citado do barão de Wiederhold não há  mais nenhum estudo sobre este assunto, e a investigação é por isso muito mais demorada. Convêm notar, para já, que é após a publicação destes livros que se dão os "Motins de Campo  de  Ourique"  em que uma parte da guarnição de Lisboa se amotina, sob o comando do marquês de Alorna e de Gomes Freire de Andrade. Como dirá  Domingos Vandelli ao príncipe regente, após os motins, "convêm ... cuidar-se enfim na subordinação das Tropas ... a qual não pode suprir qualquer  novo  Plano  de distribuição" [sublinhados meus] (A.Pereira,  D.João  VI. Príncipe e Rei,  vol. IV: Os últimos anos de um reinado tormentoso, pág 37); mas este problema tem sido remetido ou para uma conspiração maçónica, como defende Silva Dias, ou para um problema meramente corporativo, como defende, entre outros, Valentim Alexandre. A mim parece-me bem mais complexo, e estando inserido na área política, e, de qualquer maneira,  importante na queda de D.João de Almeida  de Melo e Castro e de D.Rodrigo de Sousa Coutinho.

29. Cartas de D.José  Maria  de  Sousa in Fernando Maya, "Os Preliminares da Organização de 1806", Revista Militar, vol. 54 (1902) a vol. 56 (1904); Marquês de Alorna, Reflecções sobre o estado económico do Exército, Lisboa, Ferin.

30. O que vem ao encontro do que afirmou genericamente Vasco Pulido Valente, no seu artigo "O Povo em Armas: a revolta nacional de 1808-1809", in Tentar Perceber,  Lisboa,  Imprensa Nacional-Casa da Moeda, "Temas portugueses", [1983], págs. 13-89 (publicado originalmente na  Análise Social),  quando afirma que "‚ é legitimo dar por certo ...  que nos anos finais do século XVIII se  assistiu  também em Portugal a uma 'reacção aristocrática." (pág. 87).  A tentativa de controlo do exército pela nobreza de corte segue o modelo da reacção aristocrática em França. A 3.ª edição deste artigo de Vasco Pulido Valente saiu, amputado desta importante parte, como Ir prò Maneta. A Revolta contra os Franceses (1808), Lisboa, Alentheia, 2007.

31. In Ângelo Pereira, ob.cit., vol.1,pág. 189.

32. V. Os Sentidos do Império,  Lisboa, Afrontamento, 1993.

33. Sigo a posição de Muriel Chamberlain, ‘Pax Britannica’? British Foreign Policy, 1789-1914, Londres, Longman («Studies in Modern History»), 1988, que defende que é  no campo da política interna que se pode, com mais proficuidade, entender as posições que os diferentes grupos  políticos  e  personagens dirigentes defendem no campo da política externa, pondo assim em causa a  ideia generalizada de que as decisões em política externa são determinadas, fundamentalmente, pela análise da relação de forças a nível internacional. A autora foi apresentada por Fátima Bonifácio no seu livro Seis Estudos sobre o Liberalismo Português, Lisboa, Estampa, 1992.

 

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