DAS MEMÓRIAS DO MARQUÊS DE FRONTEIRA

Histórias do marquês de Fronteira sobre a sua infância, e que relembram casos acontecidos a alguns dos membros da sua família no Portugal imediatamente anterior às Invasões Francesas, ainda naquilo que se chama o «Antigo Regime».

Nota: As ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico» ou para artigos na «História do Exército em finais do Antigo Regime», espaços da Rede Arqnet.

 

Os Príncipes

[Desenho de Francisco Bartolozzi (1805?)]

O Príncipe Regente D. João e a sua mulher a Princesa D. Carlota Joaquina

[Em 1805] Estavam então ausentes de Lisboa alguns dos meus próximos parentes e íntimos amigos de meu Pai, Mãe e Avó, os quais eu não conhecia senão de nome, começando por minha própria Avó e por meu tio, o Marquês de Alorna, porque em 1804 tinham sido mandados sair da Corte, uns em comissões honrosas, outros desterrados.

Nos primeiros, entravam o Marquês de Alorna, Governador da Província do Alentejo, o Conde de Sabugal para inspeccionar as fortalezas do Algarve, o Marquês de Ponte de Lima as da Beira, e D. Bernardo de Lorena, depois Conde de Sarzedas, Vice-rei da Índia. Nos últimos, estava minha Avó, intimada para sair da Corte em vinte e quatro horas.

Todos aqueles fidalgos eram tidos pelas pessoas mais ilustradas da Corte do Príncipe Regente, mas cumpre advertir que o Governo, nomeando-os para aquelas comissões, não teve em vista aproveitar as suas luzes e ilustração, mas sim afastá-los, da Corte, no desagrado da qual tinham caído.

Havia um outro fidalgo, também de grande ilustração, D. Pedro de Sousa Holstein, depois Duque de Palmela, que, tendo escapado ao desagrado da Corte, não foi compreendido naquelas medidas do Governo.

A polícia, dirigida então pelo famoso Intendente Pina Manique, depois Barão de Manique, ou com o firme propósito de comprometer parte da antiga aristocracia, ou porque ignorasse completamente o que se passava, fez crer ao Príncipe Regente que se tramava uma conspiração terrível, promovida pelo governo francês e espanhol, e principalmente pelo Príncipe da Paz, para o deporem e proclamarem a Princesa Carlota Regente do Reino, e fez passar minha Avó como pertencendo ás sociedades maçónicas e afrancesadas, o que não era nem nunca foi.

Minha Avó odiou toda a sua vida as sociedades maçónicas e detestou os jacobinos, porque tinha sempre presente à imaginação as cenas de horror que presenciara em Paris e Marselha, onde esteve na época do Terror da Revolução francesa.

Daqui resultou que esta tivesse o pensamento de organizar uma associação que intitulou a Sociedade da Rosa, com o fim de combater as ideias daquela Revolução e as sociedades secretas, por meio de outras sociedades secretas.

Apesar dos esforços empregados por meu Pai para afastar minha Avó do seu intento, a associação progrediu e muitas pessoas nela se filiaram, entre elas o famoso poeta Bocage, fazendo-se as primeiras reuniões na minha casa de Benfica.

Nestas reuniões, que tanto cuidado davam à polícia, tratava-se menos de política e mais de literatura e artes; passavam-se elas em improvisos e em música, arte em que minha Mãe e Tias eram eximias, e em uma esplêndida merenda dada por meu Pai contra sua vontade, apesar de estimar e amar a sociedade, mas com grande aplauso de minha Mãe, que, filha de poeta e também poeta, muito se divertia nestas reuniões.

Meu Bisavô, o Marquês de Alorna, que ainda vivia, e a quem dezoito anos de prisão nos segredos do forte da Junqueira tinham tornado prudente, pregava de missão contra tais reuniões; mas nada conseguia.

Tristes reuniões foram elas, com efeito, porque custaram a minha Avó doze anos de degredo em países estrangeiros, a meu Tio, o Marquês de Alorna, um sem numero de pesares e por fim a morte, e à maior parte dos sócios uma série de desgostos, de que mais tarde falarei.

A saída de minha Avó da capital não deixou de ter a sua parte cómica.

Em uma bela noite de Verão, chegando de Benfica à sua casa à Boa Morte, achou-a cercada de agentes de polícia e duma força de cavalaria e de infantaria da Guarda Real da Polícia 1, estando os seus quartos ocupados militarmente, e o Intendente Geral da Polícia, Manique, esperando-a para a intimar para sair de Lisboa em vinte e quatro horas e para se apoderar de todos os seus papeis.

Cumpriu a ordem, apoderando-se de todos os manuscritos, que mais tarde minha Avó a muito custo pôde recuperar. Eram eles os poemas que depois se imprimiram e que tanta honra fazem à literatura portuguesa.

O activo Intendente da Polícia examinou todos os cantos da casa, e, encontrando no quarto de cama de minha Avó um móvel que muitas apreensões lhe deu, apesar de o examinar com todo o escrúpulo, exclamou: Sr.ª Condessa, temos ali uma máquina! Minha Avó, sem lhe dar outra alguma explicação, respondeu-lhe: Sr. Intendente, eu nunca menti e por isso lhe digo que é exacto: há ali uma máquina.

O Intendente apodera-se com entusiasmo do móvel, persuadido de que levava o corpo de delito da Associação, manda-o com toda a cautela para a Intendência, afim de ser examinado por peritos, e corre a Queluz para informar S. A. de que a diligencia estava ultimada com o melhor êxito. Chegando à Intendência, pede o auto de exame da fatal maquina e acha-se com a descrição duma tripeça inglesa com as suas duas bombas!

Entre os papeis apreendidos estavam os estatutos da Sociedade da Rosa, e sobre eles foi mandado ouvir o bem conhecido Desembargador do Paço, Castelo, o qual respondeu «que, pela extravagancia, eram eles mais obra de poeta do que de conspiradores».

Minha Avó partiu para Aldeia Galega, escoltada por uma força da Guarda Real da Polícia, com seu filho, o Conde João de Oyenhausen 2, que tinha nove anos, deixando as três filhas solteiras que tinha, uma em casa da Condessa da Ega, e as outras duas com minha Mãe, e continuou a sua viagem para Madrid.

Poucos meses depois de estar em Madrid, foi intimada para sair dali, a exigências do Embaixador de França 3, vendo-se obrigada a partir para a Corunha, por não poder voltar ao seu país, e porque o Ministro de França lhe negou passaportes para Paris.

Na Corunha encontrou um antigo amigo, o Capitão-de-mar-e-guerra Lorde Beauclerk 4 que comandava uma nau inglesa, e, aceitando o oferecimento que ele lhe fez de a transportar para Inglaterra, foi para Plymouth e residiu em Inglaterra até à paz geral em 1815.

Foi aquele mesmo Lorde Beauclerk que, comandando em 1828, como Almirante, a estação naval inglesa surta no Tejo, me recebeu a bordo da sua nau almirante com minha Mulher e filha, quando fui obrigado a emigrar para escapar à perseguição do governo do usurpador: coincidência célebre que não quis deixar de notar aqui.

Entregue a nossa educação ao Abade de Medrões, empregávamos as horas de recreio em visitarmos os nossos muitos parentes, parte deles já de avançada idade, ora na companhia de minha Mãe e tias, ora na do Abade.

A casa que mais frequentávamos era a de meu tio Marquês de Belas, o qual tinha uma numerosa família, e era a sua casa então a mais elegante que havia em Lisboa.

Minha tia, a Marquesa, bem conhecida pela sua amabilidade, elegância e excelente coração, deu-nos durante a sua longa vida as maiores provas de afecto.

Meu tio dava magníficas funções, tanto na sua casa da Bemposta, como na magnífica residência de Belas, e delas mal me recordo como em sonho, porque, pela minha pouca idade, lhes não dava valor. Muitas pessoas, nacionais e estrangeiras, descreveram aquelas festas que ainda hoje conservam certa reputação e celebridade.

Os filhos do Marquês de Belas, primos co-irmãos de meu Pai, eram muito moços e davam-nos todas as provas de afeição.

O mais velho, o Marquês de Belas, D. António, morreu ao serviço do usurpador durante a guerra. A Condessa de Penafiel, com quem eu e minha mulher tivemos muitas relações e com quem convivemos alguns anos em Paris com intimidade, morreu, deixando-nos um grande sentimento. O Conde da Figueira, com quem eu e meu irmão conservámos sempre as melhores relações de parentesco e amizade, apesar da divergência de opiniões politicas, ainda vive. D. João de Castelo Branco, que há pouco faleceu, também mostrou sempre grande interesse pelos pupilos de seu pai. Era um excelente oficial de cavalaria e um belo carácter e esteve completamente paralítico por muitos anos, sem querer receber nem mesmo os próximos parentes. Apesar do seu isolamento, teve notícia da infausta morte de minha Mulher, e, mesmo do seu leito de dor, me dirigiu uma sentida carta de pêsames, que muito me sensibilizou e que conservarei por toda a vida. Meu irmão faleceu poucas semanas depois deste parente, e muito lhe custou o não ter podido assistir ao seu funeral, porque já estava doente, sendo uma das recomendações que fez o pedir que o desculpassem por aquela falta. A Marquesa de Viana já faleceu. Existem ainda mais três: a Marquesa de Angeja (que casou em segundas núpcias com um cunhado de minha Mulher, o Marquês de Angeja D. João), senhora dotada de excelentes qualidades e de quem recebemos sempre grandes provas de amizade, a Viscondessa de Asseca, e D. Guiomar, que nos deram sempre grandes provas de afeição, recebendo eu, principalmente nas minhas aflições durante o período da vida em que principio a ditar estas memórias, as maiores demonstrações de simpatia, pelas quais lhes estou extremamente reconhecido.

Também frequentávamos muito a casa do Marquês de Castelo Melhor, que era irmão da Mãe de meu Pai, e a quem não conheci, porque morreu pouco tempo antes de eu nascer, mas existia a Marquesa de Castelo Melhor D. Mariana, a qual se mostrou sempre boa para connosco.

Era filho segundo desta casa D. Luís de Vasconcelos e Sousa, meu Tio-avô, e residia em companhia de sua cunhada e sobrinhas.

Concorríamos também muito a casa do Conde da Ribeira, primo co-irmão de minha Mãe, e sua irmã, D. Leonor da Câmara, foi a maior amiga que minha Mãe teve. É já falecida e conhecida pelo título de Marquesa de Ponta Delgada. Hei-de ter muitas ocasiões de falar nesta parenta, porque foi ela que com o maior desvelo educou a única irmã que tive.

Havia outras famílias com quem estávamos estreitamente relacionados: eram os filhos e netos dos Távoras, os filhos e netos do Conde de Atouguia, o filho do Duque de Aveiro, e os descendentes do Marquês de Pombal, que são também meus parentes, pelo casamento que o intitulado Grande Marquês obrigou a fazer a sobrinha de meu terceiro Avô, Marquês de Távora, com seu filho, o Conde da Redinha, depois de lhe ter feito decapitar o Tio e encarcerar o Pai!

O descendente do Duque de Aveiro vivia em casa de meu Tio, o Marquês de Alorna, onde tinha um quarto e uma pequena mesada. Os descendentes do Conde de Atouguia não tinham casa nem recebiam visitas, via-os em casa dos meus parentes e na minha, onde eram comensais por necessidade, vendo-se na triste situação de se vestirem mais modestamente que um criado decente de qualquer casa. As senhoras dos Távoras e Atouguias visitava-as nos conventos da Madre de Deus, Albertas e Sacavém, onde o Marquês de Pombal as tinha encarcerado e obrigado a professar na mais tenra idade, tendo algumas entrado para os conventos acompanhadas pelas suas amas.

A posição da outra parenta, também Távora, era muito diferente, porque, tendo casado com o Conde da Redinha, como já disse, ocupava os palácios das Janelas Verdes e Sintra, que todos tinham sido propriedade de seus avós, mas que, confiscados, foram vendidos em hasta pública, e comprados pelo Marquês de Pombal por módico preço!

No Verão de 1806 tomou a minha família a casa do Conde de Lumiares, a S. José de Ribamar, para irmos aos banhos de mar. Era nosso vizinho meu tio e tutor, o Marquês de Belas, que residia no seu forte, e, segundo as ideias que tenho, foram contínuos os divertimentos e festas.

Todas as tardes íamos merendar ao forte, e os bailes, concertos, ceias, pescas ao candeio, e passeios no rio, nas tardes serenas, com bandas de música militar, eram a ocupação dominante dos habitantes daquele sítio.

Foi então que vi pela primeira vez uma esquadra à vela, porque presenciei a entrada no Tejo da esquadra do Almirante Jervis, Lorde St. Vincent 5, mas não me recordo se foi antes ou depois da grande batalha do Cabo S. Vicente.

A esquadra ancorou entre Pedrouços e S. José de Ribamar, e tanto a minha família, como as mais que ali residiam, festejaram muito este acontecimento e deram uma grande serenata, indo as músicas da guarnição de Lisboa e Belém em escaleres do Arsenal, e cantores em outras embarcações.

Apesar da minha pouca idade, fui da partida. A noite estava muito amena e fizemos por várias vezes o rodeio dos navios. Lembro-me de que me fez grande impressão quando, a um tiro de peça, se iluminou toda a esquadra com fogo de bengala.

O Almirante, com o seu Estado-maior, veio no dia seguinte a terra e esteve em casa de meu tutor e na minha. Podia ainda hoje fazer o retrato dele, o que julgo inútil, porque é bem conhecido, e descrever os uniformes que, como todos sabem, eram muito diferentes dos actuais.

Foi nesta ocasião que vi, pela primeira vez, um cavalheiro de quem fui amigo e colega na Câmara dos Pares, o primeiro tenente José de Vasconcelos, depois Barão de Lazarim, Vice-almirante e Major General da Armada, com quem, pouco antes da sua morte, recordei este dia, lembrando-se ele de me ter trazido ao colo.

Não se limitavam os divertimentos ás simples partidas que deixo mencionadas, porque muitas vezes fizemos digressões a Sintra e Belas, apesar dos péssimos caminhos que faziam com que chegássemos a casa, eu e meu irmão, de tal forma moídos, que não dávamos acordo de nós.

Ainda no ano de 1828, antes de emigrarmos, indo visitar nossa tia, a Marquesa de Belas, víamos nas suas cocheiras uns carros de palha descobertos, que ela tinha trazido de Inglaterra e que eram a equipagem da moda na época em que fazíamos as digressões que deixo referidas. Esta vista já então nos fazia recordar com saudade do tempo da nossa meninice: o que sentirei eu agora, tendo passado por tão duros lances e sofrido tantos desgostos e penas!

Nos fins do ano recolhemos a Benfica, e os nossos vizinhos Belas à sua casa da Bemposta, em Lisboa, onde íamos repetidas vezes, ora na companhia do Abade de Medrões, ora com João Evangelista 6, sendo recebidos sempre com todo o carinho e amizade, fazendo nossos tios todo o possível para nos divertir e entreter.

Muitas vezes vi chorar meu tio, sem perceber a causa das suas lágrimas; foi mais tarde que soube que elas eram procedidas de saudades por meu Pai, saudades que a nossa vista lhe avivava.

Meu tio era homem de excelentes maneiras, estatura regular, magro, empoado, e vestido com muito asseio. Tinha um costume célebre, que era andar sempre de chapéu por casa, chapéu redondo de abas largas; só uma visita de cerimónia o obrigava -a tirá-lo, e ainda assim, muitas vezes, pedia licença para se cobrir. Era generoso e magnífico, as suas casas eram as mais bem mobiladas da capital, as suas equipagens as mais elegantes.

Apesar do seu grande asseio e das suas maneiras distintas, não cuidava nada do seu vestuário; muitas vezes as suas casacas e calções achavam-se em tal estado de velhos e rotos, que minha tia era obrigada a impedir que ele os vestisse, sendo preciso que o seu alfaiate tive sempre, por precaução, fato de reserva que se ia buscar à ultima hora.

A Universidade de Coimbra, que frequentou e onde se formou, a carreira da magistratura, que seguiu desde a sua mocidade, começando por desembargador do Porto, deram-lhe um grande amor pelo trabalho, e ainda hoje tem a reputação de haver sido um funcionário publico exemplar no cumprimento dos seus deveres. A maior parte das vezes que o vi, ou foi com a pena na mão, escrevendo no seu gabinete, ou lendo.

Muitos anos depois, ouvi dizer ao Duque de Palmela, em Inglaterra, que as duas missões que meu tio desempenhou no fim do século passado e principio deste, em Londres, lhe faziam muita honra, pela maneira distinta por que representara o seu país.

Como já disse, era ele filho segundo da casa do Marquês de Castelo Melhor, e eram três irmãos e uma irmã. A irmã era a Mãe de meu Pai, e, por consequência, minha Avó, a Marquesa de Fronteira; o mais velho era o Marquês de Castelo Melhor que não conheci; seguia-se D. Luís de Vasconcelos e Sousa, Vice-rei no Rio de Janeiro, e que morreu Conde de Figueiró; e, por ultimo o meu tutor.

Minha Avó era muito instruída e tinha muita vivacidade, sendo muito original nos seus gostos, e os três irmãos eram cheios de instrução e talento e exerceram os primeiros lugares do Estado com honradez e habilidade, sendo também muito originais.

As originalidades do Marquês de Castelo Melhor são proverbiais e muito conhecidas, principalmente entre os seus parentes. Abri os olhos ouvindo contar, tanto aos antigos criados da minha casa, como à família de meus tios, as grandes ratices daquele meu próximo parente.

Principiavam elas pela sua equipagem, que era uma carruagem com todos os cómodos possíveis, tendo dentro uma cantina com todos os objectos de cozinha e de serviço de mesa, e uma guarda-roupa com fato para toda a estação, porque, dizia ele, muitas vezes há frio no Verão e calor no Inverno, rima cabeleira de corte, um espadim e uma casaca de corte, pois que, sendo Mordomo-mor da Rainha, queria estar sempre preparado para poder cumprir qualquer ordem de S. Majestade, em qualquer lugar que a recebesse. Na traseira andava sempre um molho de archotes e o fato dos criados, de Verão e de Inverno.

A carruagem estava sempre pronta a sair com as suas duas parelhas de muares arreadas, os dois bolieiros e moços de rodas junto a ela, com as suas librés vestidas, e um dos moços de estrebaria também pronto. De seis em seis horas rendiam-se os criados e cavalos.

Os moços da estribeira, que muito bem conheci, eram dois mulatos, um chamado Fortunato e o outro Madrugada.

O Marquês tinha a pretensão de ser muito exacto nas horas e não queria esperar: por isso tinha este serviço assim montado. A sua pretensão, porem, era de fantasia, porque, quando dizia que queria sair às 5 da manhã, saía ás 6 da tarde!

A sua sala e quartos eram inteiramente independentes do resto da família, tinha neles as mais cómodas cadeiras do tempo e, em geral, ali almoçava e jantava. Comia bem, mas não queria intervalo algum, de prato a prato. Nunca estava contente com o serviço dos seus criados à mesa e por isso inventou uma espécie de prateleira tríplice, onde se colocavam os pratos, quando vinham da cozinha, a qual punham em frente dele, de sorte que o criado não fazia mais do que tirar o prato servido, e ele ia passando, debaixo para cima, os pratos de que queria servir-se.

Tinha criado um preto anão, com uma cabeça disforme, o qual conheci e se chamava Miguel, e mandou a Angola saber a genealogia do preto; vindo ao conhecimento de que ele descendia, em linha recta, do Rei do Congo, ordenou a toda a família que lhe dessem o tratamento de Alteza e o tratassem por Príncipe, sendo, por isso, conhecido, dali em diante, pelo Príncipe Miguel. Jantava no mesmo quarto de meu tio, em uma mesa pequena, e andava vestido com uma farda encarnada bordada a oiro, botas e esporas à picador, chapéu armado agaloado e espada à cinta.

Quando meu tio saía de carruagem, levava-o no assento de diante, e, quando saía a cavalo, ao seu lado direito.

A qualidade ou habilidade especial deste indivíduo era arremedar o seu senhor, e, nas horas vagas, de ócio ou recreio, dizia-lhe meu tio: Príncipe Miguel, arremeda-me lá.

Meu tio, em tendo calma, não se incomodava: tirava a cabeleira, em qualquer parte onde estivesse. Em casa andava sempre sem ela. Era calvo, e tinha uma preta velha, de setenta anos, já muito trémula, chamada a mãe Catarina, que, com um espanador, lhe enxotava as moscas, dando-lhe, muitas vezes, fortes carolos, o que muito o zangava, seguindo-se cenas violentas entre a preta e o seu senhor, dizendo-lhe este: A mãe Catarina nunca mais me há de enxotar as moscas!. Mas pouco depois, tornava a chamá-la, porque, dizia ele: nunca tinha achado quem lhe enxotasse as moscas com mais delicadeza!

Era Presidente do Senado de Lisboa e sempre tinha a boa tenção de ir presidir ás suas sessões, mas faltava a maior parte das vezes, por causa das suas distracções. Na véspera, dizia: O Senado principia as suas sessões ás 9 horas: às 8 1/2 quero a carruagem à porta. À hora marcada estava à porta a equipagem que já descrevi, mas, só passado, muito tempo, descia meu tio, de capa e volta, acompanhado de certo numero de criados, porque era rígido observador da etiqueta, e levando à sua direita o Príncipe Miguel pronto a montar a cavalo ou a entrar na carruagem, conforme lhe ordenassem.

Chegado abaixo, perguntava ao moço da estribeira que horas eram: a maior parte das vezes era meio-dia e uma hora, mas meu tio queria por força que fossem nove e, só depois de grande discussão, conseguiam convencê-lo de que era tarde. Tomava então uma pronta resolução, porque lhe era impossível voltar para cima e abandonar a ideia de sair, e contava-me João Evangelista que o vira, em uma daquelas ocasiões, mandar seguir para a sua Quinta da Romeira, perto de Bucelas, no mês de Agosto, ao meio dia, porque não podia sofrer o calor de Lisboa, e que, chegando à quinta e tendo descansado duas horas, não lhe agradando o frescor da Romeira, partira para a Bemposta, para casa de seu irmão, o Marquês de Belas, para tomar uns gelados que ali se serviam a certas horas, o que lhe custou a perda duma das parelhas, que lhe ficou estropiada no pátio da casa do irmão.

Os seus passeios a cavalo davam que falar. Muitas vezes encontrava-se o Mordomo-Mor da Rainha, Presidente do Senado, pela estrada de Benfica, ao grande galope, em mangas de camisa, calva à vela, seguido do seu pajem preto e da sua equipagem puxada a quatro.

Era muito religioso, mas não havia no reino aldeia, por mais insignificante que fosse, que não tivesse uma capela mais decente do que a sua, que era a bem conhecida capela na calçada da Glória. Os paramentos, porem, eram magníficos e tinha os melhores cantores da capital, entre eles o famoso Angeleli, e, como pregadores, o padre Francisco Manuel, bem conhecido pelos seus sermões e pelas suas composições para o teatro português, e o padre Diogo. Todas as freguesias e conventos pobres, que não podiam com a despesa do Lausperene, recorriam a meu tio e a exposição era logo feita na sua capela.

Os pregadores é que levavam muito má vida, porque anunciava uma festa a Santo António e, à ultima hora, pedia ao pregador que pregasse de S. João, e, como não desistia do seu intento, forçoso era que o padre improvisasse um discurso a S. João.

Muitas vezes batia à porta de Benfica às 2 horas da noite, os criados abriam e iluminavam as salas, e ele dizia-lhes que vinha tão somente para rezar o ultimo salmo de Laudas, porque estava tão obtuso que lhe tinha esquecido de cor e precisava lê-lo. Acabada a leitura, pedia que o desculpassem com sua irmã por se não demorar mais, pois queria ir visitar o Lausperene, o que não tinha feito por falta de tempo.

Como Mordomo-Mor de S. M. a Rainha, tinha que assistir ao beija-mão, mas chegava quase sempre tão tarde ao Paço, que não encontrava já ninguém na, sala do trono, e perguntava aos porteiros por que razão estavam as salas desertas, ficando muito surpreendido quando lhe diziam que, havia muito, tinha acabado o beija-mão.

Basta de originalidades de meu tio.

Minha Avó tinha a mania das viagens e nunca se sabia aonde estava. As suas viagens, porem, limitavam-se ao espaço que há entre as estradas do Campo Grande e da Luz. Morava em Benfica e tinha várias casas de campo em Carnide, Palma e Telheiras, para onde se mudava, com a sua numerosa família, muitas vezes no ano.

Meu tio Luís viveu mais de setenta anos, ralhando com todos que dele se aproximavam; apesar disso, fez um belo governo no Rio de Janeiro, e foi um excelente Presidente do Erário.

 


Notas:

1. A Guarda Real de Polícia foi criada em Dezembro de 1801 por proposta de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de acordo com um projecto do Conde de Oyenhausen, quando era Inspector da Infantaria, tentando introduzir em Lisboa um corpo como a Garde de Paris, conhecida pelo nome de Guet à cheval, tendo sido o seu primeiro comandante o conde de Novion, oficial francês emigrado. (regressar ao texto)

2. João Carlos Ulrico de Oyenhausen e Almeida, conde de Oyenhausen Gravenburgo, nasceu em 31 de Outubro de 1799 e morreu em 14 de Agosto de 1822, tendo chegado ao posto de tenente-coronel no Regimento de Dragões de São Paulo, no exército do Brasil. (regressar ao texto)

3. François, marquês de Beauharnais (1756-1823), irmão mais velho do primeiro marido da imperatriz Josefina, mulher de Napoleão Bonaparte, era embaixador de França em Madrid desde Janeiro de 1807 mantendo-se em funções até 1808. (regressar ao texto)

4. Lord Amelius Beauclerck (1771-1846), filho do duque de St. Albans, entrou para a marinha aos 11 anos. De 1800 a 1810 comandou naus de linha na frota britânica do Canal da Mancha. Em 1819 foi promovido a vice-almirante e de 1824 a 1827 comandou a estação naval britânica em Lisboa e na costa de Portugal. Possivelmente ainda se encontrava em Lisboa em 1828. (regressar ao texto)

5. John Jervis, conde de St. Vincent (1735-1823). Em Fevereiro de 1797 venceu a batalha naval em frente ao Cabo de São Vicente, em que derrotou uma frota espanhola. Foi primeiro lorde do almirantado de 1801 a 1804, tendo sido nomeado almirante da frota em Março de 1806. Em Agosto desse ano dirigiu uma expedição militar a Portugal, enviada com o pretexto de a França se preparar para invadir Portugal, mas que acabou por não desembarcar. É este facto que o marquês relata. (regressar ao texto)

6. João Evangelista Machado era o mordomo do marquês de Fronteira. (regressar ao texto)

Fonte:
D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto,
Memórias do Marquês de Fronteira  e d'Alorna ... ditadas por ele próprio em 1861,
revistas e coordenadas por Ernesto de Campos de Andrada, I-II

Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926,
Parte I - 1802 a 1808, Capítulo II, págs.25-34.

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