DAS RECORDAÇÕES DE JACOME RATTON


Parágrafos 40 a 46 das memórias do industrial de origem francesa Jacome Ratton, em que este escreve sobre as manufacturas existentes em Portugal em finais do século XVIII e inícios do século XIX, e da importância do reinado de D. José, e do governo do marquês de Pombal, para o estabelecimento das várias manufacturas existentes na época. Esta obra foi durante muito tempo uma das principais fontes para a história do desenvolvimento manufactureiro no tempo do marquês de Pombal, mas Jorge Borges de Macedo, veio colocar o problema numa perspectiva mais correcta e completa, sobretudo com os seus dois livros citados em baixo.

Nota: Algumas das ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».

 

Jacome Ratton

Jacome Ratton

§ 40. Sobre a Direcção da Real Fábrica da Seda e Obras das Águas livres. Propriedade da fábrica de Alcobaça transferida a particulares. Carta topográfica dos canos das Águas livres.

 

Tanto a Direcção da Real fábrica da Seda 1, como a das Águas livres 2 foram submetidas à inspecção da Real Junta do Comércio 3, pelo Alvará da criação deste Tribunal em 1788, o que na prática não teve lugar; porque os Presidentes deste iam algumas vezes assistir às sessões daquela Direcção composta de quatro membros, em cujo número houve, quase sempre, dois, que eram também Deputados da Real Junta; e por isso esta não pediu, nem se lhe deu conta daquela repartição; do que resultou, que por morte de um dos tais Directores, e Deputado do Tribunal, se achou ser devedor ao cofre daquela Direcção de uma avultada soma: prejuízo que se teria evitado, se se houvesse cumprido o que tinha sido ordenado no Alvará. Este Director foi aquele mesmo Deputado, que mais afincadamente se opôs à minha moção sobre o complemento da lei dos falidos, e concessão da comissão do costume aos administradores nomeados por autoridade superior às negociações dos Portos de Ásia na Casa da Índia.

Mas tratando neste lugar somente dos pontos em que me julguei autorizado a entrar, a respeito daquela Direcção, lembrarei: primeiramente, que foi a instâncias minhas, e razões com que as acompanhei, que por Autoridade Soberana se transferiu aos negociantes José Carvalho de Araújo, e Julião Guillot, a fábrica 4 de cambraias, e esguiões 5, que no precedente Reinado, se havia estabelecido na Vila de Alcobaça à custa do Governo, pelo cofre da dita Direcção, cuja fábrica se achava muito decadente, e dava prejuízos. Mas todo o mundo sabe quão florescente, e aumentada com outros ramos de fiação, e tecelagem de algodão a tornaram os novos proprietários, sendo muito para lamentar a infeliz sorte que teve pela ocasião da desgraçada invasão.

Em 2.° lugar, tendo eu pedido, que se me mostrasse o mapa topográfico dos canos, e aquedutos das Águas livres, tanto aparentes, como subterrâneos, para, segundo a extensão, direcção, e mais circunstâncias destes, poder formar alguns cálculos a respeito das enormes despesas, que com eles se faziam, se me respondeu, que não havia, e mesmo se ignorava que tal mapa tivesse existido. Eu produzi então as razões, que me ocorreram, não só a respeito da utilidade de um tal mapa, mas de se dever mostrar a todas as nações um monumento da munificiência do Senhor Rei D. João V, em cujo Reinado se havia concebido, empreendido, e executado uma obra tão gloriosa como útil para a nação; e que, se, se lhe ajuntasse a descrição histórica, e as providencias a que deu ocasião, faria um objecto digno das livrarias públicas, e particulares das nações civilizadas; pois que esta obra, espantosa em todo o sentido, tem bem poucas que se lhe possam por a par, em toda a Europa. As minhas razões foram com efeito atendidas; e aquela direcção mandou logo ao engenheiro da sua repartição, que levantasse o dito mapa, o que ele cumpriu, e se me confiou; e posto que matéria alheia da minha competência lhe notei algumas imperfeições, como falta da configuração dos terrenos, e da indicação da profundidade dos canos subterrâneos, etc. etc. E como fosse encarregado de o conferir com o engenheiro geógrafo, e abridor, Mr. Dupuy, o qual achando-lhe as mesmas imperfeições, que eu tinha notado, me disse, que, para se encarregar da abertura da chapa, necessitava ir ele mesmo observar os terrenos, e fazer as medições, e configurações necessárias, dando-se-lhe os precisos adjutores de gente, e despesas. Dei parte disto ao chefe director Teotónio Gomes de Carvalho 6 e este me respondeu, que mandasse Mr. Dupuy falar com o Marquês de Ponte de Lima sobre aquelas, e mais providencias, de que necessitasse. Assim o pratiquei, entregando-lhe o mapa que se me tinha confiado, e que nunca mais tornei a ver, nem por isso instei, por não ser da minha repartição; e creio que o que este mapa tinha de útil a respeito de economia, e descaminhos foi tudo considerado como mera curiosidade: e os Directores de tais repartições não gostam comummente, que haja curiosos.

 

§ 41. Proposta minha para se transferir a particulares a propriedade da Real Fábrica da Seda; sobre a palavra Empenho.

 

A prosperidade da fábrica de Alcobaça depois de passar a mãos de particulares, e a decadência da Real fábrica das sedas, e quanto com a mesma perdia a Real Fazenda com uma dispendiosa administração de pessoas estranhas, e totalmente ignorantes da matéria, e da arte, me excitaram a propor ao Marquês de Ponte de Lima quanto seria vantajoso à Real Fazenda, e ao público, se aquela fábrica passasse também a mãos de proprietários práticos na matéria; e estive a ponto de convencionar esta transacção com João António Lopes Fernandes, e sócios, capitalistas, e práticos deste ramo de comércio, com o qual se tinham já enriquecido em Bragança. Mas quando afinal dei parte ao Marquês do estado a que eu tinha levado este negócio, o achei assaz entediado; talvez pela influência de alguns dos Directores, a quem muito convinha aquela administração, perdesse, ou não perdesse a Fazenda Real, não só pelos ordenados que dali percebiam, mas também pelas dependências, além das satisfações e Empenhos: palavra que em Português significa muito; pois que por ele se consegue quase sempre voltar as coisas ilícitas em lícitas, e as justas em injustas, seja em detrimento de particulares, ou do Estado, como bem se prova por inumeráveis factos, entre os quais referirei o seguinte.

Propuseram-se certos negociantes ricos da Cidade do Porto a alcançar, nada menos do que o Privilégio exclusivo de comprar, e vender toda a seda em rama produzida no Reino; e mesmo da introdução de toda a de fora, assim como também da manufactura de todos os retroses. Seu Requerimento, apadrinhado, segundo ouvi, por 100.000 cruzados, principiou, se bem me lembro, no tempo do Ministério do Conde de Vila Verde 7, e se achava ainda pendente na época da sempre lamentável invasão; e tão volumoso por efeito de informações, e contra informações, que já dava pena a ler-se. Com tudo examinando eu os fundamentos de tal pretensão, não achei mais do que um abominável monopólio, útil só para os pretendentes, e destrutivo de um ramo tão importante da indústria nacional. Em consequência do que me opus com todas as minhas forças à obtenção de semelhante Privilégio. Então se buscou uma pessoa respeitável da minha amizade, como empenho para me dobrar, à qual eu respondi, que muito me maravilhava de ver, que uma pessoa com tanta probidade, e zelo do bem público, se interessasse por um negócio de tal natureza; e lhe segurei que seriam inúteis todos os esforços, que me obrigassem a assentir a tão injusta pretensão, em quanto eu tivesse voto no Tribunal; e com efeito o negócio ficou por decidir até a minha saída da Real Junta. E praza a Deus que. a palavra empenho esqueça no novo dicionário da língua Portuguesa.

 

§ 42. Origem da Real fábrica da seda, e outras muitas, que por aquela via se criaram de novo em Portugal.

 

A conexão que actualmente tem a Real fábrica das sedas com a Real Junta do comércio me dá lugar a expor aqui a origem deste estabelecimento, e outros que se lhe anexaram, para os meus leitores verem, em poucas palavras, a origem e progresso de muitas artes, e ofícios, que não existiam em Portugal, antes do feliz Reinado do Senhor Rei D. José. Principiou pois a fábrica da seda por uma sociedade de particulares, no Reinado do Senhor Rei D. João V, os quais mandaram vir operários de Lyon, e foi estabelecida no edifício que hoje se conhece por este nome ao Rato, para esse fim construído. Mas como sucede frequentemente, que estabelecimentos de grande custo não prosperem desde logo, achava-se este já em penúria de fundos no princípio do sucessivo Reinado; e querendo o Governo elevá-lo ao maior grau de prosperidade possível, e introduzir-lhe a fabricação dos Galões de ouro e prata, que até àquele tempo todos vinham de França, se havia necessidade deles para a tropa e culto Divino, o tomou por sua conta, nomeando-lhe Directores negociantes, e aplicando-lhe muitos fundos não só para o fazer trabalhar com vigor no seu respectivo destino, mas para servir como de viveiro a muitas artes, e ofícios, de que o Reino se achava destituído. Foi por aquela Direcção que, no Bairro das Amoreiras, então terras de serradura, se edificaram acomodações para Mestres, com certo número, cada hum, de teares de seda de lavor, cujas manufacturas eram compradas, e pagas pela dita Direcção, que também lhes fornecia a seda já pronta, como me parece que ainda se pratica, em maior, ou menor abundância. Foi outro sim com fundos da referida Direcção das sedas, que se edificaram no mesmo Bairro acomodações para o trabalho de Mestres, e aprendizes de novas artes e ofícios, como: 1. Cutelaria, Mestre Mr. Dutoit, francês de nação, do qual foram aprendizes os melhores mestres daquela arte, que hoje existem no Reino: 2. Relojoaria, Mestre Mr. Berthoud, também francês de nação: 3. Fábrica de pentes de marfim, caixas de papelão envernizadas, e verniz de goma-copal; lacre, Mestre Mr. Gabriel de Ia Croix; igualmente francês de nação, com privilégio exclusivo, que depois transferiu ao actual possuidor, no qual se tem por vezes perpetuado, contra o meu voto, por consultas da Real Junta; e por isso tem feito tão poucos progressos. Este mesmo Gabriel introduziu o uso dos tornos altos desconhecidos até então, servindo-se os artistas daqueles de Pé: 4. Mestres e artistas de fundição de metais, principalmente de cobre: 5. Um Mestre italiano para Estuques, e escaiolas, com uma escola de desenho: 6. Um Mestre desenhador para a repartição das sedas, chamado Mr. Joseph May, mandado vir de Lyon: 7. uma fábrica de Louça à imitação da que vinha de França, cuja fabrica deu algum lucro, mas por estar mal colocada, e se haverem estabelecido muitas outras no Reino, e particularmente pela oposição que lhe fez a louça Inglesa, se veio a fechar. Com tudo desta fábrica, de que foi Mestre um Italiano, saíram oficiais que ainda se empregam com bastante utilidade pública: 8. Arte de Tinturaria praticada e ensinada por Mr. Louis La Chapelle, francês de nação, mandado vir para as sedas da Real fábrica; e se fez digno, não só da Mercê do Hábito de Cristo, mas de ser admitido na Direcção da mesma Real fábrica: 9. Foi a esta repartição que se deveu o estabelecimento dos dois insignes Mestres em Serralharia, chamados Schiapa pietra, irmãos, e de nação Genovesa, assim como também de outro Genovês chamado Pontremo, Mestre de teares de meias. 10. Foi igualmente pelos fundos daquela Real fábrica, que Pedro Schiapa pietra 8 foi fundar, em Pernes, uma fábrica de verrumas, sovelas, e limas, cuja fábrica passou pelo falecimento do dito Schiapa pietra, a seus filhos; e ignoro presentemente qual tenha sido a sua sorte: 11. Pelos mesmos fundos foi estabelecida, em Almeirim, a fábrica de cambraias, e esguiões, de que foi mestre um Italiano, chamado Tacinari, cuja fábrica, de que já falei, se mudou depois para a vila de Alcobaça, trabalhando debaixo dos dormitórios do grande Mosteiro que ali se acha: 12. A primeira fábrica de Chapéus 9 finos estabelecida junto da vila de Pombal, de que foi mestre hum Francês, chamado Mr. Sauvage; a qual não prosperou, como já disse; mas deu ocasião ao estabelecimento de outras particulares, e ao aproveitamento das peles de coelho, e lebre, que até então se deitavam aos cães: 13. Fabricação dos Botões de Casquinha, por Guilhobel, também Francês.

De tudo o que fica dito se vê, em que ponto de atraso se achava a Nação Portuguesa, e os sacrifícios de grandes somas feitos pelo Governo daquele tempo, para promover a indústria nacional, que, em muitos destes artigos, ia nada tem que invejar às outras nações.

 

§ 43. Continuação do estabelecimento de fábricas pela repartição da Junta do Comércio, com fundos provenientes do Donativo de 4 por cento percebido de entradas nas Alfândegas, que o comércio, pela dita Junta, ofereceu a El-Rei para a reedificação dos Edifícios públicos.

 

Logo depois do terramoto de 1755, ofereceu a S. M. a Junta do Comércio, em nome da corporação deste, quatro por cento, percebidos de direitos de entrada nas Alfândegas, com o nome de Donativo, para, com este produto cobrado e despendido pela mesma Junta, fazer as despesas da construção das Alfândegas, e Praça do Comércio; o que, com efeito, se cumpriu; aplicando-se igualmente debaixo da direcção da mesma Junta, para se estabelecerem fábricas de lanifícios na Covilhã, em Fundão, e Portalegre, cujas manufacturas chegaram logo, não só para o fardamento das Tropas, e criados da Casa Real, mas para se venderem no Reino, e exportar para o Brasil; quando antes todas vinham de fora. Durou esta administração até o ano de 1787, ou 1788, em cuja época Foi S. M. a Rainha Nossa Senhora servida dar o usufruto a particulares, para usarem delas com todos os privilégios de Fazenda Real, pagando somente os materiais, e manufacturas existentes, por inventário de cómoda avaliação, e ficando a propriedade, e casco sempre pertencendo à Fazenda Real, que tinha despendido acima de um milhão de cruzados, com estas fábricas, em beneficio da nação, as quais sofreram, pela protecção à Francesa, na época da sempre lamentável invasão, um grande abalo, que as ia derrubando; mas que com a feliz Restauração, se poderiam igualmente restaurar, se a reciprocidade à Inglesa, em que se fundou o tratado de comércio de 1810, as não arruinasse de todo.

 

§ 44. Empréstimo de 80.000 cruzados feito pela Real Fazenda a Guilherme Stephens para o estabelecimento de uma fábrica de vidros.

 

Entre muitos outros estabelecimentos feitos à custa da Real Fazenda, em que bem se deixa ver a munificência do Sr. Rei D. José a benefício da indústria nacional, referirei o estabelecimento da fábrica de vidros cristalinos, no sítio da Marinha grande, Junto a Leiria, por Guilherme Stephens, o qual recebeu um empréstimo, ignoro por que cofre de 80.000 cruzados, a pagar sem limite de tempo, e em cal, produto dos fornos, que tinha erigido nas pedreiras de Alcântara, nos quais ardia carvão de pedra vindo de Inglaterra livre de direitos. Alem deste empréstimo, tinha o dito Stephens a permissão de se servir de toda a lenha tirada do pinhal de EI-Rei, grátis.

Quais foram os efeitos dos assíduos desvelos do Governo neste feliz Reinado, para fazer independente a nação Portuguesa, todos os conhecem, e se manifestaram mais e mais, no sucessivo Reinado, e Regência do Príncipe Regente N. S. Mas é muito para temer, que as desgraçadas circunstâncias da presente época havendo transtornado os princípios políticos adoptados por aquele grande Monarca, deixem somente aos Portugueses a triste lembrança de coisas tão úteis destruídas por um rasgo de pena, e talvez para sempre.

 

§ 45. Meios gerais empregados no Governo do Senhor Rei D. José para promover a introdução das Artes fabril em Portugal, e seus bons efeitos.

 

Os grandes subsídios dados pelo Governo, para a introdução das artes fabris em Portugal, a isenção de direitos sobre as matérias primas vindas de fora, assim como também aqueles de exportação sobre tais Manufacturas, e suas entradas francas nos Domínios do Ultramar, a introdução proibida no Reino de correspondentes manufacturas estrangeiras, e a rigorosa observância das leis repressivas do contrabando têm sido os princípios políticos a que se deveu a diversidade, e multiplicidade de estabelecimentos úteis; por efeito dos quais ficaram no país enormes somas, que antes passavam a nações estrangeiras, com gravíssimo prejuízo de Portugal, de cujas somas se poderá formar juízo comparando a balança do comércio de uns anos com outros, cuja balança se principiou a formar no Reinado da Rainha N. S. Que Deus Guarda à custa do Cofre da Real Junta do Comércio, que seria de muita utilidade publicar-se pela imprensa, para ilustração da parte pensante e instruída da nação principalmente para aqueles que influem no Governo poderem descobrir em um golpe de vista objectos de tanta importância; e até calcular os desastrosos efeitos que poderá produzir o tratado de comércio de Fevereiro de 1810, se se não tomarem em séria consideração, quanto antes, para se lhes obstar por todos os meios possíveis. O tratado feito por Methuen, e Roque Monteiro Paim, ainda que arruinou muitas artes fabris, que havia no Reino, principalmente aquelas de lanifícios, cujas manufacturas estrangeiras não eram admitidas antes deste tratado, que teve por objecto a admissão dos panos ingleses, em compensação dos vinhos de Portugal pagarem de entrada em Inglaterra uma terça parte menos do que aqueles de França, e isto sem especificar a proporção de direitos de entrada dos ditos lanifícios, nem de outro género algum, tem sido modificado pelo Governo regenerador do Sr. Rei D. José.

 

§ 46. Sobre as Utilidades que resultam das Fabricas nacionais e da necessidade de as proteger.

 

Convencido pois de tão sólidos princípios, como ficam notados no § antecedente, sempre, na Real Junta, votei a favor da isenção de direitos de entrada sobre as matérias primas necessárias às fabricas nacionais, e que o país não produz, seja em qualidade, seja em quantidade suficiente; considerando, ao mesmo tempo, que toda a importância de tributo directo, ou indirecto, com que se carrega a indústria nacional, equivale a um prémio igual, que se concede à correspondente manufactura estrangeira, com a qual haja a nacional de competir; e que animar, ou fomentar a indústria nacional na prática das artes fabris, é também promover os mesmos efeitos na população, pela ocupação de braços que, sem isto, ficariam ociosos, ou se não reproduziriam; resultando de ambos estes objectos o preciso aumento da agricultura, pelo pronto consumo, e maior preço das suas produções, nas localidades, em que se acham as fábricas, assim como também maior valor aos bens de raiz, cujas permutações vem a ser de maior rendimento ao direito das sisas, além do acréscimo das Décimas, Dízimos, etc. e diminuição da mendicidade, que assaz acha muito em que se empregar. Nada destas coisas escapou às vistas do sábio, e restaurador Governo do Senhor Rei D. José, por quem foi dado o impulso a que chegaram as fábricas nacionais; e que depois continuaram sem socorros pecuniários dos Cofres Reais, à excepção da fábrica de chitas em Azeitão, que a Rainha Nossa Senhora por efeito da Sua Real Munificência, auxiliou, não só nas pessoas de seus fundadores, mas na do seu sucessor Raimundo Pinto de Carvalho, e a fábrica de lanifícios estabelecida em Cascais, da qual foi depois, no meu tempo de Deputado, embolsada a Real Fazenda, pelo produto da mesma fábrica, quando, por autoridade superior, a Real Junta a transferiu ao actual proprietário, José Nunes Viseu.

Fiel aos princípios de que me acho possuído sobre as utilidades, que resultam ao Reino do desenvolvimento da indústria fabril, sempre, enquanto me conservei na Real Junta, julguei meu dever votar a favor das pessoas dos proprietários, e suas justas pretensões a benefício dos estabelecimentos já existentes, ou projectados; não duvidando, que se concedesse privilégio exclusivo de coisas de nova invenção, de nova introdução, ou de incorporação na generalidade de outras para idênticas manufacturas, gozando da isenção de direitos, mediante as provisões do Tribunal: só me opus ao estabelecimento de uma fábrica de lanifícios, próximo à praia, fora da barra, em lugar isolado; por me parecer sítio suspeito, e manejado por pessoa já notada de exportar clandestinamente lã que despachava a título de outra fábrica de Baetilhas, que tinha Junto a Lisboa, em a qual consumia muito pouca lã da muita que comprava no Alentejo; acrescendo a isto dizer-se que tudo era por conta de hum Colega meu, o qual sobre maneira protegia estes negócios no Tribunal; o que tenho tido ocasião de verificar pela desafeição, que me ficou mostrando, daquele tempo por diante: desafeição, que cresceu por me opor, com o meu voto, à consulta, que ele pretendeu, que se fizesse, para se proibir imediatamente a entrada da barrilha de fora, logo que, em resolução de outra consulta do Tribunal, S. A. R. O Príncipe Regente N. S. Havia sido servido conceder a outro seu protegido, o privilégio exclusivo de cultivar a barrilha no Reino do Algarve, por um certo número de anos. Quem deixará de ver, como eu vi, que a proibição da entrada da barrilha de fora, um objecto de tanto consumo, para as lixívias, branquearias saboarias e fabricas de vidros, antes da cultura da do Reino, era uma armadilha, para o contrabando deste género, que se devia fazer pelo Algarve; contudo não querendo eu que um ramo tão importante de indústria se deixasse de promover no Reino, votei que, se com efeito se cultivasse, e fabricasse boa barrilha para o consumo do Reino, de modo que fizesse frente à de fora; que, neste caso bastaria levantar sobre esta os direitos de entrada em proporção conveniente a favor, e protecção da cultivada no país. Mas, como as vistas do meu Colega, e seu protegido eram menos de promover os interesses nacionais, de que os seus, não lhes agradou o meu parecer, e abriram mão da empresa.

Estes dois factos, nos quais me persuado ter comprido com o meu dever, motivaram o ódio, e vingança do dito meu Colega, ao ponto de me denunciar furtivamente na Corte do Rio de Janeiro, por ambicioso, e a título das minhas fábricas, abusar do meu lugar de deputado despachando livre de direitos matérias em maior quantidade, que nelas se empregavam, asserção, que ainda, que em algumas ocasiões verdadeira, a respeito de materiais próprios para a fabricação de chapéus finos, não era de prejuízo ao meu carácter; por quanto peles, e pêlos somente podiam ter tal emprego, e que devendo segurar-me de grandes provimentos, sucedeu por vezes ter de mais, e cedê-las a outras idênticas fábricas igualmente privilegiadas. Mas conhecendo o dito meu Colega, que quem acusa primeiro ganha mais pontos, e que era coisa bem alheia do meu carácter, falar, em negócios de tal natureza fora do Tribunal, ou por ilegítimos caminhos, aproveitou-se da ocasião, e conseguiu a sua vingança. Eu não falaria destes, e outros factos relativos à mesma pessoa se, com pesar meu, me não visse obrigado a faze-lo em minha própria defesa, para afastar de mim calúnias, e responsabilidades, que se me poderiam imputar, como membro da Real Junta do Comércio.

Também devo aqui notar, que na Real Junta concorri quanto me foi possível, para se autorizarem vários estabelecimentos fabris de artistas, que, sendo mais engenhosos, e possuindo maiores cabedais, empreendiam obras que necessitavam operários de diversos ofícios embandeirados, cuja reunião lhes era absolutamente indispensável, mas, por ser proibida pelos seus particulares estatutos, recorriam ao Soberano, pela Real Junta, para a obtenção do competente privilegio; sendo tais estabelecimentos até então, desconhecidos, e dos quais têm resultado muitos inventos, e grande utilidade pública na perfeição das obras, e principalmente dos maquinismos.


Notas:

1. A Fábrica de Sedas do Rato foi autorizada em 17 de Janeiro de 1734. O seu primeiro responsável, o francês Robert Godin, construiu a fábrica entre 1735 e 1740 no sítio do Rato. Em 1755 passou a ser gerida pela coroa. (regressar)

2. As obras das Águas Livres de Lisboa começaram em 1731, tendo chegado às Amoreiras em 1744. Os primeiros chafarizes construídos foram o do Rato e o de São Pedro de Alcântara. Só em 1799 as obras foram consideradas concluídas. A administração era da responsabilidade de Junta do Comércio. (regressar)

3. A Real Junta do Comércio foi criada, restabelecida segundo alguns autores, em 1755, tendo-se tornado um tribunal régio em 1788. O seu nome completo era Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Foi extinta em 1834. (regressar)

4. A Fábrica de Alcobaça, que utilizada as instalações da fachada leste do Mosteiro, foi incendiada pelo exército francês durante a invasão de 1810. (regressar)

5. Cambraias e .Esguiões eram os tecidos para camisas. (regressar)

6. Membro (deputado) da Junta do Comércio, e depois Secretário da Real Junta do Comércio, Director da Real Fábrica das Sedas, foi também membro do Conselho do Ultramar e Administrador da Alfândega das Sete Casas, tendo morrido em 1801. (regressar)

7. D. Diogo de Noronha, 8.º conde de Vila verde, filho do 3.º marquês de Angeja, o ministro do Reino do começo do reinado de D. Maria I em substituição do marquês de Pombal, foi nomeado ministro assistente ao despacho, e secretário de estado do Reino em Fevereiro de 1804, tendo assumido interinamente nesse mesmo ano a secretaria de estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra. Morreu em Novembro de 1806, com 57 anos. (regressar)

8. O genovês António Schiappa Pietra terá criado em 1756 em Pernes, junto do rio Alviela, a 20 km de Santarém, uma fábrica de serralharia, verrumas e foucinhas. Mais tarde, por volta de 1765, aparecem os nomes de Pedro e João Schiappa Pietra, possivelmente filhos do anterior. (regressar)

9. A fábrica de chapéus de Pombal foi criada em Março de 1759, sendo os seus directores José Rodrigues Bandeira e José Rodrigues Esteves. (regressar)

Fontes:
J. M. Teixeira de Carvalho (ed.), Recordações de Jacome Ratton sobre ocorrências do seu tempo, de Maio de 1747 a Setembro de 1810, 2.ª ed., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1920;

Jacome Ratton, Recordacoens de ... sobre occurencias do seu tempo, em Portugal, durante o lapso de sesenta e tres annos e meio, alias de Maio de 1747 a Setembro de 1810, que rezidio em Lisboa ..., Londres, Impresso por H. Bryer, 1813


A ver também:

A ler:

  • Jorge Borges de Macedo, A Situação Económica no tempo de Pombal, alguns aspectos, 2.ª edição, Lisboa, Moraes (Testemunhos Portugueses), 1982, 1.ª edição, 1951;
  • Jorge Borges de Macedo, Problemas de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII, 2.ª ed., Lisboa, Querco (Conhecer Portugal, 1), 1982, 1.ª edição, 1963.

 
  • Outras histórias
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