DO DIÁRIO DE ANTÓNIO RIBEIRO SARAIVA


Este trecho, que descreve os acontecimentos do mês de Julho de 1831, mostra o desespero de um miguelista, diplomata em Londres a tentar fazer reconhecer o regime de D. Miguel pelas potências europeias, no seu esforço para influenciar as acções do governo que defendia. O excerto do diário, do, possivelmente, mais interessante e mais intransigente dos miguelistas, mostra bem as dificuldades deste intelectual aberto ao mundo em influenciar uma elite governativa incapaz de compreender as mudanças do primeiro quartel do século XIX - e muito menos as ocorridas em França e Inglaterra em 1830, países que passaram a ter governos claramente liberais a partir dessa data -, e que devido a essa incapacidade não só será incapaz de responder convenientes às exigências das grandes potências ocidentais, como também será incapaz de defender convenientemente as suas próprias acções.

Nota: Algumas das ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».

 

«Tudo o que ali estava, se são fidalgos no sangue, são puro povo nas ideias.»

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JULHO 1831

 

António Ribeiro Saraiva

António Ribeiro Saraiva

1 – a) Copiei, da Musa Quotidiana 1, o dia 23 de Maio e acrescentei-lhe as notas em prosa. Passei a noite em casa de Sherson.

2 – a) Copiei o dia 24 de Maio na Musa Quotidiana, ajuntando-lhe o pedaço de prosa que serve de preâmbulo aos versos. Copiei os versos franceses feitos nos dias 24 de Maio, 7 e 26 de Junho, para dá-los, como dei, a Catarina Sherson. Jantei com Sherson, sem cerimónia, e, depois, fui com a mesma família passar a noite a casa de Mr. ..., onde houve, primeiro, dança de bonifrates; depois, exibição de lanterna mágica; e, ultimamente, dois quadrilhos, em que contradançaram os meninos e meninas que, em grande número, tinham vindo ao serão, dedicado, como se vê dos espectáculos, principalmente ao divertimento das crianças.

– b) Havia na sala um relógio decorado com dois cúpidos, que estavam representados em acção de disputarem a qual deles havia de colher uma borboleta, que continuamente se movia pela acção da pêndula; esta coincidência, com a inconstância de certa borboleta doutro género que se achava presente e praticando então mesmo seu borboletismo, dum modo que não dava gosto a alguém da companhia, suscitou-me a ideia duns versos franceses, que compus hoje.

3 – a) Li John Bull 2. Fui com os companheiros passear a Bond Street, para observar os que entravam e saíam da recepção que, em Clarendon Hotel 3 deu hoje aos refugiados portugueses o ex-Imperador do Brasil 4, D. Pedro. Consistia a coisa de ver duas dúzias de homens, mal encarados a maior parte, que, depois de feitos seus cumprimentos, iam andando cada um para suas casas, com um ar assaz tolo. Olharam com um certo ar de ufania e arrogância para mim e meus companheiros, como quem nos ameaçava de em breve se vingarem de nós; particularmente o célebre Garrett e Luís de Vasconcelos. Havia defronte da porta do hotel, no trottoir oposto, onze pessoas, que estavam a ver a solenidade! Jantou comigo Delaunay, tocámos e, depois, fomos, com Dickens e Reads, passear junto do lago de Regents Park (in the Plantation), onde encontrámos as Shersons no pequeno cais, tão romanesco e agradável.

4 – a) Fui, com Dickens e Catarina Sherson, à exposição das pinturas de aguarela; estive ali bem contente; ali achei motivo para meus versos hoje. Jantaram comigo Sherson, pai, Mr. Zavas, Mr. Saust, Mr. de Lemos. Fomos depois passear a Regents Park, na Plantação, com Shersons e Dickens, e passámos a noite com Dickens, onde também esteve Catarina Sherson, que me indicou hoje o motivo para os versos que fiz, etc. Convidou-nos Mallet para uma partida de divertimento sobre o Tamisa, no dia 7 deste mês.

– b) Dei a 12.ª lição de flauta.

5 – a) Li o Times. Fiz as contas da secretaria, do trimestre passado. Arranjei as minhas contas com os meus colegas, etc.

– b) Fui passar a noite a casa da Condessa de Mortara 5, que deu um baile; dancei só uma contradança, com Catarina Sherson, com quem estive quase todo o tempo que o baile durou.

6 – a) Jantou comigo Delaunay. Tocámos. Fomos passar a noite a casa de Dickens e, antes de eu ali chegar, me tinha Delaunay defendido e desculpado para com as donas da casa, que estavam, principalmente Elisa, muito mal comigo, em consequência de dizerem que eu lhes tinha faltado à polidez ontem à noite no baile, tendo faltado a dançar com ela depois de a haver convidado, etc., no que tudo havia só mal-entendidos e não ofensa. Assim, pela agência e amizade de Delaunay, ficámos reconciliados e fui muito bem recebido. Aproveitei a circunstância para fazer uns versos, a propósito de amor. e de amizade.

7 – a) Fui a um pic-nic arranjado por Madame des Mallets, para o qual éramos uma partida de 24 pessoas. Ás 11 horas, embarcámos perto da ponte de Westminster, em um barco onde íamos todos e, além dos convidados, quatro músicos. Havia quatro remeiros do barco e, além deles, dois da nossa companhia remaram todo o tempo, até que chegámos ao sítio que escolhêramos para jantar, uni pouco acima de Richmond, do outro lado do rio, defronte da casa onde habitara, no tempo da emigração, o Duque de Orleães, hoje Rei dos franceses. O dia esteve o mais agradável possível, e a viagem pelo rio, desfrutando as lindíssimas margens do rio, as pontes, as casas, fábricas, etc., que continuamente o vão bordando. Durante a viagem, cantaram algumas das pessoas da companhia e, entre estas, um jovem de nome Cocrane, parente do célebre Lord do mesmo nome, que parece rapaz de habilidade e é agradável bastante e interessante na sociedade. Cantou modinhas espanholas, francesas, inglesas e italianas, pronunciando notavelmente bem cada uma das línguas. O tempo que estivemos demorados no sítio acima de Richmond passámo-lo, primeiro, em jantar, tendo-se posto a mesa sobre a relva e sentando-se as senhoras à roda e alguns dos cavalheiros também. Findo o jantar, danou-se, cantou-se, brincou-se e passeou-se, cada um por onde quis, pelo espaçoso prado coberto ele relva e decorado em roda e pelo meio com carreiras de árvores, que formavam agradável sombra, deixando espaçosos quadros abertos ao sol. Eu andei muito tempo com Catarina Sherson, passeando e conversando, e tive ocasião de conhecer que é dotada de bem bela alma e coração. Perto das 7 horas da tarde, viemos, passeando, embarcar-nos perto da ponte de Richmond de começámos de vogar para a cidade. Como a maré subia, e com uma corrente bastante forte, foi preciso maior trabalho para avançarmos; assim, foram obrigados a remar quase todos os cavalheiros. Eu nunca tinha remado em minha vida; porém, apesar de temer o não poder fazê-lo bem, tomei finalmente o remo e remei algumas 5 ou 6 milhas, acostumando-me logo a fazê-lo menos mal; só três dos cavalheiros não remaram, nem vi mesmo que para isso se oferecessem: um francês, um italiano e um inglês. Remaram os demais ingleses e os dois portugueses, eu e o Conde de Pombeiro. Chegámos ao sítio onde tínhamos embarcado às 11 horas da noite e dispersou-se a companhia, acabando o divertimento dum dia que deixará por toda a minha vida saudosas lembranças na minha memória.

8 – a) Toquei. Li as folhas. Passeei com Sherson na Plantation e conversei muito com Catarina, a quem dei parte, em segredo, de que o Visconde de Asseca me tinha comunicado esta manhã que havia eu de partir para Portugal quarta-feira próxima. O Visconde, quando lhe fui falar esta manhã, comunicou-me que era necessário tomar algum partido, visto que era preciso persuadir o governo da necessidade de tomar algum expediente para acabar as nossas diferenças com Franca e, ao mesmo tempo, fazer-lhe ver bem ao claro o estado perigoso da Europa, etc.; mas que era preciso representar-lhe que, sem alguma providência da parte do governo, não podíamos estar aqui, visto que da Companhia do Porto se tinha escrito aos seus agentes aqui para que não dessem mais dinheiro à conta do governo; e, como nós deles recebemos nossos ordenados, se eles não pagam, estamos em grande embaraço, etc. Assim, ele, Visconde, me pedia quisesse ira Lisboa e que nisto lhe faria um grande serviço, a ele, e não menos ao Estado. Eu respondi logo que estava pronto, não por gosto, pois nenhum tenho de ir agora a Lisboa, mas porque há aparência de poder com isso fazer alguns bem. Passei a noite em casa de Shersons e me fez Catarina presente do romance de Madame Cotin, intitulado Elisabeth. What a sweet shake-hands she gave me; for the first time in my life she gave me such a one! 6 Fiz uma oitava para escrever no princípio do mesmo livro.

9 – a) Li as folhas. Veio a minha casa o meu amigo Reis e falámos por horas nos pontos a que me é necessário advertir na minha ida a Lisboa, para poder utilizá-la para o bem da pátria e do Rei e achámo-nos em perfeita conformidade de ideias, servindo a conversação de muito para nos excitar novas lembranças e combinações. De tarde, fui passear à Plantation com as Shersons e, quando vinha acompanhá-las até a porta, dei a Catarina, no meio de New Road, quando atravessávamos defronte da igreja de Mary-le-Bone, um pequeno bilhete, pedindo-lhe me desse novas suas 7 para Portugal e dizendo-lhe o correio. Fui passar a noite a casa das Dickens.

10 – a) Fui levar ao Dr. Granville o livro de Bocage que ele me tinha emprestado e, ao mesmo tempo, lhe ofereci um exemplar da minha Lira Erótica 8. Fiz algumas visitas. Veio Delaunay jantar comigo; conversámos muito e tocámos e, depois, saímos passeando e eu o deixei para ir para casa de Shersons. Antes que o deixasse, tivemos uma conversação curiosa, dizendo-me ele que lhe parecia ter toda a probabilidade que eu viesse a desposar Catarina Sherson 9, apontando-me várias cautelas que, nesse caso, eu devia ter. Deu-me Catarina Sherson 10 um pequeno bilhete, em resposta 11 ao meu de ontem.

11 – a) Dei a 13.ª lição de flauta. Veio Delaunay jantar comigo, tocámos, fomos passear, encontrámos as Dickens e Reads na Plantation e fomos passar o serão com aquelas.

12 – a) Toquei. Fui ter com o Ministro de Espanha, Zéa Bermudes 12, uma conferência que durou três horas, tratando dos objectos em que principalmente eu devia ocupar-me na minha missão a Lisboa. Perguntou-me qual era a minha opinião a respeito do modo de acabar mais depressa as actuais pendências de Portugal com a França, e eu disse-lhe que me parecia o caminho mais curto o mandar o meu governo a Paris uma pessoa autorizada a terminar e ajustar as diferenças, sendo esta ali protegida e introduzida pelo Conde de Ofalia 13, Embaixador de Sua Majestade Católica, etc. Zéa concordou comigo neste ponto e somente acrescentou que a pessoa, que viesse, devia vir munida de tais poderes, que não fosse, em caso nenhum, necessário fazer ainda referência a Lisboa, para decidir e concluir o negócio. Depois disto, leu-me todos os ofícios que escrevera ao Conde de Monte Alegre, desde os princípios de Maio, e nos quais mostrava ter, desde esse tempo, instado em aconselhar ao governo português a mais decente maneira de tirar-se dessa complicação com França. Destes conselhos, que Monte Alegre comunicou sem dúvida ao meu governo, não fez ele caso e não andou muito bem nisso. Em um dos ofícios, ia uma grande tirada em favor do Visconde de Santarém e tendo por objecto mostrar que o sair ele do ministério teria muito más consequências, etc. Isto coincide com o tempo em que o Visconde de Asseca disse que, em Lisboa, havia uma grande intriga contra Santarém e foi, sem dúvida, uma encomenda do Visconde de Asseca o dizer Zéa aqueles elogios, para ver se assim assegurava melhor Santarém no lugar. Veio jantar comigo Reis e ainda conversámos e discutimos muito, de novo, os objectos de que em Lisboa devia principalmente fazer-me cargo, consistindo em duas principais divisões: 1.º, remediar a urgência actual, não só a respeito da França, mas para se precaver contra qualquer projecto que pudesse intentar ou ajudar o ex-Imperador D. Pedro; 2.º, o tratar de estabelecer um sistema de melhoramento permanente para pôr em ordem as coisas do Estado e corrigir, depois de examiná-los bem, os abusos introduzidos na administração. Isto tudo se reduzia a aconselhar de novo o plano, que remeteu já há mais de um ano, para um estabelecimento de Conselho de Estado dividido em secções, das quais cada uma ajudasse um dos ministros de Estado, examinando, propondo e discutindo as matérias da administração.

– b) Copiei uns versos franceses de despedida, que dei a Catarina Sherson, com outro bilhete 14, e uma tradução em prosa doutros versos portugueses, feitos ontem à noite. Passei a noite em casa de Shersons. Fiz presente a Catarina Sherson da música tirolesa que cantam actualmente em Londres os 4 cantores do Tirol que ali se acham, arranjada para piano.

13 – a) Preparei-me a partir e fui comprar várias encomendas. Fui despedir-me de Dickens e Shersons. Cat. 15, perguntando-lhe se tinha lido os versos, respondeu-me: «Yes, they are very pretty; je ne vous oublierai pas !» 16 Jantei com os Viscondes de Asseca e parti pelo coche da mala às 8 horas e três quartos, vindo acompanhar-me até ali os meus colegas, o cônsul Sampaio, Joaquim Leocádio e Salazar, da legação espanhola. No coche, fiz os meus versos.

14 – a) Pela manhã cedo, quebraram-me os óculos, o que me deixou um pouco inquieto até que cheguei a Exeter, onde, felizmente, achei todo o remédio necessário, fazendo não só concertar os quebrados, mas comprando outros novos, de prevenção, e, além disto, uma bonita luneta. Importou-me tudo em 5 libras e 4 xelins e dei-me por muito contente em poder arranjar olhos, que tanta falta me faziam. Grande coisa é viver num país como Inglaterra!

– b) Escrevi a Lemos, recomendando-lhe várias recomendações, e a Sampaio, pedindo-lhe fizesse por mandar-me para Lisboa um casal de cisnes para o Duque de Cadaval, etc.

15 – a) Cheguei a Falmouth e pus-me em regra para embarcar. Fiz uma fricção com um remédio que comprara em Londres para prevenir o enjoo, desejando experimentar, ainda que não tenho grande fé no efeito. Às 10 horas menos um quarto embarquei no paquete Duque de Malbourough. O Capitão Bull me parece um excelente homem, franco John Bull, sem grandes delicadezas, mas com boas qualidades e modo hospitaleiro; o cirurgião é polido e não desagradável. Tenho mais por companheiro de viagem um Mr. Winehouse, que me parece homem de boa companhia.

– b) O remédio contra o enjoo não provou bem, pois que eu enjoei, como se o não tivesse usado.

– c) À noite, quando o sol se ia escondendo atrás das nuvens que estavam como suspensas sobre a ponta de Leasard, a mais meridional de Inglaterra, fiz a este caro país os meus adeus.

16 – a) Continuámos navegando com bastante bom vento e muito sossegado mar; porém, eu sofrendo bastante de enjoo e, por isso, na cama mesmo fui escrevendo alguns versos. Tomei meio papel de sal de Epson 17, aperiente que me fez bem

17 – a) Continuámos com vento sofrível e muito doce mar, o que, junto a outra porção de sal que tornei, concorreu para que, desde o jantar para a noite, eu já sofresse muito pouco, estando em estado de escrever, como escrevi, os versos deste dia, que fiz sentado na popa e encostado ao bordo do navio, sôbre o qual os escrevi, quando o sol se punha. Comecei a ler Rasselas, conto ou novela de Johnson. 18

18 – a) Escrevi atrasados deste Diário, desde o dia 9 do mês, achando-me muito melhor e sem já sofrer, quase, enjoo. Temos pouco vento, mas o mar de leite. Toquei algum tempo. Continuou todo o dia muito bom tempo e, principalmente à noite, esteve muito agradável, dando-me lugar a ficar por muito tempo tocando, sentado na popa, e ali comecei os versos que vão na Musa de hoje, que vim acabar para a câmara. Continuei Rasselas.

19 – a) Avistámos terra de Espanha e tivemos vento menos mau; vimos a terra ao amanhecer. Copiei da Musa Quotidiana desde 25 de Maio até 1 de Junho, inclusive, acrescentando-lhe a prosa que acompanha os versos desses dias.

20 – a) Tivemos menos mau vento; tornámos a avistar terra de Espanha no cabo de Finisterra e perto do Ferrol. Copiei na Musa Quotidiana desde o dia 2 até 5 de Julho, acrescentando o que vai em prosa nesses dias.

21 – a) Tivemos assaz bom vento; avistámos as Berlengas e terra de Portugal junto de Mafra, etc. Das 10 para as 11 horas da noite, chegámos junto da boca da barra de Lisboa, passando as 9 e tanto junto do cabo da Roca; não nos foi possível conseguir piloto da barra para nos meter no porto de noite, apesar de içarmos uma lanterna numa verga e darmos um tiro de peça, e por isso tivemos de ficar ali bordejando até pela manhã, enquanto um pequeno brigue de guerra francês, que ali andava cruzando, nos seguia e observou de perto quase toda a noite.

– b) Continuei a copiar na Musa Quotidiana até o dia 19 de Julho, inclusive, acrescentando tudo o que não é verso e corrigindo nestes alguma coisa, ao passo que ia copiando. Quando avistei pela primeira vez terra de Portugal, defronte da Ericeira pouco mais ou menos, fazendo um tempo lindo e mostrando o mar e os céus uma risonha aparência, saudei a terra e mares da pátria com os erros

22 – a) Levantei-me pela manhã muito cedo, logo que senti a tripulação começava a manobrar para entrar a barra, com o alvoroço natural que tem quem chega à sua pátria depois duma dilatada ausência. Bem longe estava eu de vir achar o que achei no Tejo! Vi o piloto da barra, que tinha entrado para o navio pouco antes, e, chegando-me a falar com ele, perguntei-lhe se os franceses tinham tomado ultimamente mais algumas embarcações portuguesas. Respondeu-me o homem que não, que havia dias não tinham tomado mais nenhuma. Então, perguntei eu se o governo não tinha tomado medidas algumas para impedir os insultos que se estavam assim cometendo na barra, e disse que estranhava muito que um miserável pequeno brigue, tal como o único que ali andava cruzando, ousasse conservar-se tem perto da barra, fazer o que fazia, e que o governo não fizesse sair alguma embarcação de guerra, que o batesse e tomasse. A isto respondeu o homem: «As nossas embarcações de guerra, depois que estão com gente francesa dentro, não podem fazer nada, e as torres não tem ordem para atirar com bala». Não pude perceber o que queria dizer; e, perguntando mais, disse-me então que tinham entrado no Tejo as embarcações da esquadra e que tinham tomado a nossa, etc., etc. Bem se poderá fazer ideia de como eu ficaria com tal notícia e vendo assim tornado no maior dissabor o gosto natural que a vista da pátria inspira a quem vem de longe! Perguntei então se em terra tinha havido alguma desordem. Respondeu-me o homem que não e acrescentou: «Por ora, ainda governa o nosso Rei». Informei-me depois se havia tropas nas praias, que defendessem a barra, e respondeu-me que sim e que muita gente se tinha junto e oferecido para defender EI-Rei e que os franceses não se tinham atrevido a saltar em terra. Eu fiquei extremamente triste e de mau humor, acrescentando-se este por tudo o que ia vendo do mesmo governo: - as naus francesas orgulhosamente ancoradas diante da cidade e como dominando o Tejo; a bandeira tricolor flutuando, não só sobre as naus francesas, mas sobre todas as embarcações de guerra portuguesas; finalmente, os franceses navegando nas lanchas dum para outro lado, com uma liberdade e altivez insuportável! 19 Eu, ao menos, não deixei de desabafar um pouco – ainda que triste desabafo! – apelando das vergonhas presentes para as glórias passadas, e fiz notar aos ingleses que comigo estavam a diference do tempo em que fora fundado aquele convento de Belém, para comemorar a expedição de Vasco da Gama, e no tempo em que nos achávamos; mas tudo isto fracas consolações! Quando vínhamos defronte de Belém, veio dirigindo-se a nós, em um bote, um inglês que eu não conhecia, mas que logo do paquete disseram ser Mr. Duff 20. Eu estava indisposto com este nome, pela vergonhosa passagem de ele haver sido chamado ao paço e haver falado com EI-Rei e passado com ele todas aquelas coisas que desgraçadamente foram públicas, quando foi das reclamações da Inglaterra, a que demos satisfação, etc.; e, por isso, quando Mr. Duff entrou no paquete, apenas lhe tirei o meu chapéu e fiquei passeando ao lado, sem mais lhe falar; entretanto, sucedeu que Mr. Weinhouse, que veio comigo, passageiro no paquete, falando comigo, me introduziu na conversação, e então comecei eu deplorando a desgraça que estava vendo e respondendo a várias perguntas de Duff. Foi então que, fazendo ele várias reflexões a propósito do triunfo dos franceses, eu lhe disse que, na realidade, a vergonha que a minha pátria recebera de tal entrada no Tejo, etc., não podia ser maior e que me causava um sentimento inexprimível; porém que, ao mesmo tempo, os franceses se tinham achado logrados e enganados, no principal do seu projecto. A isto perguntou ele que não sabia como isso fosse assim, pois que eles tinham entrado, tomado as embarcações da nossa esquadra, recebido todas as satisfações, etc., etc. Eu tornei-lhe: «Mas não fizeram uma revolução e mudança de governo, que isso esperavam de certo com esta entrada no Tejo; e queira o comandante da esquadra, e mesmo toda a mais gente dela; falar verdade em suas consciências, e ver-se há se eles não contavam de toda a certeza com isso». Aqui, retorquiu ele que não podia crer que tais fossem as intenções do governo francês, nem que tivesse outra coisa em vista, mais que as satisfações pedidas. Eu respondi-lhe que reparasse na natureza e conteúdo dos artigos de que essas reparações se exigiam e visse que não eram mais que meros pretextos para nos procurar disputa e contenda; e expus-lhe ali mesmo os principais deles. Mostrando o homem ainda não me acreditar (posto que estou persuadido que ele o sabia como eu), volvi-lhe eu com vivacidade, em inglês mesmo, pois nesta língua estávamos falando, para que todos os presentes entendessem: «I know it, Sir»; e o homem, então, como eu lhe disse que positivamente o sabia, calou-se e disse: «Nesse caso, pois que V. o sabe de certo, já não digo nada». Ofereceu-me de pôr-me em terra no seu bote e eu, que não queria aceitar, fui obrigado a fazê-lo, para não parecer incivil, e no bote vim ainda conversando com ele no mesmo sentido. Duff desembarcou à Rocha do Conde de Óbidos e eu continuei no bote e vim desembarcar, perto de 10 horas, no Cais do Sodré, onde logo vi tropa e tudo no estado dum acampamento militar, assim como no resto da cidade. Vim trazer os despachos ao Visconde de Santarém e com ele conversei poucos minutos, indo para minha casa, porque chegou o Ministro de Espanha. Fui por casa do Desembargador Figueiredo, onde almocei, e depois vim ver meu pai; passei o dia conversando e ouvindo a relação do que ultimamente se havia passado em Lisboa, e, de tarde, fui ao Duque de Cadaval, que soube se achava no Grilo, em casa do Duque de Lafões, e que tinha sabido no bote, por Duff, que estava fora do ministério. Com o Duque falei sobre as matérias que era de esperar, depois de entregar-lhe as cartas do Visconde de Asseca. Da entrada dos franceses, deplorámos muito o facto e o Duque me disse que os fortes lhe tinham feito a resistência que podiam, nas circunstâncias em que estavam. Eu disse que isso podia ser, mas que estavam indesculpavelmente mal guarnecidos e defendidos; perguntei porque não havia bala ardente; respondeu-me que ele, até por que eu lho advertira nas minhas cartas, tinha instado por isso; e que o Conde de S. Lourenço lhe dissera que, não tendo as baterias os fornilhos, era preciso fazê-los de campanha e que nisso se estava trabalhando. Perguntei mais por que razão se tinha deixado de reparar o Forte da Areia 21, uma das mais fortes defesas do porto, etc., etc. Respondeu-me que aquelas baterias eram antigamente de areia; que, depois, as construíram de pedra e cal, mas sobre a areia, e que por isso estavam arruinadas (isso sabia eu, porque o tinha visto; mas porque se não concertaram, ainda que fosse com terra, e se não guarneceram? ...). Falou da impossibilidade de bater os navios franceses, depois de cá estarem no porto; da maneira por que entraram; de como ele sempre fora de opinião que eles entravam e forçavam o Tejo, segundo as comunicações que de mim tinha recebido, mas que o não quiseram crer, etc. Disse-me que só na sua quinta e imediações da casa, em Pedrouços, se tinham achado cinquenta e tantas balas de 36 e 24, fora muitas que os rapazes já tinham apanhado, para as ir vender à Fundição, e que parecia milagre o não haver uma só tocado na casa. Dissemos mil coisas mais, a propósito deste feito dos franceses e de muitas coisas meios importantes. Quanto ao negócio da necessidade de dinheiro em que está o Visconde de Asseca, disse-me que, ele, agora, não estando no ministério, nada pode fazer. Falei a respeito da sua saída do governo, porque desejava saber os motivos; e, estando certo que ele o não havia de ter feito sem motivo justo, queria certificar-me ainda mais positivamente disso. Disse-me que há muito tinha grandes desejos de deixar o ministério (e isso sabia eu), mas que o não tinha feito antes, porque em sua consciência se persuadia que nisso poderia ter feito mal à nação e a El-Rei; mas que, fazendo-se finalmente uma coisa que tocava na sua honra, esta não lhe permitira por mais tempo ficar de dentro e por isso insistira em sair. Explicou mais isto e disse que El-Rei tinha julgado a propósito demitir um de seus ministros, o da Justiça; que ele podia fazê-lo, porque era senhor, e, ou tivesse para isso bons motivos, ou não, podia fazê-lo; porém, fazê-lo de maneira que disso se fez afectadamente segredo a ele, Duque, de maneira que o não soube senão quando apareceu na Gazeta, isso era coisa que se não devia fazer e que por isso ele pedira a sua demissão, etc. A isto disse eu, como o sentia, que ele tinha nisso obrado como eu obraria e todo o homem de bem que em seu caso se tivesse achado. Apesar disso, disse-lhe que tinha feito muito mal à causa e à nação e a EI-Rei a sua saída e que eu não via como isso poderia ter remédio; e que, enquanto ele ou outra pessoa que pudesse tomar e preencher da mesma maneira o seu lugar não entrasse para o governo, dando a este assim uma cabeça, e como vínculo de união, não podia eu considerar que existia governo, etc. Ele disse logo que, pois finalmente se apanhara fora, como tanto desejava, agora não o tornavam a apanhar de dentro. Eu, que não tinha movido ao acaso esta conversação e tocado nesta matéria, mas que tinha em vista apanhar-lhe alguma coisa de que depois me pudesse servir, disse-lhe: «Pois eu estou tão certo de que V. Ex.ª só há-de fazer o seu dever, como bom português, que estou certo que, apesar dessa repugnância, V. Ex.ª havia de entrar, em certas circunstâncias, outra vez!». A isto, negando ele, perguntei eu: «Pois quando se mostrasse a V. Ex.ª que o salvar-se a nação e El-Rei dependia da entrada de V. Ex.ª havia de resistir a fazer este sacrifício à sua pátria e ao seu soberano?». - «Não, respondeu ele; porém, era preciso que eu disso fosse convencido, de maneira que o visse claro como o dia». Apanhada esta frase, aqui fiquei, por agora, e despedi-me, pedindo-lhe licença para voltar ali quando pudesse, o que ele admitiu, dando-me a hora ao meio-dia, como mais cómoda. No decurso da conversão, disse-me o que tinha feito pela segurança e defesa do Estado, desde o momento em que os franceses começaram a forçar o porto, e nisto, tanto ele como seu irmão se conduziram como verdadeiros portugueses e patriotas. Logo que cheguei, me disse que me tinha escrito para Londres muito ao largo, dando-me conta de tudo, para que pudesse usar disso nos jornais, e que não tinha escrito ao Visconde de Asseca, porque não tinha tempo para repetir, etc. Vim-me embora às Ave-Marias, porque lhe vieram dizer que os cavalos estavam prontos à porta para ele partir, mais o Duque de Lafões, a fazerem a ordinária ronda que fazem pela cidade, nos quartéis dos Voluntários Realistas, até alta noite.

23 – +) Escrevi para o paquete até às quatro horas, depois de ir a casa do V. de Santarém, a quem pouco disse, porque ambos tínhamos que fazer e eu já tinha esperado um bom pedaço que saísse de estar com ele o Ministro de Espanha. Escrevi ao V. de Asseca, dizendo-lhe o estado em que achara isto, per summa capita, e, de mais, dizendo-lhe que isto estava perdido sem remédio, tendo todo o remédio; mas que os antecedentes me faziam temer que não houvesse meio de fazer aplicar o único remédio que as coisas tinham, tal era o pôr EI-Rei o governo em verdadeira ordem e unidade, etc., e que por isso muito temia que isto estivesse perdido sem remissão, etc. Escrevi mais a Madame Sherson uma carta, que me agradou e que fiz copiar, para ter cópia; a Madame Dickens, e a Lemos pedindo-lhe entregasse as duas precedentes cartas, etc. Remeti a cópia da elegia que ontem à noite fiz ao Visconde, fazendo-a copiar por Rosado.

– a) Fui então jantar e dispor-me para ir a Queluz, a fazer os meus cumprimentos, e pela primeira vez em minha vida me pus de farda. Cheguei a Queluz pouco mais ou menos às oito horas da noite, e logo na sala antes da do dossel, apenas eu ia entrando, veio abraçar-me com grande alvoroço o meu colega Manuel Correia de Sá 22, fazendo com isso e com as perguntas que logo me dirigiu, assim como no que disse do empenho com que estavam de me ver a Condessa de S. Lourenço, a Marquesa de Belas, etc., etc., que se excitasse grande expectação a meu respeito e que todos os olhos se pregassem em mim. Então me disse ele: «Já ontem aqui o esperava toda a gente; eu tinha recomendação de fulanos e beltranos para que avisasse, logo que V. chegasse, e por isso três vezes andei procurando-o por toda a parte, havendo-se dito que V. assim estava». Eu respondi a isto, muito alto e desembaraçadamente: «Eu sabia que devia vir aqui primeiro; porém, logo que vim dar os despachos ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, este me disse que EI-Rei, ontem, era seu todo o dia e toda a noite; e; portanto, como eu não venho aqui visitar a porta nem as salas do paço, achei que era melhor deixar a visita para hoje, em que pudesse beijar a mão a S. M.; além de que era uma descortesia o presumir eu vir tirar EI-Rei ao Ministro, de quem era ontem. Assim, fui aproveitar o tempo para outra parte; fui ao Duque». Depois de mais algumas frases, entrámos para a sala do dossel, onde logo fui cumprimentado com distinção por várias pessoas, que ali estavam, do meu conhecimento; e, das muitas outras que estavam, conheci bem que eu roubava toda a atenção. Estive conversando alguns vinte minutos, principalmente com o Marechal Álvaro das Póvoas, e, nisto, veio o Conde de Cartaxo 23, camarista de semana, à porta da sala imediata e, saindo um pouco fora, anunciou-nos que S. M. mandava que entrassem. Então, Manuel Correia me apresentou ali mesmo a ele e fizemos em breve nossos cumprimentos, e repetiu então que entrássemos. Eu cuidei que era entrarmos sucessivamente; mas o Conde disse que entrássemos juntos e, assim, entrei com Póvoas para dentro da porta. El-Rei estava à direita e Póvoas foi falar-lhe por 3 ou 4 minutos e, no entanto, fiquei eu esperando perto do camarista e excitando a atenção dum grupo de pessoas militares, que, da porta da outra sala que se seguia, me estavam olhando com grande curiosidade, e ouvindo-os eu a cada momento cochicharem o meu nome. Foi-se Póvoas e eu ajoelhei, notando que El-Rei, desta vez, me não mandou levantar e deixou-me dar o recado de joelho em terra, o que eu atribuo a uma espécie de perturbação em que a minha presença lhe excitava (sic), por causa da bulha que lhe estão fazendo no espírito as prevenções e coisas que de mim tem ouvido a meus amigos, e a invejosos ainda mais, como a P.es Antónios, etc., etc. O meu recado foi este: «Senhor: cheguei ontem como, V. M. saberá; vim, como era de meu primeiro dever, entregar os despachos ao Ministro dos Negócios Estrangeiros e este me disse que vinha para aqui e que estaria com V. M. até muito tarde; portanto, não podendo ter a honra de beijar a mão a V. M., deixei para hoje o vir aqui. Hoje pela manhã, estive escrevendo para o paquete, porque o serviço parece-me que deve ir antes de tudo («Sim» - disse El-Rei), e agora aqui venho beijar a mão a V. M., por mim, pelo Visconde de Asseca e por toda a legação, pelo cônsul Sampaio e, finalmente, por todos os empregados que servimos a V. M. naquela corte, assim como por todos os portugueses fiéis que estão em Londres, que todos isso me pediram e que viesse felicitar por eles a V. M., pela saúde que sabíamos que gozava e que esperávamos gozaria, quando eu aqui chegasse». («Muito obrigado a todos; diga-lhes que lhes fico muito obrigado» - respondeu El-Rei). E eu continuei: «Em segundo lugar, tenho várias coisas muito importantes a dizer a V. M., da parte do Visconde de Asseca, segundo a sua recomendação, que para isso cá me mandou, e outras posso dizer, que é muito útil e necessário que V. M. as saiba nesta ocasião, mas não havia eu de escolher a actual, em que tanta gente está para falar a V. M., para lhas expor; se V. M. me quiser fazer a honra de ouvir-me em outra ocasião, eu muito desejo dizer-lhe o que tenho que dizer». («Quando quiser» - disse El-Rei). E eu tornei: «Eu quero sempre, Senhor; mas é preciso saber quando V. M. tem vagar, visto que tem tantas coisas em que cuidar». («Pois algum dos dias seguintes» -respondeu ele). E com isto, me despedi. Saindo para a sala do dossel, fui cumprimentado com grande afabilidade pelo Conde de Camarido, logo pelo Marquês de Belas, depois por Teixeira, ajudante de El-Rei, e por muitas outras pessoas; e, dali, fui, guiado por Manuel Correia, ao quarto de D. Francisca Vadre 24, a quem Manuel Correia me apresentou e que me fez muito afável recepção. No dito quarto estava grande número de senhoras, das quais só conheci a Condessa de S. Lourenço e D. Leonor, tia do Visconde de Asseca. Toda aquela gente estava com grande atenção sobre mim, e a Condessa de S. Lourenço veio logo falar-me com grande particularidade e perguntando-me muito pela família de Asseca, etc., dizendo-me ela que já ali me tinha esperado toda a gente no dia precedente. Respondi-lhe que, como El-Rei estava com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, e assim sabia que me não falava, e como eu não vinha ali só para que constasse que vim, mas para lhe beijar a mão, por isso não tinha vindo e tinha antes julgado mais acertado ir aproveitar o tempo para outra parte, indo levar ao Duque as cartas do Visconde de Asseca e visitá-lo; e acrescentei, em voz alta e distinta: «porque, se não estivesse fora do ministério e se achasse ainda primeiro Ministro, não ia lá ontem mesmo; ficava a conversar com meu pai e só lá iria no dia seguinte, como fiz da outra vez que cá vim, ou noutro dia; mas, como não estava, por isso mesmo assentei logo que, pois não vinha a EI-Rei, havia de ir ao Duque.» Veio depois o Conde de S. Lourenço a cumprimentar-me muito afectuosamente e, ao mesmo tempo, apareceu a cumprimentar-me também, com grande familiaridade, outro homem com farda do paço, uma grã-cruz, comendas e hábitos diversos. Eu, porém, que não entendo nada de tais fardas, nem de coisa nenhuma daquilo, falei-lhe, murmurando-lhe por entre os dentes um tratamento que não se ouvisse bem, porque não queria dar-lhe Excelência nem Senhoria, porque não sabia quem era, nem qual tinha; e, ainda que eu lhe via tanto distintivo, como no nosso paço, às vezes, vendo-se um homem assim, se se pergunta quem é, sai um cirurgião, um músico, ou coisa semelhante, achei-me no embaraço, de que só depois saí, ouvindo chamar o homem Marquês de Borba. Com o Conde de S. Lourenço falei então, por coisa de meia hora ou três quartos, sobre o estado das coisas fora do reino a nosso respeito e sobre as ocorrências que haviam passado no interior dele, não deixando logo ali de estranhar, muito às claras, que tivessem a barra de Lisboa num tal estado de indefesa, depois de terem tanto a tempo sido por mim mesmo advertidos das intenções e projectos dos franceses, como o Duque devia ter-lhes dito, pois a ele fiz eu as comunicações. A isto, disse o Conde que era verdade que o Duque tinha comunicado tudo e que ele, S. Lourenço, sabia que eu tinha sido quem lhe fizera saber tudo, etc. Finalmente, depois de haver eu dito-lhe (sic) muitas verdades, despedi-me por hoje e fui com Manuel Correia ao quarto do Marquês de Belas. No quarto do dito Marquês, onde vária gente me seguiu, como o mesmo Marquês de Borba e outros, depois das perguntas do estilo que me fizeram e recados que eu dei de Assecas, etc., começaram a perguntar-me por coisas políticas de Inglaterra e eu lhes respondi, com bastante desembaraço e despejo, o que me pareceu, estando eles todos ouvindo de boca aberta, porque tudo o que ali estava, se são fidalgos no sangue, são puro povo nas ideias. Foi-se embora a maior parte da gente, ficando Marquês e Marquesa de Belas, Manuel Correia, outro fidalgo ajudante de El-Rei, o ex-intendente Germano da Veiga e mais duas senhoras idosas. Fomos falando de várias coisas e, pela minha parte, com bastante liberdade, censurando fortemente a negligência, a ignorância, o desleixo e o pouco caso dos avisos feitos, com que o governo se tinha portado, resultando de tudo isso a vergonha e opróbrio presente para a nação e para o Rei e o grande perigo em que se acha. Eles foram todos descantando-me largamente o entusiasmo do povo e da tropa, que acudira por El-Rei numa tal efusão, como se observara na ocasião da entrada dos franceses no porto e nos dias seguintes até hoje; porém, eu, que vejo neste descante o mesmo com que embalam El-Rei, tendo-o assim numa louca segurança, só firmada nesse precário favor do povo, respondi que, na verdade, não havia elogios bastantes para louvar tal entusiasmo e decisão; porém, que não nos devíamos fiar só nele e que, se agora havia servido para salvar El-Rei e se podia ainda algumas vezes mais servir para o mesmo, por fim havia de cansar, se as tentativas contra nós fossem muito repetidas, como eu temia que fossem; que o calor do entusiasmo era duma natureza passageira, como todos os extraordinários movimentos da nossa alma, e, portanto, não podia durar muito, principalmente havendo tantas coisas que a um tempo trabalhavam por esfriar o mesmo entusiasmo, como era: 1.º a miséria, que não podia duvidar-se existir, e muita; 2.º o não se pagar por não haver dinheiro, em consequência do desarranjo da fazenda e do desgoverno, mal terrível e que demonstradissimamente havia de ir crescendo todos os dias; 3.º as balelas e mentiras quotidianamente espalhadas pelo partido contrário para desanimar, etc., etc. ; que, portanto; a verdadeira segurança devia ter-se no bom governo, em que se devia cuidar e em emendar tão escandalosos defeitos, que iam levando isto à sua ruína, etc. Aqui, saía o Marquês de Belas, perguntando quando pensava eu que a Inglaterra nos reconheceria. Ao que respondi que nos não reconheceria facilmente, enquanto nós mostrássemos desejá-lo tanto e enquanto não nos mostrássemos dignos de desejarem as outras nações ter conhecimento e relações connosco, - o que não podia ser enquanto estivéssemos no desgoverno e desordem em que estávamos. «Há um morgado tolo, disse eu, que possui uma casa, deixada por seus antepassados e que estes construíram com sua nobreza e indicando, no modo e estrutura, haver sido feita por gente de bem e importante; porém, o possuidor actual, desgovernado e mal criado, tem tudo em abandono, chove na sala das visitas, assim como nas outras, o sobrado está esburacado, a parede sem cal, as fazendas mal cultivadas; finalmente, tudo o que lhe pertence é a imagem da desordem; deve ao carniceiro, ao padeiro, ao sapateiro, e com dificuldade paga o que deve, porque se não sabe governar.  Que sucede? Que ninguém que tenha juízo quer ter contratos nem relação com ele, porque teme todo o mundo que ele lhe peça um cruzado novo, por exemplo, e que, por vergonha, seja qualquer obrigado a emprestar-lho, quando não há esperança de que o pague. Assim acontece que, apesar da sua nobreza de sangue, ninguém faz caso dele, nem com ele quer contratos. Há, porém, um homem lavrador, ou doutra profissão das médias da sociedade, que, pela sua indústria, governo e assisada economia, tem junto alguns bens, fez a sua casa, não magnífica mas jeitosa, que conserva bem reparada e caiada; vai-se a sua casa, trata civilmente e com abundância, se não com fausto, os seus hóspedes; tem as suas fazendas bem cultivadas, os seus negócios em bom pé, tem mesmo de reserva alguns tostões, com que pode valer a um amigo numa precisão; finalmente, é o retrato da ordem e boa economia. Todo o mundo, ainda personagens, saúdam com estima e consideração este homem e busca-se ou estima-se a sua amizade, não há. dificuldade a tratar com ele, etc. Ora Portugal é o morgado tolo; e, enquanto ele se não puser no caso do homem de juízo, bem governado, ninguém desejará contratos com ele e não ambicionará restabelecer com ele relações mais íntimas, ou, por outras palavras, haverá dificuldades em ser ele reconhecido pelas outras potências. Tirei, pois, por conclusão, que o reconhecimento de cá havia de ir e para o interior do Reino se devia principalmente olhar, se queríamos ser reconhecidos e respeitados, etc., e não estar sempre com os olhos fitos sobre os estrangeiros, para que estes nos viessem acudir e salvar.» A isto interrompeu Germano da Veiga: «Se V. for capaz de persuadir isso e o fazer crer cá no Reino, dou-lhe alguma coisa!» Eu repliquei que não supunha agora toda a gente tão destituída de juízo, que os não julgasse capazes de entender uma coisa tão clara. Dizendo ele que, assim mesmo, era impossível de persuadir eu respondi que, se El-Rei o quisesse fazer e seguir para isso os conselhos que se lhe dessem, isso se conseguiria facilmente; mas que não se faria enquanto houvesse gente como havia, que lhe desfiguravam tudo e diziam quanto podia ser-lhe mais prejudicial, caluniando na sua presença as pessoas que mais fiéis eram a EI-Rei, como a mim tinham feito. Que era preciso ter a fidelidade muito arreigada no coração para não fazer algum despropósito, vendo que não bastavam factos, nem serviços, nem sacrifícios, para pôr um homem a coberto de tais calúnias, ou, antes, de serem ouvidos tais caluniadores. Que eu desejava falar a El-Rei; e que, se lhe chegasse a falar, do que não tinha nenhuma esperança, porque sabia de quanta dificuldade isso havia sempre sido para mim, a minha tensão era de começar por este preâmbulo: «Antes de tudo, desejara que V. M. me fizesse a honra de dizer-me se tem a mínima desconfiança da minha fidelidade e sentimentos; porque, se a tem, quero deixar desde já de ser, não só seu empregado, mas até seu vassalo; porque respeito muito e amo a V. M. para consentir que, por amor de mim, tenha no fundo do coração o espinho de que tem no seu serviço, ou como seu vassalo, uma pessoa que reputa sua inimiga; porque, se eu não sou fiel a V. M., sou seu inimigo e, nesse caso, quero antes ir ganhar a minha vida, como puder, para um país estrangeiro». Aqui, disse Veiga que bem sabia porque eu falava assim; eu, sem entender o que ele com isso queria dizer, tornei-lhe que falava assim porque não tinha o mínimo susto de dizer a verdade, que El-Rei podia mandar-me enforcar ou cortar a cabeça, mas não impedir-me de dizer a verdade, enquanto eu tivesse vida e língua. Depois disto, disse, com grande calor e acrimónia, tudo quanto me velo à cabeça, a respeito dos intrigantes, caluniadores, etc., que desviavam a verdade e os homens de bem de EI-Rei, e, finalmente, falei de modo como creio que nunca se falou dentro das portas daquele paço, despedindo-me depois da meia noite. No caminho para casa, vim imaginando o meio que. me proponho tentar para ver se se põe isto em alguma ordem, que pareça governo, e concebi o plano, direi depois de amanhã em resumo, referindo o que passei com o Duque de Cadaval, que entra como parte essencial deste plano, e a quem primeiro que tudo o quero propor.

24 – a) Fui a casa do Visconde de Santarém, a quem não disse nada de notável, e aproveitei a circunstância de ele ter de ir ouvir missa, para me escapar, a fim de não falar com ele muito tempo, porque não queria por ora dar-lhe parte do meu plano e, se falasse muito tempo e nada lhe dissesse, com razão podia acusar-me de lho haver dissimulado, quando o viesse a saber depois. Vim para casa e falei com Rebocho, que jantou comigo, e a quem disse várias coisas, a respeito do desagradável estado das nossas coisas, tudo procedente do nosso mau governo e pouco juízo. Ele me expôs as circunstâncias do governo, analisando o carácter e capacidade dos indivíduos que o compõem, com suma verdade, precisão e clareza, explicando-se, pelo que ele disse, facilimamente todos os procedimentos e erros do governo; finalmente, exprimiu tudo dum modo que eu desejaria fazê-lo assim e ter escrito o que ele disse em poucas palavras, tão exacto e significativo, numa linguagem muito simples.

– b) Fui visitar a Viscondessa de Asseca, com quem estive falando longo tempo e a quem deixei ver uma boa parte dos perigos que nos ameaçam e dos erros que eu achava se haviam cometido e estavam cometendo, mais perniciosos para o bom êxito da causa de EI-Rei e da nação. Fui depois visitar o Ministro de Espanha, que achei com o Adido Asnares; e, depois de falarmos largamente sobre as matérias do momento, achando-nos muito de acordo na maior parte dos pontos, o deixei. O que de mais notável falámos, foi a respeito das consequências funestas que podia e havia de vir a ter, se não se lhe desse remédio, a desorganização em que se achava o Governo pela saída do Duque, a quem ele, Conde de Montalegre, fez justiça, e concordámos em que, se isto continua no desarranjo em que está, sendo o Governo, por assim dizer, posto nas mãos dos mexeriqueiros, etc., etc., isto há-de vir a acabar por uma intervenção forçada, em que a mesma Espanha, dizia ele, há-de tomar parte. Então lhe disse eu: «Sou tanto de acordo nesse ponto, que ainda me não desdigo da profecia condicional que fiz em 1828, de que ainda há-de ser a Espanha que nos há-de vir impor o que não desejamos e forçar-nos a submeter-nos a condições liberais, etc.»

– c) Vim para casa, onde me estava esperando Cruz Maior, que, depois de breve preâmbulo, me disse que eu tinha muito boa fé e me deixava iludir por várias pessoas, que eu cria boas e realistas e que eram o contrário... Perguntando-lhe quais eram essas pessoas e pedindo-lhe que me dissesse uma, ao menos, para eu poder melhor julgar, começou pelo Duque de Cadaval; ao que eu logo dei uma risada e lhe disse que ele é que estava muito enganado e que não falasse das pessoas que pessoalmente não conhecia e que eu tinha tratado e estudado à minha vontade; que ele, Cruz, tinha, sem dúvida, caído nas mãos destes ralhadores tolos que por aí há, que não são mais que os instrumentos cegos do partido liberal, sendo eles realistas, mas embutindo-lhe os liberais, por meio de pessoas da sua facção, disfarçadas em realistas, tudo quanto aos mesmos liberais faz conta, a fim, de, por meio dos ditos realistas tolos, se livrarem das pessoas que mais empacho lhes fazem, como agora aconteceu com o Duque, etc.; disse-lhe, em uma palavra, que era inútil dizer-me nada contra o Duque, pois que eu o conhecia inteiramente, e quem duvidasse da fidelidade e bons sentimentos do Duque devia igualmente duvidar da minha, pois éramos perfeitamente de acordo, etc. Ainda contrariou por alguns momentos a minha opinião; porem, vendo que, a respeito do Duque, não me fazia mossa, e que eu o defendia com razões fortes, passou a falar doutros, entre estes o Visconde de Santarém e Castelo Branco, oficial maior da Secretaria dos Negócios Estrangeiros. A respeito destes, disse-lhe eu que estava bem longe de apreciá-los como ao Duque e que não teria dúvida de confessar que tinham seus podres e defeitos (ainda que não são aqueles de que Cruz os acusa). A esta concessão, tomou o homem fôlego, dizendo-me que já eu lhe concedia alguma coisa e que isto o alegrava, mostrando-lhe que não era obstinado nas minhas ideias e opinião, etc., ao que respondi que não o era decerto e que só o que desejava era ser convencido do melhor e então cedia. Não quis fazer, por agora, mais explicações a respeito de Santarém e Castelo Branco, para não destruir a ideia verdadeira que o homem ia tendo da minha desprevenção e boa fé, reservando-me para tomar-lhe depois a rédea em tempo mais oportuno e quando estivesse melhor preparado para ouvir e ponderar as minhas razões, sem a prevenção que agora o iludia. Finalmente, depois que lhe fiz mais algumas pequenas concessões, que o lisonjearam, para o domesticar à razão e à verdade, ficámos em que ele voltaria aqui amanhã pela manhã, para conversarmos mais, eu dizer-lhe muita coisa que lhe importava saber e tomarmos mais algumas resoluções.

25 – a) Veio Cruz pela manhã cedo e conversámos nas mesmas matérias e noutras, dando-lhe eu uma ideia dos perigos que havia e do modo por que se lhes podia obstar, consistindo este, principalmente, em pôr o governo aqui noutro pé de regularidade e capacidade; para isto, eu lhe disse que a primeira coisa era o fazer entender o perigo a El-Rei e, com ele, a necessidade de precaver-se e afastá-lo pelo modo que há para isso; mas logo lhe fiz ver que a maior dificuldade de todos, e principalmente para mim, era essa de ver e falar a El-Rei, o que lhe provei contando-lhe o que, a esse respeito, me havia sucedido quando vim de França em 1828 e nas outras vezes que tenho vindo à capital, etc. A isto disse Cruz que ele podia arranjar-me, por terceira pessoa, o poder eu falar a El-Rei; que o Marquês de Belluno tinha uma pessoa que, quando recomendava alguma outra a EI-Rei, ele lhe falava em particular, etc.; que esta pessoa lhe parecia ser um major do regimento 4; e que, se eu quisesse, ele arranjaria com Belluno o falar-lhe e ver se, pela dita pessoa, eu podia falar a El-Rei. Eu respondi-lhe que sim, que tratasse ele de arranjar isso; e, no mesmo intento assentámos que Cruz partiria hoje para Sintra e faria com que viesse Belluno falar comigo amanhã. Foi-se embora Cruz e eu parti ao mesmo tempo, para falar ao Duque de Cadaval, a quem desejava dispor, para, no caso de El-Rei se convencer do perigo em que estamos e de querer eficazmente emendá-lo e preveni-lo, o Duque estar já por mim um pouco preparado, para, de sua parte, cooperar, pois no meu plano entra, como parte essencial, a sua cooperação, e desejava por isso tê-lo disposto de maneira que lhe não fosse possível esquivar-se, como decerto desejaria fazê-lo. Chegado ao Grilo, a casa do Duque de Lafões, onde o outro está agora, como estavam à missa os Duques e a família, fui no entretanto passear até um convento que está para cima, que tem perto da igreja um poço dentro duma gruta, e voltando ao Duque, acabada a missa, comecei com o meu propósito assim: Expus como, se as coisas não tomavam um andamento regular e boa ordem na administração interior do reino, em breve as potências da Europa tomariam à sua conta o dispor como isto deveria pôr-se em ordem e jeito. Dei as provas da desordem em que o reino está, que, como são tantas, de facto, e tão sobressalientes, não houve dificuldade para o Duque se convencer de que isto não podia ir assim por muito tempo sem alguma grande desgraça, a não se lhe dar remédio a tempo. Mostrei-lhe depois, com factos e ditos de Lord Palmerston 25, e mesmo doutros ministros ingleses e doutras nações, como havia por maior dificuldade no reconhecimento de El-Rei a persuasão em que os gabinetes estavam, pela maior parte, de que o actual governo, aqui, não tinha consistência, nem firmeza, nem solidez, e que, tudo ia tão desgovernado, que não prometia duração, o que desgraçadamente se vê ser mais que verdade. Mostrei que, junta esta persuasão à vontade que há nos governos francês e inglês de transtornarem a ordem aqui estabelecida de governo e à indisposição tão forte contra a pessoa de El-Rei, havia brevemente dar por resultado o tomar-se, desse mesmo mau governo, pretexto para intervir aqui, dizendo-se: Que se tinham dado três anos ao actual governo português para se ver se, nesse tempo, se estabelecia e se consolidava dum modo que prometesse tranquilidade no reino e que oferecesse garantias de paz e de capacidade de cumprir para com os outros governos, não só os deveres particular e especialmente estabelecidos pelos tratados, mas os deveres gerais do direito das gentes, etc.; que se tinha visto como o governo de D. Miguel se tinha mostrado incapaz de tal, conservando-se e prolongando-se o estado de desordem e de violência, dum modo, que era certíssimo o haver ali em breve novas comoções, que danariam às relações e interesses comerciais dos súbditos das outras potências, e, por fim, poderiam e deviam trazer a perturbação da tranquilidade na Península e mesmo na Europa. Que era, pois, preciso, para o fim geral da paz da Europa, que em Portugal se estabelecesse um governo com que se pudesse contar para ajudar o mesmo objecto geral da tranquilidade europeia, em lugar de pô-la a cada momento em perigo, pelas suas violências e incapacidade, como o actual governo de D. Miguel. Mostrei então, pelos factos e ditos de Palmerston e outros, como eles estavam muito bem munidos das provas e documentos com que haviam de apoiar a precedente asserção e como cada vez mais para isso se iam preparando sistematicamente, concorrendo daqui o Cônsul inglês Hopner em os ajudar, e que, para isso, ele tinha despachado ultimamente, como eu sabia, para o seu governo, um brigue com uma representação colectiva dos comerciantes ingleses aqui, dizendo, em suma: Que aqui não havia governo, mas sim desordem e anarquia, sem segurança para as pessoas nem para a propriedade, e havendo as maiores dificuldades para o trato comercial, não podendo os negociantes aparecer nem ir à praça, com susto de serem maltratados e espancados, não se achando muitos em suas casas, quando se procuravam para pagamentos de letras ou outros negócios, porque, ou estavam presos, ou fugidos e escondidos, etc.; que não havia protecção eficaz nas próprias autoridades, porque o governo secreto dos agentes particulares de D. Miguel faziam o que queriam, sem nenhum respeito pela subordinação, nem pelas autoridades estabelecidas, etc. Mostrei em seguida ao Duque quais haviam de ser os meios por que haviam de querer estabelecer aqui a ordem, que mostravam não haver, e as seguranças da tranquilidade, e era, pouco mais ou menos, pelo mesmo modo porque tomaram à sua conta os negócios da Bélgica e impuseram a lei ao Rei dos Países Baixos. Mostrei como o Rei da Holanda ou dos Países Baixos era actualmente o soberano que mais bem governado e administrado tinha o seu reino, em todo o sentido, a sua fazenda na maior ordem, assim como todos os ramos de administração e aproveitamento, como especifiquei ao Duque, como, apesar de ser parente de EI-Rei de Inglaterra, de ser um rei liberal, etc., etc., - tanto assim, que o próprio Times o tinha defendido muito ao princípio, - não pôde livrar-se de lhe serem impostas pelas célebres conferências e protocolos de Londres todas as condições que quiseram, obrigando-o a depor as armas, ou cessar as hostilidades, e fazer todas as outras desistências que sabe todo o mundo que está instruído nestes últimos negócios da Bélgica . Ora, se isto se fez a El-Rei de Holanda, apesar do que fica dito,  que podemos nós esperar, no miserável estado de fraqueza, de desordem e de desgoverno em que nos achamos? Com quanto maior facilidade nos obrigarão a tudo quanto quiserem e com quanto maior império e altivez nos imporão e ditarão a lei que quiserem? Desenvolvi tudo isto largamente e o Duque entrou perfeitamente nas mesmas ideias e convicções. E, pois, provável, ou, antes, quase certo, que, se nos não precavemos e prevenimos, teremos em breve, a nosso respeito, protocolos como os da Bélgica, em que nos serão ditadas todas as condições que quiserem e imposto tudo quanto lhes agradar. O Duque igualmente concordou nisto, assim como nos seguintes pontos, que eu apresentei como deverem ser, provavelmente, as condições que nos ditarão, pouco mais ou menos: 1.º, e muito decerto, casamento de EI-Rei com a Princesa do Grão-Pará, prevalecendo-se eles para isso da resposta dada por EI-Rei a esse respeito em 1829; 2.º Fusão de direitos, a não ser talvez o casamento, segundo o disposto na carta de D. Pedro de 1826; 3.º Amnistia generalíssima e pleníssima para todos os refugiados e partidários de D. Maria, com restituição de bens, indemnização total e reabilitação completa de todos eles, e talvez restituição de todos os empregos que tinham; 4.º D. Pedro, como regulador dos interesses de família e árbitro de tudo, como chefe da Casa de Bragança, ao que já se vão preparando os caminhos, denominando-se ele Duque de Bragança; 5.º Alimentos a D. Pedro e rendas, que hão-de ser as da Casa de Bragança, que hão-de pretender para ele ; 6.º O ex-Marquês de Palmela empregado como primeiro Ministro, e empregados com ele todos os sócios dele, como única gente ilustrada e capaz de governar, para o que já Lord Palmerston, que é muito amigo dele, já (sic) foi lançando os fundamentos, em uma conferência com o Visconde de Asseca, dizendo-lhe, entre outras coisas, que, para provar quão pouco D. Miguel e os realistas portugueses eram pouco (sic) hábeis e capazes, basta-a o ver-se que tinham impossibilitado de servir o reino ao único homem de Estado, ao único homem de talento que tinham, o Marquês de Palmela !!! (Permita-me o Sr. Lord Palmerston que o chame tolo por fazer tal juízo do franchinote Pedro, de Sousa, que não presta senão para mal e é homem tão superficial como jogador, ao menos). 7.º Várias outras condições, que hão-de dispor o caminho para, depois, e não muito longe, vir uma Carta, ou coisa semelhante, se não vier logo ao princípio, por medo da Espanha e oposição de Áustria, Rússia, etc. Havendo o Duque concordado comigo em tudo isto, assim como em entender a vergonha, o opróbrio, a desonra, a indignidade, que daí resultaria para EI-Rei e para nós todos, e também o perigo para todos os que mais parte tomaram na causa nacional (pois há-de entrar em condição também o apartar-se dos negócios e empregos, como exaltados e incapazes, todos os realistas mais decididos), disse eu e mostrei a necessidade de prevenir tal vergonha e tal desgraça, apontei o único modo que há, que vem a ser, o plantar aqui um governo que o seja, e isto por meio dum ministério organizado de maneira que a máquina do governo ande regularmente, vencendo com prudência as resistências, etc.; - governo com que se possa contar - e, finalmente, acabando-se o estado de anarquia e de desordem em que estamos, e acabando-o por nós mesmos, antes que os de fora venham tratar de o acabar, eles, pelo modo que lhes agradar, e tomando daí pretexto para nos imporem o jugo que quiserem. Achando o Duque também de necessidade, disse-lhe eu que ia a empreender de ver se se reduzia isto a prática, pois que tão urgente era, mas que, para isso, precisava que as pessoas que de boa vontade queriam o bem da Pátria e da causa me deviam ajudar e devíamos conspirar todos para o dito fim, pelos modos e facilidades que cada um pudesse prestar, e ninguém, pela sua parte, deixar de concorrer com a parte que lhe competisse, etc. Concordou nisto o Duque e eu fui-o assim levando para o apanhar depois, quando fosse preciso, pelas suas próprias concessões e palavras, pois doutra maneira eu sabia que seria muito dificultoso fazê-lo tomar mais parte nos negócios e no governo, e, sem ele entrar, eu não acho possível o fazer-se nada de bom. Disse-lhe então que, para o bom resultado deste tão necessário plano, a primeira coisa necessária e indispensável e aquela em que eu considerava a maior dificuldade de todas e uma quase impossibilidade era em: 1.º, convencer EI-Rei do perigo; 2.º; resolvê-lo a querer pôr os meios de evitá-lo; e 3.º, fazer que efectivamente quisesse e deixasse e ajudasse a empregá-los, com a energia, ausência de contemplações e decisão, sem as quais nada feito. Que esta dificuldade era, com efeito, tão grande, que eu não tinha quase esperança alguma de vencê-la; mas que nem por isso havia de deixar de tentá-lo, poisa minha regra era combater e trabalhar sempre por vencer os obstáculos, ainda quando fossem os maiores, enquanto não havia uma positiva e certa impossibilidade de vencê-los. Que, para o primeiro passo indispensável, que era falar a El-Rei, a minha tenção era ir a Queluz e combinar com o Conde de S. Lourenço e ver se podíamos descobrir o meio de me introduzir a falar a EI-Rei em confidência, depois de haver convencido ao Conde do perigo e da necessidade de trabalhar por evitá-lo, pela mesma maneira por que ali a tinha exposto a ele, Duque. Mas acrescentei que não quisera fazer nada sem participar-lho, a ele mesmo, Duque, e consultá-lo, e perguntar-lhe se achava acertado que eu caminhasse segundo o plano que vinha de expor-lhe, assim como se aprovaria que me dirigisse, como intentava, pelo Conde de S. Lourenço. Achou tudo bem, e aprovou que caminhasse como projectava, dando as razões por que achava o Conde de S. Lourenço capaz e de confiança, etc. A razão por que eu quis ir fazendo assim indirectamente o Duque tomar parte no projecto e aprová-lo, era para depois achar menos dificuldade em fazê-lo activamente cooperar a seu tempo, se a fortuna quisesse que eu fosse bem sucedido a resolver EI-Rei a fazer o que tanto lhe importa e o que só o pode salvar e à nação de tantas desgraças e opróbrios. Por incidente, falámos de muitas outras coisas, pois durou a conversação mais de três horas e eu falei sem rebuço a respeito de tudo e analisei sem disfarce algum, segundo entendia, o préstimo e inconvenientes de várias pessoas, como do mesmo Conde de S. Lourenço e do Visconde de Santarém, de quem eu disse o que sentia, sem rebuço, reduzindo-se a que; não acreditando eu nas imputações, que lhe faziam, de infiel à causa de El-Rei, etc., entretanto, estava bem longe de o julgar capaz para o lugar em que estava, em razão de não ter capacidade bastante em saber, e em se exprimir de maneira inteligível, e em despachar os negócios com despejo e sem demoras, etc., etc.. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .   O Duque concordou. Quando, finalmente, saía e me despedia, disse-lhe: «Ora espero e conto que V . Ex.ª ajudará da sua parte e fará tudo quanto pode, servindo no lugar que convier, etc., para esta obra, da qual depende a salvação da pátria, de El-Rei e da causa em que estamos, todos os bons, empenhados». A isto respondeu que ele não podia agora fazer nada, pois estava de fora e que, pois o estava, como há muito tanto apetecia, agora não se queria tornar a meter de dentro. Eu disse-lhe que, se estava de fora, era preciso tornar a entrar, para salvar El-Rei e a pátria, e que já eu tinha dele mesmo a segurança de que, quando dependesse do seu serviço e sacrifícios um tal resultado e salvamento, que não se recusaria a ajudá-lo e a servir; que se lembrasse do que me tinha dito a esse respeito, no último dia em que lhe falara (vide dia 22). A isto, tornou ele que não negava o que tinha dito; mas que ele dissera que obraria assim, quando estivesse convencido que do seu serviço dependia o salvar-se EI-Rei e a pátria; mas que ainda o não estava. Eu deixei-o, sem dizer mais nada por agora, e parti para casa, na intenção de ir amanhã mesmo a Queluz, para dar principio à obra. À noite, fiquei em casa, estando meu pai na cama com um ataque de gota e muitas dores; e, vendo que estava muito impertinente e apertado de ânimo, efeitos da mesma moléstia, fui buscar a minha colecção da Musa Quotidiana e comecei a ler-lhe alguns artigos, e fui lendo, lendo, e contando-lhe contos, para o distrair e lhe fazer esquecer as dores. Não me enganei, que, passada uma hora e tanto, pegou no sono e começou a descansar. Então, bem contente do meu estratagema, comecei ali mesmo a compor os versos para este dia, agradecendo à Musa o serviço gostoso que me tinha feito - o de ajudar-me a aliviar meu pai.

26 – a) Fui a Queluz, onde, chegando, procurei o Conde de S. Lourenço, e, depois de expor-lhe as coisas pouco mais ou menos como ao Duque, servatis servandis, ele, Conde, concordou, e também na dificuldade maior, isto é, a de falar a EI-Rei como deve ser e fazer-lhe ver o perigo evidente em que estamos e convencê-lo da necessidade do remédio eficaz, etc. O Conde disse que, segundo o carácter de EI-Rei, era isso muito dificultoso; que ele não teria dificuldade em ir dizer a Sua Majestade que era bom falar-me e de pedir-lhe hora para isso, etc.; mas que, como era preciso que falássemos sem rebuço, não me podia disfarçar a sua opinião, e era que o ser insinuado a El-Rei por pessoa do ministério que me falasse era o modo de Sua Majestade não dar muita atenção nem importância ao que eu lhe dissesse; que EI-Rei, desgraçadamente, fazia mais caso das coisas, quando lhe vinham por certos canais particulares; que este era o facto e que, desejando nós eficazmente aproveitar, seria bom procurar alguns desses mesmos canais. A isto tornei eu que não era de meu sistema e princípios o ir por portas travessas; entretanto, que, para o bem geral e com a aprovação e conselho dos ministros, me sujeitaria a ser introduzido por uma dessas portas, contanto que não fosse indecente e indecorosa para mim. Então, começou o Conde mesmo a enumerar as pessoas ou camarilhas por quem havia mais íntima entrada à confiança de EI-Rei : falou primeiro no Conde de Basto, a quem fez justiça, como eu, dizendo que tinha na realidade boa vontade, era fiel a El-Rei, etc., mas que, pela sua idade e outras fraquezas, abusavam da sua boa fé, e, de facto, a sua presença no Ministério e influência ao pé de El-Rei tinham causado prejuízos grandes; que, sendo de necessidade, a quererem pôr-se as coisas em boa ordem, que ele deixasse o Ministério, e que, para isso, se fizesse ver a El-Rei os inconvenientes da conservação dele no mesmo Ministério, claro estava que por aí não se devia caminhar a ganhar a atenção de Sua Majestade. O outro caminho, de Padres Venâncios e Padres Antónios, contra quem eu também desejava falar, para mostrar sua incapacidade e o mal que faziam com seus loucos conselhos, ficava também excluído. Restava, pois, o caminho de ser introduzido por D. Francisca Vadre, a qual o Conde disse que não era capaz de ajudar, pela sua agência, em coisa nenhuma em que se necessitasse alguma finura e inteligência, porque era só uma boa e pobre senhora, que entendia pouco ou nada das coisas; mas que, para procurar uma entrevista com EI-Rei, podia servir, e que era de parecer que se tentasse essa vereda, pois que, atendidas as circunstâncias todas, não se podia reputar indecorosa essa porta. Eu aprovei, e logo fui com Manuel Correia ao quarto de Vadre, ajustando com ele que saísse pouco depois de entrarmos, para me deixar só com ela mais em liberdade de falar, e para, com esta espécie de segredo e mistério, lhe pudesse melhor imprimir uma ideia da importância do meu negócio em falar a EI-Rei, etc. Assim, pois, se executou, e eu, logo que fiquei só com ela, preparando o discurso ao paladar da ouvinte, lhe disse, em suma: Que tinha vindo de Londres com vários objectos na minha missão, uns oficiais e dirigidos ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, regularmente, e outros que tinha recomendação e desejo de expô-los, antes de mais ninguém, a Sua Majestade. Que, quanto aos primeiros, logo tinha ido dar conta ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, como era do meu dever; mas que, quanto aos segundos, me parecia que não devia dar parte deles a ninguém, antes que a EI-Rei, e que, depois, se Sua Majestade achasse conveniente que eu dissesse as mesmas coisas aos Ministros, ou a alguém, cumpriria às suas ordens, etc. Ela aprovou muito esta minha maneira de discorrer; e eu lhe tinha falado assim para evitar de lhe dar ideia de que queria intrigar de propósito às escondidas dos Ministros, intenção que em mim não existia. Então continuei: Que Sua Majestade me havia dito, no primeiro dia que lhe falei depois da minha chegada, quando eu lhe pedira de me ouvir, que podia vir falar-lhe «qualquer dos dias seguintes»; mas que, havendo esperado até hoje, não tinha recebido aviso de Sua Majestade para vir falar-lhe particularmente, como era preciso; e que, assim, recorria a ela, para que, pelo favor que Sua Majestade lhe fazia, ela me fizesse o de perguntar ao mesmo Senhor quando me podia ouvir e de me fazer saber as suas intenções a este respeito. Ela, achando que eu fazia muito bem em assim proceder, prometeu de o fazer assim e que me daria parte do dia e hora em que Sua Majestade determinasse falar-me, por Manuel Correia. Ficando assim muito contente, vim depois visitar os Condes de Cartaxo, de Camarido e de Sintra 26, só por cumprimento. O Marquês de Belluno, que eu tinha ficado com Cruz Maior de esperar, veio a Lisboa, e, não me achando em casa, partiu outra vez para Sintra, apesar de eu deixar um bilhete para ele, em que lhe dizia que amanhã o ia procurar, pensando que não vinha a Lisboa só por uma tarde.

27 – a) Fui fazer o meu cumprimento ao Conde de Basto, por meu pai mo recomendar; porém, chegando à porta dele, apareceu-me um bolieiro, que me falou com um modo tão rude e malcriado, que eu lhe disse de muito mau modo também: «Olhe que eu não quero tirar o tempo ao Sr. Conde; não tenho negócio nenhum com ele, e, dependência, também nenhuma tenho, nem dele, nem de ninguém». Acabando de lhe dizer isto, dei-lhe dois bilhetes e mandei andar para casa. Depois de jantar, fui ver se encontrava Belluno em casa; mas, sabendo que tinha partido para Sintra, vim visitar o Patriarca, com quem estive boas duas horas e meia, falando nas matérias do tempo; e lhe disse, pouco mais ou menos como ao Duque, quais haviam de ser os resultados da cegueira com que iam correndo, o governo e EI-Rei, ao mais evidente precipício. Sua Eminência foi de acordo comigo em quase tudo e discorre muito e muito bem. Contou-me, a propósito do Conde de Basto; que, achando-se no Paço esperando que EI-Rei falasse, se achou sentado junto do dito Conde; e, vindo a falar do trabalho que este devia ter, lhe dissera: «V. Ex.ª deve ter um trabalho enorme; porquanto, lembrando-me eu que, quando tive uma pasta, ela me tirava todo o tempo e não podia dar vencimento ao trabalho dela, que fará V. Ex.ª com duas! » Ao que o Conde, com a sua fanfarronice e ignorância ordinária, respondera: «Não há dúvida que dão seu trabalho; porém, eu posso bem com ele; porque, o que é dos negócios do reino, são coisas de tarifa, que me não custam nada; e quanto à pasta da marinha, também não acho dificuldade, porque eu sei aquilo!!!» Isto prova optimamente o estado em que está o governo actualmente, vendo-se que um imbecil desta natureza assim fala sobre coisas que nada entende! Vim ver o meu amigo Arcebispo de Lacedemónia 27, homem de juízo e de conselho. Falámos sobre muitas matérias, mas as principais foram: 1.º, os seus actuais trabalhos literários, de que me mostrou parte, e consistiam em uma investigação das origens gregas da nossa língua, trabalho útil, bem feito e que ele já leva bastante adiantado; e 2.º o que conviria fazer para pôr as coisas do governo em alguma ordem e como se poderia arranjar um ministério que valesse alguma coisa. Depois de discorrermos por todos os homens que podiam ter alguma serventia para as diversas repartições, tirámos por consequência que havia, para ministro da marinha, só um homem, Quintela, e para a fazenda; Trigoso ou o Bispo de Viseu 28, porque só qualquer destes últimos o Arcebispo, hoje, considerava como capazes de fazer executar a lei com a necessária rigidez, nas circunstâncias actuais da fazenda; porém, ao mesmo tempo, não deitámos de considerar as objecções que havia contra qualquer dos dois, que tornavam assim quase impossível o pô-los à testa da repartição, ou fazê-los entrar no ministério, etc. Depois de conversarmos por perto de quatro horas, o resultado final e bem triste que eu tirei é que estamos numa quase irremediável pobreza de homens, a mais deplorável de todas; e, por conseguinte, numa tristíssima posição para o presente e nada agradável nas perspectivas do futuro!

28 – a) Escrevi de manhã neste Diário. De tarde, fui visitar o Capitão Bull, do paquete Duque de Malborough, e lhe fiz presente de dois presuntos de Melgaço, que o homem agradeceu muito, e me pediu o nome de meu pai e sua morada, para lhe fazer presente, quando voltasse a Lisboa, dalguma manteiga fresca, etc.

29 – a) Chegou o paquete. Toquei e li. Escrevi no Diário. Falei bastante com o Visconde de Santarém. Passei a noite em casa dos Figueiredos.

30 – a) Paquete. Escrevi ao Visconde de Asseca, ao Lemos, a Pombeiro, a Sampaio, ao Reis, dizendo a todos o quanto isto por cá está mau, as dificuldades que há de falar a El-Rei e que muito desejava ver-me lá. Na carta ao Visconde de Asseca, disse-lhe que via isto em termos que não podia acabar, pois se lhe não dava remédio e se não queria ouvir quem lho queria fazer dar, senão por uma intervenção forçada, fazendo-se protocolos, como se fizeram para a Bélgica, e impondo-nos finalmente a lei que quisessem.

Referi-lhe o que eu profetizava haviam de ser os pontos principais das exigências da mesma intervenção, pouco mais ou menos como o tinha dito ao Duque no dia 25. Fui passar a noite a casa de Agostinho Luís. Aqui se passou o que prova quanto está dificultoso o governar bem Portugal, quando os maiores amigos de El-Rei discorrem tão mal e quando, por falta de inteligência, fazem verdadeiramente grandes males, aprovando medidas e procedimentos ruinosos, quando, de certo, só desejam o bem de El-Rei e da sua causa.

Intentando eu, pela influência que supunha ter nesta família, dar-lhe ideias concretas a respeito do modo por que era preciso que o partido realista e o governo se conduzissem, para nos não perdermos por nós mesmos e darmos assim o triunfo ao partido contrário, comecei a expor-lhe o mau efeito que faziam os excessos e, ao mesmo tempo, o quanto era preciso tivéssemos contemplação à maior força de certas nações, como a França e Inglaterra, para lhe não darmos pretextos de agressão e de nos suscitarem maiores embaraços, etc. A isto, quase não respondiam outra coisa mais que com o estribilho: «Mas que direito tem os franceses e os ingleses a meterem-se connosco e a intervir com os nossos negócios e modo de governar-nos?» A estas coisas, respondi eu com outra pergunta, e foi: «Um ladrão que nos encontra em uma charneca e nos pede a bolsa ou a vida, tem por ventura algum direito a uma tal petição?» E, apesar disso, se lhe não damos dinheiro, mata-nos; e por isso, para obrarmos prudentemente e escolhermos do mal o menos, damos-lhe a bolsa, para conservar a vida. Neste caso estamos, respectivamente à França e Inglaterra. Porque elas tem a força e nós não, manda a prudência que façamos por lhes não dar pretextos para abusarem da sua força contra nós; porque esta fará com que não dêem outra razão de seus procedimentos contra nós, mais que a do lobo ao cordeiro, e nós, não tendo força para sustentar a nossa justiça, não teremos senão calar-nos». Daqui, passeia mostrar a necessidade de providências enérgicas da parte do governo, para pôr dentro do reino as coisas em ordem, de maneira que aquele corpo apresente a aparência dalguma regularidade e robustez, dando assim garantias de saúde e de vida, sem o que, persuadindo-se os estrangeiros que ele por si se vai definhando e que não há senão esperar um pouco para o ver morrer por si mesmo de lazeira, será isso o maior obstáculo ao reconhecimento de EI-Rei e ao nosso triunfo, etc. No fim da discussão, em que sustentei esta doutrina, acabei com o resultado que eu previa, a não se seguir o meu conselho, e era o perder-se a causa de El-Rei, da nação e de nós todos, os realistas, e virem para aí o Marquês de Palmela, Silva Carvalho, etc., com toda a canalha da sua facção, insultar a gente de bem e pisar-nos aos pés. Não tive razão para pensar que, no meu sermão, apesar da clareza da matéria, fizesse muito fruto.

31 – a) Fui ver o Visconde de Santarém e conversámos largamente sobre muitas coisas; esteve também o oficial do gabinete, Castelo Branco, e a Viscondessa; com estes, a conversação foi, em grande parte, sobre costumes e modo de viver em Inglaterra. O Visconde foi-me mostrar a sua excelente e rica livraria, que contêm excelentes colecções de livros clássicos portugueses, de manuscritos e de autógrafos preciosos, assim como muitas outras curiosidades e as obras magistrais em história, diplomacia e literatura. Tem também um sofrível aparelho para um pequeno gabinete de física. Fui passar a noite com D. Maria Lúcia.


Notas:

1. A Musa Quotidiana, era uma espécie de diário em poesia. A obra nunca foi publicada.

2. Jornal satírico inglês, de Domingo, criado em 1820. Dirigido por Theodore Hook (1788-1841), opunha-se violentamente ao partido Whig (futuro partido liberal, o partido da grande aristocracia britânica). De 1830 a 1834, o primeiro ministro britânico foi o Conde de Grey (1764-1845), mais conhecido por ter dado nome ao chá de bergamota (Earl Grey) do que por ter dirigido este governo do partido Whig. Este governo, claramente liberal, realizou a primeira reforma do sistema eleitoral britânico, tornando as eleições parlamentares britânicas mais participadas e mais representativas.

3. Famoso hotel londrino, dirigido pelo Chefe francês Jacquiers, que tinha sido cozinheiro do rei Luís XVIII de França. Como dizia o autor de um Guia de Londres de 1850, era o local utilizado pelas pessoas que queriam receber os seus amigos ao melhor estilo, e que não se tinham de preocupar com a despesa. Era onde estava hospedado D. Pedro.

4. D. Pedro I foi obrigado a abdicar da coroa imperial em favor do seu filho, D. Pedro II, em 7 de Abril de 1831, devido fundamentalmente ao receio da élite governativa do novo país de que quereria reunir novamente, na sua pessoa, as coroas de Portugal e do Brasil. Abandonou o Rio de Janeiro em 13 de Abril tendo chegado a Londres em 26 de Junho. A seguir, foi para França tendo desembarcado em Cherburgo em 12 de Julho.

5. Mulher do «Conde» Alexandre Mortara que, tendo vindo de França, restabeleceu em 1831 o Priorado inglês da Ordem de Malta. Saiu de Inglaterra em 1837. Parece não ter sido mais do que um mero aventureiro.

6. Élisabeth, ou les Exilés de Sibérie, de Marie Sophie Ristaud Cottin (1770-1807), fora publicado em Londres em 1806, tendo tido uma nova edição em 1831 - Elizabeth; or, the Exiles of Siberia, etc. [Translated from the French] -, publicada pela Longman. Marie Cottin, conhecida também por Sophie Cottin, escritora francesa nascida em Paris escreveu um grande número de romances sentimentais, sendo o mais popular de todos o Elizabeth. A história fala de Isabel, uma jovem de dezassete anos que se dirige a pé (por volta de 1800-1801) da Sibéria para Moscovo com intenção de pedir ao Czar o perdão para o seu pai. Mesmo abusando das descrições de amor filial e de piedade religiosa, a história é, segundo os críticos, comovente e atractiva.

7. Em cifra as palavras «um pequeno bilhete, pedindo me desse novos suas» (nota do editor)  

8. A Lyra erotica tinha sido publicada em 1821, pela Imprensa da Universidade de Coimbra.

9. Em cifra as palavras «desposar Catarina Sherson. (nota do editor)

10. Em cifra as palavras «Catarina Sherson». (nota do editor)

11. Em cifra as palavras «um pequeno bilhete, em resposta». (nota do editor)

12. Francisco Zea Bermúdez y Buzo (1779-1850), diplomata espanhol nascido em Málaga, foi embaixador de Espanha em Londres de 1823 a 1824. Secretário de estado e do despacho de do rei de Espanha Fernando VII em 1824 e 1825, foi de novo embaixador em Londres entre 1829 e 1832. Encarregado de formar governo em Outubro de  1832 pelo rei, tendo organizado um governo moderado para tentar a reconciliação entre liberais e realistas, com intenção de defender os direitos dinásticos da filha, a futura  Isabel II, e combater o carlismo. Deixou o governo em 1834, por não ter conseguido ganhar o apoio dos liberais moderados, não tendo também conseguido evitar a Primeira Guerra Civil Carlista.

13. Narciso Heredia y Begines de Los Rios (1775-1847), nasceu em Sevilha. Ocupou cargos políticos no reinado de Fernando VII, mas acabou por ser desterrado entre 1819 e 1824. Embaixador em Paris e Londres foi ministro do fomento no governo de Zea Bermudez. Presidio ao governo de Dezembro de 1837 a Setembro de 1838. 

14. Em cifra as palavras «com outro bilhete».  (nota do editor)

15. Em cifra o nome abreviado «Cat.». (nota do editor)

16. Em cifra as palavras em francês. (nota do editor)  

17. O Sal de Epson ou Epsom é um laxativo de sulfato de magnésio, servindo também no tratamento de nódoas negras, assim como de adubo para plantas.

18. The History of Rasselas, Prince of Abissinia, a única obra de ficção em prosa com alguma extensão, de Samuel Johnson foi publicado em 1759. Conta a história de Rasselas, um Príncipe da Abissínia, que deixa o Vale Feliz onde nasceu com o seu mentor, Imlac, a sua irmã, Nekayah, e a criada desta, Pekuah. Os quatro viajam pelo Egipto à procura do mais feliz dos modos de vida, mas nunca o encontram.

19. A entrada da frota francesa no Tejo deu-se em 11 de Julho de 1831, tendo sido apresados 9 navios de guerra portugueses. Esta acção serviu para exigir a libertação de súbditos franceses presos em Lisboa acusados de liberalismo, e que não tinham sido libertados como exigia uma nota do novo governo francês saído da Revolução de 1830, entregue anteriormente. Devido à recusa continuada do governo de D. Miguel, o almirante francês Roussin, ameaçou bombardear a cidade no dia 14 de Julho. Sob essa ameaça o governo de Lisboa acatou as exigências francesas. Os navios levados para França serviram depois as forças liberais.

20. O comerciante inglês lembrava outra humilhação imposta ao governo de D. Miguel, quando em Abril anterior o Reino Unido tinha exigido a entrega dos navios britânicos apresados pela frota miguelista nos Açores, exigência que foi prontamente cumprida.

21. O Forte da Areia fazia parte do complexo de fortes e baterias, que junto à Torre de Belém defendiam a margem direita da embocadura do Tejo. Mas o autor parece estar a referir-se ao conjunto de fortificações que oficialmente eram conhecidas por Forte do Bom Sucesso. Devido à queda, em 1830, do ripado que fazia a divisão entre paióis o forte encontrava-se em obras em 1831. 

22. Manuel Correia de Sá e Benevides (1802-1877), filho do segundo casamento do 5.º visconde de Asseca, e por isso meio-irmão do titular naquele momento, era alferes de infantaria e ajudante de campo de D. Miguel.

23. D. José António de Melo (1799-?), filho mais novo do 2.º marquês de Sabugosa e por isso irmão do 9.º conde de São Lourenço, tinha sido foi feito conde de Cartaxo por decreto de 29 de Setembro de 1830.

24. Ama e Aia de D. Miguel. A importância dada a personagens populares é uma das novidades da corte de D. Miguel.

25. Henry John Temple, 3.º visconde Palmerston (1784-1865), membro do partido liberal britânico (Whig), ministro dos Negócios Estrangeiros de 1830 a 1834, e por mais duas vezes, de 1835 a 1841 e de 1846 a 1851. Será ministro do interior de 1852 a 1855, e primeiro ministro de 1855 a 1858 e de 1859 a 1865. Irá ter uma importante acção em Portugal durante a guerra civil da Patuleia de 1846-47, tentando que a Grã-Bretanha não interviesse na disputa e também que não houvesse intervenção franco-espanhola.

26. António da Cunha Grã Ataíde e Melo (1784-1861) era filho do 3.º conde de Povolide, par do reino em 1826, estribeiro-mor da rainha D. Carlota Joaquina, tinha sido feito conde de Sintra em 16 de Julho de 1823.

27. D. António José Ferreira de Sousa (?-1833), doutor em Leis pela Universidade de Coimbra, lente substituto da sua faculdade, era freire professo de Santiago. Em 1821 fora eleito deputado para as Constituintes. Com a morte de D. João VI, sendo vigário-geral do Patriarcado de Lisboa desde 1824 e arcebispo in partibus de Tessalónica, acompanhou o duque de Lafões ao Brasil a anunciar a D. Pedro IV a sua subida ao trono. Participou nas cortes convocadas por D. Miguel, que o reconheceram como rei de Portugal. Morreu vítima de uma epidemia de cólera. A única obra que publicou foi uma edição da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.

28. D. Francisco Alexandre Lobo (1763-1844), doutor em Teologia, foi nomeado bispo de Viseu em 1819, sendo sagrado em Julho de 1820. Eleito para as Constituintes de 1821 não aceitou o mandato. Mais tarde, nomeado par do reino, de acordo com a Carta Constitucional, tomou posse do lugar em Outubro de 1826. Em Dezembro foi nomeado secretário de estado do Reino, cargo que ocupou durante 6 meses. No ano seguinte, em 1828, participou activamente na aclamação de D. Miguel como rei absoluto, tendo sido nomeado conselheiro de estado pelo novo rei. Não foi incluído na amnistia decretada após a Convenção de Évora Monte, que pôs termo à guerra civil, sendo obrigado a sair do país. Exilou-se em Paris, tendo aí vivido até 1844. Regressou a Portugal em Julho desse ano, acabando por morrer em Setembro.

 

Fontes:

Ribeiro Saraiva,
Diário, 1831 – 1888, Tomo I (1831-1835),
Lisboa, Imprensa Nacional, 1915, págs. 36 – 67.

A ver também:

A ler:

  • João Carlos Alvim (pref.), A Revolta Miguelista contra o Cabralismo. Cartas de António Ribeiro Saraiva e Cândido Figueiredo e Lima, 1844-1851, Lisboa, Assírio e Alvim («Arquivos, 6»), 1985

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