D. João Peculiar
D. João Peculiar, estátua de Raul Xavier

D. João Peculiar (1100? - Braga, 3 de Dezembro de 1175)

 


 Ver o currículo do Autor João Silva de Sousa  

 

“A grande autoridade que alcançou,

punha-a sempre ao serviço da sua pátria

e do seu príncipe”.

(Carl Erdmann)

 1. Primeiros Passos

Prelado do século XII, natural, muito provavelmente, da região de Coimbra, onde lhe conhecemos a existência de irmãos em 1152, ou talvez de Lafões, filho de Cristóvão João e de D. Maria Rabaldis, senhora da vila de Murtede, irmão de Cristóvão João e de Justa, D. João Peculiar passou a juventude em França, onde estudou na Universidade de Paris e onde deve ter permanecido até 1126.

A sua presença na corte de D. Afonso Henriques [1109-1185] é demonstrativa de que começara a exercer o papel de homem do seu conselho, de 1131 em diante, por tudo quanto sabemos das funções que desempenhou. Mas as responsabilidades episcopais e políticas não o faziam esquecer a sua antiga vinculação aos eremitas, a todos os religiosos que, devotos a Deus, à Igreja e ao Santo Padre, enxameavam pelo território portucalense, muitos deles em péssimas condições de subsistência, em lugares do Interior e demasiado isolados, solicitando ao Infante uma maior atenção sobre os mesmos.

Na verdade, um dos aspectos da nova organização religiosa manifesta-se na reordenação dos espaços – a geografia humana e a monumental religiosa: a construção dos seus templos, o cultivo das granjas, a manufactura de objectos. Ainda a Escola, a Livraria... os alunos que eram ensinados por padres para se tornarem padres.

A divisão eclesiástica e a sua respectiva e inerente regulamentação (a existência de Estatutos próprios desde 1139) tiveram sempre uma enorme influência, sobretudo durante a “Reconquista”, em que constituíam os únicos quadros que davam vida à antiga ordem romano-gótica. Consequentemente, para a independência portuguesa foi importantíssimo que as sés do novo “Reino” obedecessem a um metropolita ou primaz ligado ao soberano português. Daí a luta que se travou nos tempos de D. Henrique (m. Astorga, 1112) e de seu filho para que as dioceses do Porto e Coimbra, como as de Lamego e Viseu, fossem sufragâneas de Braga, sendo que a primazia desta era um elemento fundamental na formação do novo “Estado”.

 

 

Fachada do Mosteiro
de São Cristóvão

 

 Em Portugal, D. João Peculiar foi autorizado a mandar edificar um oratório na vila de Lafões (1126), onde se recolheu com alguns sacerdotes, na prática de exercícios religiosos, e, logo a seguir, fora experimentar os ares de São João de Tarouca, de início, um eremitério, tendo a primeira pedra sido lançada em 1152, após a vitória de Trancoso, e cujas origens os antigos cronistas envolveram em lendas, contradições e anacronismos.

Os seus professos, fosse qual fosse a regra a que aderissem, habitaram primeiro o mosteiro de S. João Baptista das Aveleiras (freguesia de Queiriz – séc. XII -, actual concelho de Fornos de Algodres), onde se encontravam quando D. Afonso Henriques lhes fez uma doação, dois anos após a batalha de S. Mamede.

Voltemos a recordar São Cristóvão de Lafões, situado na sua diocese, pois foi, decerto, por sugestão dos pais, que ele próprio – D. João Peculiar – solicitou a D. Afonso Henriques a concessão de uma carta de couto em seu favor, em Outubro de 1137. Pouco tempo depois, intervinha já na vida interna da mesma comunidade, escolhendo o sucessor do seu antigo abade, D. João Cirita [? -1164], e fazendo-lhe a doação de um outro eremitério. O Convento foi erigido num morro sobre a ribeira da Landeira, perto da Serra da Gralheira, no actual concelho de São Pedro do Sul, cujo povoamento é anterior ao século XII.   

A fundação deste convento deveu-se aos frades da regra dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, que aderiram, logo em seguida, à Ordem de São Bernardo, S. Bento [Beneditinos], juntando os eremitas pelas encostas do Vouga, onde viviam naturalmente isolados.

Alguns historiadores são da opinião de que o verdadeiro fundador do mosteiro foi João Peculiar e não João Cirita, mas que, em virtude de João Peculiar ter sido chamado a desempenhar outras funções importantes, ficou o mosteiro, logo no início, sob as ordens de Cirita, e daí o seu nome estar associado à sua fundação.

Em 1163, o convento adere à ordem dos monges cistercienses, como aconteceu a quase todos os mosteiros beneditinos.

Em 1140, de Aveleiras para S. João de Tarouca haviam passado já para uma melhor situação: um edifício mais amplo – embora ainda um eremitério -, que, naquela freguesia de Tarouca, vieram a receber, nesse ano, ampliado, muito posteriormente, por meio de uma bula, através da qual Alexandre III os tomava e ao mosteiro sob sua protecção, isentando-os da solvência da dízima dos produtos das terras que eles, por si mesmos, cultivassem e dos gados que criassem. Ficavam dispensados do pagamento de entradas e saídas (as costumagens), em caso de transumância. Excepto da colheita régia e da visitação do Arcebispo e do Bispo, ficavam isentos do cumprimento de direitos reais. Não podiam cunhar moeda. Estas imunidades foram extensivas a S. Salvador de Grijó (actual concelho de Vila Nova de Gaia e freguesia de Grijó) e a Refoios do Lima.

Ao nível da vida religiosa, a grande novidade em Portugal no século XII foi o acolhimento dos Cistercienses por 1130. S. Cristóvão de Lafões teve, quanto a nós, um papel pioneiro – um projecto marcado por aquele que viria a ser arcebispo de Braga, João Peculiar – o de ter desenvolvido a irradiação cisterciense em Portugal, pese embora o que se tem afirmado comummente em relação a S. João de Tarouca. Desta feita, o modelo ético, comportamental, de estudos religiosos (naturalmente) e legislativo seguido pelos Cistercienses era proveniente de um modelo internacional implementado também em Portugal, embora o Capítulo Geral de uma canónica regrante assumisse, obviamente e por imperativo geográfico e de acomodação, um rumo próprio. Mas a base seria sempre a mesma.    

Adaptado de Tesouros Artísticos de Portugal, Selecções do Reader's Digest

As termas de S. Pedro do Sul e o Mosteiro de S. Cristóvão de Lafões

Não será de pôr de parte ainda a figura de Peculiar, um dos seus fundadores, como é sabido, na relevante influência que pode ter tido, no importante papel da canónica crúzia.

No regresso de França, por 1126, fundou ou reorganizou o referido Mosteiro em Lafões que, mais tarde, confiou ao referido abade. Pelo seu desiderato e doutrina, “statuit monasterium apud Sanctum Christoforum”, de princípios regulares um tanto confusos, mas que evoluirão para as normas de São Bento, vindo, depois, a filiar-se na Ordem de Cister. Tensões houve-as sempre, embora em Portugal, de cada vez maior amplitude geográfica não impediam a Santa Sé de conservar as garantias e imunidades que fossem outorgadas a mosteiros isentos mas que eram – eles mesmos – fidelizados ao reforço do poder dos Papas, junto da autoridade diocesana

Pelo que ficou dito, acrescente-se que, à medida que íamos avançando pelo século XII, mais esta circunstância se impunha, a fim de estabelecer o Poder da Santa Sé acima da soberania imposta por Frederico I, Barba Ruiva, imperador do Sacro-Império romano-germânico. Mas a espiritualidade de Roma aumentava a secância e alargava os seus poderes comparativamente aos do Imperador de uma pretensa União Europeia na época que não podia fazer outra coisa que não fosse aceitar o aumento da manus papal. Esta circunstância de os soberanos adoptarem, de preferência, a supremacia espiritual sobre a temporal prova-se pelo princípio que tão regularmente fora invocado junto dos delegados imperiais: “No meu Reino quem é o imperador é o Rei”, sabendo nós, no entanto, que, igualmente a fim de fixar o seu poder, o rei de Portugal impunha limitações à Igreja e, por outro lado, precisando do seu auxílio e saber, ia distraindo do fisco avultados e numerosos meios para ter a clerezia nas mãos.

Convento de S. João de Tarouca

O Mosteiro de S. Salvador de Grijó

O grande auxiliar de sempre de D. Afonso Henriques, fora um religioso. Além de D. Teotónio [1080-1162] e, mesmo provavelmente, suplantando este, foi D. João Peculiar. O papel de conselheiro do Príncipe, residente no Paço, auferindo de moradia pela sua permanente acção na Cúria, para a resolução de problemas concretos e para a orientação da política régia, pelo menos em questões de maior importância, pertenceu-lhe até morrer.  

O infante encontrou-se com ele, pela primeira vez, muito provavelmente, em 1131, quando preparava, com Teotónio, a fundação do Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, cidade, em cuja catedral foi mestre-escola, sendo aí arcediago D. Telo [1076-1136], o qual acompanhou D. João Peculiar a Roma, a fim de impetrar de Inocêncio II que o Instituto dos Cónegos Regulares de Santo Agostinho fosse restituído à sua primeira observância. Tornaram-no tributário da Santa Sé, obtendo de Inocêncio II [1130-1143] a bula Desiderium quod, a 24 de Maio de 1135, a conceder-lhe a protecção papal e a isenção episcopal. Conseguiram a sua pretensão com muitos privilégios e indultos para o Convento de Santa Cruz de Coimbra, e regressaram a Portugal em Junho de 1135, onde o futuro rei residia. Deve, desde logo, ter apreciado a firmeza das convicções de D. João, o entusiasmo com que se empenhava numa fundação religiosa sem precedentes em Portugal, e a cultura que havia adquirido durante a sua estadia no seio dos intelectuais francos e agora já diplomado pela Universidade de Paris, antes de passar a mestre-escola da Sé de Coimbra (c. de 1133). Sabe-se que foi, em 1138, transferido para Braga, sucedendo a D. Paio Mendes [1118-1137]. O prelado fundou um hospital para pobres, dotando-o com herdades e quintãs, e outros bens imóveis, entregando o hospital à administração dos Templários.  

As bulas, como se sabe, traduzem a própria evolução interna da Santa Sé e da vontade do Papa e dos seus diáconos mais directos, as suas noções de primazia e de imperium pontifícios, no agitado decurso de todo o século XII.

A fundação do referido mosteiro – como o refere Avelino de Jesus da Costa – ficou a dever-se à conjugação dos esforços de três ilustres personagens: D. Telo, arcediago da Sé de Coimbra, D. João Peculiar, mestre-escola da Sé de Coimbra e a D. Afonso Henriques.

Os vizinhos e moradores de Braga e das imediações, logo após a morte do fundador, usurparam bens do hospital. D. João Peculiar, assim que tomou posse da Arquidiocese de Braga, com o seu cabido, confirmou a doação do seu predecessor e, a pedido do príncipe D. Afonso Henriques, ordenou que fosse restituído ao hospital tudo quanto lhe havia sido usurpado. Trabalhou, incansavelmente, pelo engrandecimento e independência da diocese de poderes estranhos, e reorganizou o Cabido.

Nos representantes mais importantes da administração das novas catedrais, estabeleceram-se funções várias. De ordinário, eram os cónegos quem as desempenhavam. Presidido pelo deão, em rigor o mais antigo, o decanus, tinha na sua organização a administração interna e a justiça entregues ao archidiaconus. A fim de exercer uma superintendência nas paróquias rurais, havia os arciprestes, de archipresbiter. Os cónegos tinham a obrigação de orar e cantar em coro as horas do ofício divino, cuja direcção se achava a cargo do chantre (o cantor). A Catedral tinha a Escola Capitular para recrutamento e formação do clero, sob a direcção do cónego mestre-escola (magister scholarum). E as rendas da mesa capitular, ou seja, os rendimentos próprios do cabido, assim como a conservação do seu património, estavam confiadas ao tesoureiro.

É de ter em boa nota o que, então, D. João Peculiar ouvira dizer dos antipapas João XVI [997-998] e Gregório VI [1012/1058 ou 1059] que não conhecera, naturalmente, mas contemporâneos dos Papas romanos Gregório V [996-999] e Bento VII [974-983]. Estas lutas espirituais permitiram-lhe raros conhecimentos e sabedoria, raciocinar, optar e o poder de saber organizar, já para não falar daqueles com quem travara conhecimento directo, em Roma: de Calixto II a Alexandre III [1119-1175].

Podemos admitir, pois, pelo que ficou dito, que esta última faceta tivesse tido para D. Afonso Henriques um valor muito significativo. Na verdade, não obstante apenas ter conhecido o Cônsul seu pai de ouvir falar dele, dado que falecera tinha o Príncipe três anos, não podia esquecer a sua condição de filho de um estrangeiro, descendente de Roberto I, rei de França [865-923], trazendo consigo para a Hispânia ideias inovadoras, tendo-se empenhado na difusão de instituições religiosas e seculares do seu País de origem, e posto toda a sua força anímica ao serviço de uma grande ambição pessoal reformadora e de poder.

Digamos que eram já dois. Um tinha falecido, mas permanecia no pensamento do Aio e, apenas indirectamente, em D. João Peculiar. Também podemos imaginar que aquele lhe falasse, então, e com respeito e admiração, acerca do Conde D. Henrique [1066-1112] e do seu avô materno, Afonso VI, de Leão e Castela [1039-1109], e de quem este era filho: Fernando I, o Magno [1016-1065] ao qual havia ficado a dever-se a conquista definitiva de Tarouca, Lamego e Viseu até aos castelos da linha que conduzia a Seia, em 1147, e Coimbra, em 1164, aos quais devia grande parte da sua inesquecível glória no pacto de amizade que estabeleceram com os monges de Cluny. No plano cristão, Afonso VI, rei de Leão, fomentou a segurança do caminho de Santiago, impulsionou a introdução da reforma cluniacense em mosteiros do seu Reino e abriu as portas, a “mando” de sua mulher, D. Constança [1046-1093], à Ordem de Cister, na Hispânia, estabelecendo-a em Sahagún, escolhendo Bernard de Cluny, um cisterciense francês, como o primeiro arcebispo de Toledo, depois da “reconquista” desta, em 25 de Maio de 1085 [1086-1124], em que a pressão de Cluny foi imensamente forte, tornando-se irredutível no aconselhamento a Afonso VI. O Cônsul D. Henrique da Borgonha e tenente de Afonso VI em Portugale faz uma doação a Albert de Thibaud, a seus irmãos e a todos os franceses que não morassem na vila de Guimarães, no campo junto ao Paço do referido centro urbano. O facto levaria, mais tarde, D. Afonso Henriques, a julgar positivamente os Franceses e a sua utilidade no Condado, e a apreciar os critérios com que João Peculiar opinava sobre o que, então, se passava no Reino e no seio da Igreja, nas relações do temporal com o espiritual, e a sua intervenção activa, nas mais dinâmicas correntes religiosas da época. 

Os claustros do Mosteiro de Santa Maria de Refoios do Lima na actualidade

A fachada do Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra na actualidade  

Afonso deve também ter acompanhado com atenção o relato da viagem que João Peculiar fez a França e à Itália, em 1135, aquando do Concílio de Pisa, de cujas resoluções, ele, de regresso, lhe terá contado, sem dúvida, como decorrera a assembleia e quais as acções do papa Inocêncio II. Falou-lhe acerca de uma das conquistas da reforma gregoriana, que tinha sido a capacidade de o clero escolher as suas próprias autoridades, sem interferência dos reis e senhores feudais. Mas esta independência teórica traduzia-se, na prática, sobretudo desde 1123, pela eleição dos bispos em assembleias constituídas pelo clero da diocese (sobretudo os cónegos da catedral), embora na presença do rei e dos nobres. E falou-lhe, por certo, ainda numa hipótese que avançara já em Roma no sentido de ser reconhecida a independência a Portugal. Não era difícil explicar as circunstâncias: Afonso VII [1105-1157] acabara por herdar o trono da Galiza, em 1111, de Leão em 1126, de Toledo e Castela, em 1127 e começara a intitular-se, no ano do Concílio de Pisa, de Imperator Hispaniae, título que devia irritar seu primo, senhor do Condado Portucalense e que também nós não entendemos porquê. Afinal, onde estava o Império? Na união de Leão com Castela, num espaço territorial contínuo e de dimensões que em nada ajudavam a aceitá-lo? Nem os reis godos de tal se lembraram e os motivos que os autores aduzem eram, afinal, os mesmos.

No entanto, o título de Imperador era, apesar de tudo, uma via que poderia mais facilmente fazer chegar a D. Afonso Henriques o de rei, título esse que enobrecia o nosso Príncipe e seu primo, com reis seus vassalos. E um rei sem Reino, era situação que o nosso Infante não aceitaria com facilidade. Também para D. João Peculiar que acompanhava de perto Afonso de Portugale, veria no título do Castelhano, uma maneira de fazer entender a Santa Sé com uma menor necessidade de argumentos para a obtenção do título de rei e da categoria de Reino a Afonso e a Portugal.

Não sendo diplomata de medos, quis, no entanto, atacar a questão, junto do Papa, para evitar acentuadas subalternidades do Príncipe de Portugal em relação a seu primo Afonso VII. Afinal eram netos e bisnetos de reis comuns e este era o mais válido dos argumentos, além do propósito de ambos residir na ‘reconquista’ territorial e na consequente luta ao infiel.

 

*

 

Tendo sido designado cónego e mestre-escola do cabido de Coimbra, em 1131, juntamente com o arcediago D. Telo [1076-1136], de quem era conselheiro, fundou o Mosteiro de Santa Cruz da mesma cidade, o qual adoptou a regra dos Cónegos de Santo Agostinho.

Os esforços seriam e foram sempre recíprocos: Afonso fazia o que João Peculiar aconselhava, e este contribuía vivamente para a satisfação do orgulho e mando do seu “rei”.

Ora, apoiados por D. Afonso Henriques, D. Telo e D. João Peculiar tinham-se deslocado a Pisa, em 1135 - como referimos acima -, onde se encontrava Inocêncio II, levando, na “pasta” para despacho, além dos desideratos acima enunciados, também o pedido de protecção por parte da Santa Sé do citado mosteiro conimbricense, como tributário dela, e ainda a confirmação dos seus bens e a isenção da autoridade episcopal, o que lhes foi concedido por bula de 25 de Maio daquele ano.

Outro efectivo e importante auxiliar de D. Afonso Henriques, como já demos a conhecer, fora D. Teotónio. Teólogo e filósofo, prior da catedral de Viseu, era um homem honesto. Para ele, a verdade, a justiça, a dignidade… seriam a sua grande, porque indiscutível, prioridade. Humílimo, por duas vezes, rejeitou o título de bispo, mantendo-se apenas como Prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, embora nomeado bispo desta cidade pelo Papa Anastácio IV em 1153, cargo que recusou.

A importante função de conselheiro do rei, no “aparelho de Estado”, para a resolução de problemas concretos e orientação da política régia, pelo menos em questões de maior importância, deve ter pertencido, sobretudo, a D. João Peculiar, logo desde 1131, quando preparava, com D. Teotónio, a fundação de Santa Cruz. O Infante e Príncipe herdeiro da terra e da soberania de seu pai, apreciou, por certo, desde logo, a firmeza das suas convicções, o entusiasmo com que se empenhava na criação de uma instituição religiosa sem precedentes em Portugal, e a cultura que havia adquirido durante a sua permanência no Reino dos Francos. Podemos admitir que esta última faceta tenha atraído Afonso de uma maneira especial. Mais uma vez, o nosso Infante deveria ter presente a origem da Família do seu pai e a ligação de sua mãe a Afonso VI, protector endividado dos Cluniacenses e a sua tia-avó, D. Constança, que atendeu ao estabelecimento em Castela de monges Beneditinos cistercienses. Deste modo, voltamos a sublinhar parte dos motivos que levaram Afonso Henriques a admirar o futuro Bispo e a aceitar os critérios com que este memorável religioso julgava o que então se passava no Reino e na Igreja, e a sua intervenção activa, nas mais dinâmicas correntes religiosas da época. Religiosas, civis e, inclusivamente, militares, como veremos adiante.

É de ter em atenção que o Paço Real se achava em Coimbra e que já, desde muito cedo, a cidade, naturalmente sede de bispado, fora sempre, com Viseu, aquela a quem seus pais deram uma primordial atenção. D. Teresa e o Conde, seu marido, doaram à Sé de Coimbra o Mosteiro de Lorvão, em 1109, pouco antes de Afonso ter nascido, mais uma série de terras que para necessitarem de ser povoadas e trabalhadas foram engrossar o património da Sé e de particulares, como tivemos já ocasião de referir num outro nosso trabalho. Curiosamente, Lafões veria, desta forma, mais fortemente ligada a sua relação com Santa Cruz de Coimbra – com a Sé e com Coimbra, de um modo geral, a sede do Reino. Dos 275 documentos que se traduzem em cartas de doação das terras visienses àquela cidade e institutos religiosos, 42% foram entregues ao Mosteiro, ad populandum e ad plantadum, e correspondiam a terras em torno de S. Pedro do Sul, Lafões, Vouzela, Penacova, Santa Comba Dão, Lorvão e Tondela, entre outras: o velho cordão umbilical que nunca fora cortado entre S. Cristóvão de Lafões e Santa Cruz de Coimbra; do Mosteiro de Lorvão e Santa Cruz de Coimbra; da Catedral Visiense e Santa Cruz. E, por ora, D. João Peculiar, incumbia-se do Mosteiro crúzio conimbricense. Razões mais que suficientes para bem disporem um rei, e fazê-lo ter a maior consideração por quantos se encarregavam, então, daquela importante fundação.

Por influência de D. Afonso Henriques, foi D. João Peculiar nomeado bispo do Porto em 1136, sendo transferido para Braga, como arcebispo, no Outono de 1138. D. João desempenhou por dois anos as funções de bispo.

Enquanto bispo do Porto teve um papel preponderante nas Pazes de Tui, em 4 de Julho de 1137, estabelecidas entre os primos Afonso VII de Leão e Castela e D. Afonso Henriques, através do qual se encerraram, durante algum tempo, os conflitos que recuavam à batalha de Cerneja. O rebelde Infante português terá invadido a Galiza e conquistado a praça de Tui, junto ao rio Minho, aproveitando as pretensões de Afonso VII em relação ao reino de Navarra, com o qual estava em hostilidade aberta. Afonso Henriques terá tomado Tui com o apoio do rei de Navarra, numa iniciativa militar "à traição", em que conquistou alguns castelos na região tudense. Afonso VII, todavia, rapidamente recuperou Tui. D. Afonso Henriques, que nunca reconheceu o título de imperador e respectivos direitos a seu primo – o que não tinha, na realidade, razão de ser -, terá também, com esta iniciativa, marcado posição relativamente a essa sua recusa de vassalagem, que se estenderia ao seu projecto político de formação de um reino independente a partir do condado Portucalense. O bispo D. João e o ainda arcebispo – ao tempo D. Paio Mendes -, acompanharam D. Afonso de Portugal, e a entrevista deu-se com seu primo, coadjuvado, para o efeito pelos bispos de Segóvia, Tui e Ourense. Foram os cinco religiosos que trabalharam em prol da respectiva concórdia, que tomou lugar em 1137, mas de fraca valoração para Portugal.

Foi depois – como dissemos - eleito arcebispo de Braga, cargo que o obrigou a desenvolver intensos contactos com os poderes políticos portugueses e leoneses e com a cúria romana. Caso de especial significado foi o deste prelado, o qual ainda que sem ter sido cónego professo, apenas familiar e honorário, veio a atingir aquelas funções a par de uma fortíssima ascendência política que sempre exerceu junto do nosso futuro Rei.

Na defesa dos direitos da metrópole bracarense teve de sustentar longa e corajosa luta com os arcebispos de Compostela e Toledo, pelo facto de o primeiro lhe querer usurpar as dioceses sufragâneas e o de Toledo pretender sujeitá-lo à sua obediência. Promoveu ele mesmo, por autoridade pessoal suportada por Afonso Henriques, a passagem de um elevado número de acistérios das suas Dioceses à Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.

O facto de Peculiar residir em Braga não o impediu de frequentar a corte régia, e de aí continuar a insistir com o Príncipe na concretização dos seus objectivos, trazendo, assim, benesses às novas ordens religiosas, e colaborando com o rei na resolução dos problemas políticos a que teve de dar solução. Pela segunda vez, foi a Roma, para receber o pálio que Inocêncio II lhe entregou, e assistiu, por ordem do pontífice, ao segundo Concílio de Latrão que tomou lugar em 1139, tendo sido o primeiro prelado português a estar presente num concílio geral.

D. João Peculiar, por essa ocasião, contraiu uma estreita amizade com o Abade de Claraval, D. Bernardo, firmando-se, desde então, uma intensa correspondência epistolar entre os dois prelados. Cuidou da assistência dos que dela necessitavam nos eremitérios difundidos pelo “Reino” e no que se refere à cultura, abriu as portas dos mosteiros a quantos pretendiam estudar para padres.

Verificamos isto mesmo por exemplo, ao notar por si a confirmação de uma série de diplomas régios do ano de 1140, favorecendo outra comunidade eremítica, a de Vilarinho de Parada, concelho de Santo Tirso actual, de um mosteiro dúplice que passava a feminino, o de Rio Tinto, dos cistercienses de S. João de Tarouca, no concelho de Tarouca de hoje, do alargamento dos domínios da Sé Catedral de Coimbra e do mais importante mosteiro beneditino da arquidiocese de Braga, o de Tibães, em Mire, no actual concelho de Braga, sistemas copiados, por outros posteriores, como o de Alcobaça (1178).

Mais tarde, no Verão de 1143, acompanharia o cardeal Guido de Vico nas suas visitas a Coimbra e ao Porto, apoiando os acordos de D. Afonso Henriques com Afonso VII em Zamora (5 de Outubro de 1143) e a vassalagem ao papa nas mãos do mesmo cardeal. Nos anos seguintes, vemo-lo ainda – o que, aliás, fez até morrer - a desempenhar um papel central em todas as mais importantes decisões religiosas, políticas e iniciativas do rei. Foi o que aconteceu:

 

- Quando ele, em 1142, propôs a D. Afonso Henriques nomear como chanceler-mor Mestre Alberto, que o deve ter ajudado a gizar o cargo de rei, como fonte de autoridade e de legitimidade, cumpridor da justiça: rex eris si recte faceris, para que qualis rex, talis grex, pois quae recte fiunt, nunquam benefacta peribunto. Estas e outras máximas já antigas e pelo Príncipe esquecidas teriam de voltar a ser lembradas. Só um Escrivão da Puridade se atreveria a chamar a atenção do seu Rei e foi o que ambos fizeram João e Alberto, tal a ascendência que tinham sobre ele;

- Quando dirigiu ao papa Lúcio II a carta Claves regni coelorum, em Dezembro de 1143, como resultado da assembleia de Zamora;

- Quando empreendeu uma nova viagem a Roma para persuadir o Sumo Pontífice a reconhecer o título de rei já usado por Afonso Henriques, na Primavera de 1144;

- Quando, em nome do rei, pediu aos condes de Maurienne, Amadeu III e Matilde d’Albon, a mão de sua filha Mafalda, com quem o soberano veio a casar em 1146;

- Quando, anos depois, interveio no pedido de casamento de D. Mafalda, filha de D. Afonso Henriques, com o conde Raimundo de Barcelona, acompanhado que foi a Tui com a rainha sua mulher e suas filhas e recebendo-o, na presença de D. João Peculiar, arcebispo de Braga, D. Mendo, bispo de Lamego, D. Isidro, bispo de Tui, D. Pedro, conde das Astúrias, o conde D. Ramiro e D. Vasco, mais D. Gonçalo de Sousa, D. Pedro Pais, seu alferes-mor e outros muitos ricos-homens, cavaleiros e comitiva;

- Quando contactou o monge cisterciense Bernardo de Fontaine, abade de Claraval, para ele encarregar os cruzados flamengos da colaboração no cerco de Lisboa;

- Quando participou, pessoalmente, com o rei na conquista de Lisboa;

- Quando, de acordo com o rei, nomeou e sagrou os bispos de Viseu – D. Odório [1147-1166] -, de Lamego – D. Mendo [1147-1173] - e de Lisboa – Gilberto de Hastings [1147-1166], como pode ver-se em 1147, tendo seguido D. Afonso Henriques na tomada de Lisboa, e aí sagrado o citado bispo lisbonense, D. Gilberto – foi ele quem dividiu as rendas da catedral, que, então, eram comuns ao arcebispado e ao Cabido. Incumbiu desta operação os seus dois arcediagos - Mendo Ramires e Pedro Osório - que fizeram a divisão em três partes, servindo de modelo a Braga: duas para a mesa do arquiepiscopado e uma para a mesa capitular;

- Quando tomou parte nas cúrias de 1150 e de 1155, em Leão e Toledo, para discutir o envolvimento português numa projectada cruzada peninsular;

- Quando regressou a Roma em 1153, 1157 e 1163, a fim de esclarecer a recusa de se sujeitar ao arcebispo de Toledo e, finalmente, conseguir a plena independência eclesiástica;

- Quando participou nos acordos com o rei Fernando II de Leão [1137-1188] para o casamento com a infanta D. Urraca [1151-1188], em 1165;

- Quando ele mesmo, antecipando-se a D. Afonso Henriques, “simul et bracharense ecclesie clerus una cum regis portugalensis aldefonsi consensus”, fez doações em nome do “Rei”, como, por exemplo, em Agosto de 1145, confirmou uma doação do seu antecessor, em que fora feita mercê à ordem do Templo, de umas casas e acrescentou mais metade dos dízimos dos locais de compra e venda na mesma cidade de Braga, apondo o castigo da excomunhão a quantos fossem contra as suas determinações em causa…

 

Na Primavera de 1139, foi a Roma para receber o pálio e a confirmação que Inocêncio II lhe concedeu pela bula Bracharensem metropolim insignem, de 26 de Abril. Nesse ano, assistiu ainda ao Concílio geral de Latrão, iniciado a 3 de Abril. Aqui contraiu estreita amizade com o abade de Claraval, S. Bernardo, por quem ficou sempre muito afeiçoado, cremos que pela afinidade de ideias e intentos e ainda pelo bom acolhimento que os Cistercienses haviam encontrado em Portugal. Não foi mais do que uma Ordem resultante da antiga regra beneditina.

Escreveram-se por diante muitas cartas, algumas delas endereçadas pelo arcebispo ao santo abade.

Terminado aquele, ficou ainda em Roma para conseguir a confirmação papal dos principais empreendimentos eclesiais em que antes participara: a 26 de Abril, era-lhe passada uma bula de ratificação dos seus direitos metropolíticos (confirmando a bula anterior de Calisto II de 1121, obtida por Paio Mendes) e do senhorio temporal sobre a cidade de Braga; mencionava, expressamente, não só as dioceses sufragâneas da antiga província da Galécia (exceptuando Compostela), mas ainda as de Coimbra, Idanha, Lamego e Viseu, que haviam outrora pertencido à Lusitânia, apesar de os direitos de Mérida terem sido transferidos para Compostela. No dia seguinte, a chancelaria pontifícia entregava-lhe duas bulas de confirmação dos privilégios de Santa Cruz de Coimbra, e uma terceira pela qual o Papa tomava o mosteiro de Grijó sob sua protecção, o que vinha confirmar a isenção da jurisdição episcopal que o próprio D. João havia concedido ao mesmo mosteiro, enquanto bispo do Porto.

Se a vassalagem de D. Afonso Henriques à Santa Sé, consumada em Zamora, em 1143, não originou qualquer reparo da parte de Afonso VII, o mesmo não aconteceu com a sagração dos bispos de Lisboa, Viseu e Lamego, por D. João Peculiar, quatro anos depois. Reclamou junto da Santa Sé, mas depressa se aquietou, ou pelas manifestações de apreço que aí alcançou ou pelos problemas que Aragão e Navarra lhe levantavam.

O apoio do clero secular pode ser sintetizado numa só personagem: D. João peculiar sempre se revelou sdincero defensor acérrimo dos direitos da sua Sé, face às de Castela, e verdadeiro agente de Afonso Henriques na cúria romana, como o foi em cortes de seus homólogos europeus, nomeadamente, Castela, Navarra, Aragão, Catalunha, França, Inglaterra, Bolonha (Sabóia, Itália) e Santa Sé.

Eugénio III, tendo em boa consideração a política levada a termo pelos seus predecessores, ordenou que os metropolitas bracarenses obedecessem aos toledanos e mandou D. João Peculiar (a Arquidiocese de Braga) continuar obediente a Toledo. O Arcebispo português é oferecido por vítima expiatória da homenagem feita pelo príncipe português e aceite pela Corte de Roma, como confere Herculano. O Arcebispo mais não pôde fazer do que obedecer, embora com muita relutância, como é fácil compreender-se.

Mas era um verdadeiro diplomata. Assim se revelou sempre para salvar o seu rei, o Reino e o seu nome.

A ele ficaram a dever-se as contínuas e persistentes conversações e as regulares insistências junto do Sumo Pontífice, no sentido de alcançar o reconhecimento da independência de Portugal. E isto sempre numa perfeita colagem dos seus objectivos, como arcebispo de Braga, com os do rei de Portugal.

Pelo que se tem dito e escrito, tudo leva a crer terem resultado cordiais as relações entre Afonso Henriques e o clero do seu jovem e inacabado Reino.

O governo do Príncipe, contemporâneo de novos movimentos espirituais da Cristandade, e assinalável pelo alargamento que as suas terras conheceram, foi propício à implantação ou ao desenvolvimento dos institutos religiosos regulares.

Se os beneditinos já fixados, gozaram da protecção e benemerência régia, por si mesmos ou por via dos seus patronos, a quem o monarca se mostrou reconhecido por favores prestados, foram sobretudo as novas correntes, recém-chegadas, a usufruir do favor real. De facto, Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e Cistercienses são aqueles que emergem na documentação afonsina.

Ruínas da antiga Igreja de Santa Cruz de Coimbra

Túmulo de D. Afonso Henriques em Santa Cruz de Coimbra  

Aos primeiros, ligou-se Santa Cruz de Coimbra, logo após a sua fundação, pelo futuro Arcebispo. A construção iniciou-se a 28 de Julho de 1131, no local onde existiam os "banhos régios", então ainda fora dos muros defensivos da cidade, e a duas escassas centenas de metros da fronteira portuguesa com as terras islâmicas: o Rio Mondego. Se a fundação foi régia, não deixou de ser importante a acção junto do jovem Príncipe, do Arcediago D. Telo e do Mestre-Escola D. João Peculiar. Logo no ano seguinte, São Teotónio foi eleito prior da comunidade religiosa, que contava já, em 1132, com setenta e dois membros. Afonso Henriques mostrou-se-lhe particularmente afecto, quer pela relação com S. Teotónio quer pela contemporaneidade da fundação com a sua estada na cidade do Mondego, ou ainda porque Santa Cruz de Coimbra se mostrou receptiva a mais uma forma de conquista, a missionação em terra de fronteira, de que foi exemplo, nos anos imediatos, o presbítero Martinho, em Soure. Santa Cruz de Coimbra encarnava, assim, um novo ideal e um novo modelo de monaquismo, em sintonia com propósitos da realeza.

Os segundos, provavelmente entrados em data próxima dos anteriores, vieram, igualmente, a ser agraciados com os favores de Afonso Henriques: Lafões, Tarouca, Salzedas, Maceira-Dão, Seiça, Tomarães e, acima de todos, Alcobaça. Nascidos ou passados para a sombra de Cister, todos conheceram doações de bens e de direitos pelo Príncipe português e seus sucessores. Foram extraordinários agentes de repovoamento, destacando-se, sobremaneira, Alcobaça.

Finalmente, um outro grupo sobressai na sua documentação: é o dos eremitas, a demonstrar a sua força, no momento (1133-1148), em Portugal, e a atenção que o rei lhes dispensou.

Os fluxos migratórios parecem ter sido realizados em grupos algo compactos, onde chegava mesmo a observar-se a tendência para uma “agremiação” socioprofissional, levando à formação de novos e múltiplos povoados aldeãos com uma certa especialização artesanal. Isto verificou-se, por exemplo, em León. Mas o mesmo poderemos afirmar para o território português, se tivermos presente o caso de Lafões, em cujas imediações, por 1020, o rei mouro sevilhano, Abulcacim, em razia que realizava em território beirão, conquistou dois castelos defendidos por moçárabes, capturando cerca de trezentos deles.

Lafões era comarca, desde cedo, com um alargado perímetro de jurisdição. Recorde-se, por exemplo que, no couto de Alcofre (actual c. de Vouzela), de Lourenço Vicente, havia um chegador da escolha deste nobre que metia nele alguns jurados para o ajudarem a prender os malfeitores e outros delinquentes, que, posteriormente, entregavam à justiça régia de Lafões, e a seu mandado por ali permaneciam nos diferentes úteis afazeres com vista ao aproveitamento de leiras, quintãs e granjas e na defesa da região, a que o Rei não podia ser indiferente.

Sem dúvida, Peculiar revelou-se sempre um dos maiores prelados bracarenses de todos os tempos, trabalhando incansavelmente durante trinta e sete anos, pelo engrandecimento da sua diocese, metrópole e todo o Portugal já conquistado:

 

a)     Enriqueceu o seu património com a aquisição dos coutos e igrejas de Provezende, Gavieiras, Santa Cruz do Douro, Cossourado, S. João do Souto e muitos outros bens.

b)     Reorganizou o cabido, ao qual deu, em 1145, um terço de todos os rendimentos, bens, igrejas e arcediagos da diocese.

c)     Mandou ocupar amplos territórios das dioceses de Lamego e Viseu, ordenando que os administrassem, à morte de D. Bernardo, bispo de Coimbra, que faleceu em 26 de Janeiro de 1146.

d)     A perspicácia de Afonso Henriques e do Arcebispo de Braga é bem demonstrada pelo facto de ambos terem sabido aproveitar esse momento oportuno para mais um importante acto de gestão do território, numa perfeita aliança entre o temporal e o espiritual que, em certos casos, era efectivamente benéfica.  

e)     Pelo estatuto de 1165, elevou a 40 o número dos cónegos, entre os quais havia as dignidades de deão, chantre, mestre-escola e tesoureiro.

f)        Neste mesmo ano (1165), doou-lhe metade do couto e a igreja da Apúlia.

g)     Em 1173, confirmou-lhe a divisão de 1145, mantendo a porção canónica a qualquer cónego que, devidamente autorizado, quisesse ir frequentar os estudos – quicumque canonicorum […] ad studium ire voluerit-, o que o tornou um dos primeiros beneméritos da instrução.

h)     Cuidou da assistência, mandando fundar diversas albergarias.

i)       Mais importante ainda foi a sua acção em favor da metrópole bracarense e da sua independência, lutando corajosamente contra as pretensões dos arcebispos de Compostela e de Toledo.

j)       Não obstante a pressão do primeiro, além da reintegração dos bispados de Coimbra e Porto, temporariamente isentos de Braga, conseguiu manter como sufregâneas as dioceses de Lamego, Viseu, Lisboa e Évora, ou seja todas as do território português, embora com certas intermitências, sobretudo quanto às duas últimas.

k)      Obteve também para a sua metrópole a diocese de Zamora, que o arcebispo de Toledo pretendia. Apelando para os direitos do primaz e legado, concedidos por Urbano II, tentou o arcebispo de Toledo impor a sua autoridade ao de Braga, mas este resistiu a todas as pressões e ameaças feitas, a pedido de Afonso VII de Castela, pelos papas, desde Lúcio II a Alexandre III, sujeitando-se apenas, momentaneamente, em 1150, mas causando agitada rebeldia e frequentes incómodos aos sucessivos Pontífices que pareciam teimosamente não recuar com a sua decisão, nem repensá-la sequer.

l)       As tarefas foram gizadas logo de início, à semelhança dos grandes edifícios francos: o servitium Dei, o ofício divino no coro da igreja, a oração, a leitura, mesteres, manuais oficinais. E aqueles que eram escolhidos para cargos do oficialato monástico, trabalhavam nos celeiros, na hospedaria, na sacristia, no hospital, na portaria, na escrivaninha, onde liam, traduziam e copiavam… na enfermaria, na regulação dos trabalhos nas granjas e nos diversos sectores administrativos, estabelecendo as ligações com Braga, Coimbra e Roma, ainda a introdução e manutenção da schola ou studium. Da aprendizagem escolar e educativa são evidências os numerosos cónegos-escribas.  

 

Não foi menos notável a sua acção política em favor dos interesses “nacionais”, podendo, segundo o modo de ver contemporâneo, chamar-se-lhe o ministro dos Negócios Estrangeiros de D. Afonso Henriques, uma vez que procurou garantir, no campo diplomático, as conquistas militares do monarca e uma interligação do Reino com o Estrangeiro. Foi ele, com efeito, que, num recontro no Vale do Vez, na Primavera de 1141, serviu de medianeiro para se conseguir a trégua entre os reis de Portugal e de Castela, preparando o ambiente para o acordo de Zamora. O recontro (torneio?) de Arcos de Valdevez terminou com um pacto de tréguas entre os dois primos, tendo tido forte influência D. João Peculiar, a quem o próprio imperador, segundo os Anais, recorreu para servir de mediador.

O Copista

A Iluminura

O Arcebispo de Braga em causa era um homem decidido e autoritário. Considerado, assim, por ambos, como um árbitro nas questões levantadas e não raras vezes. Em problemas que punham em causa, o direito internacional público da época, desempenhou um papel fundamental na procura de soluções dignas para os dois. Por ser o único metropolita em Portugal, achava-se com o direito de intervir em todos os assuntos eclesiásticos do País e, por deferência e preocupação, ainda as estritamente militares de D. Afonso Henriques e em assuntos políticos do maior relevo. É comum ler-se a frequência como, depois de ter decidido e obtido os inerentes resultados, veio informar o rei e este prestou-lhe alguma atenção, um tanto despreocupado, sabedor que era de que as matérias estavam em boas mãos.

Em 1143, foi a Roma, para, em nome do rei entregar a carta de enfeudamento de Portugal à Santa Sé (Claues regni coelorum) e prestar vassalagem ao Papa, sob condição de Portugal gozar de protecção da Igreja e não reconhecer outro poder eclesiástico ou civil, além da Santa Sé e seus legados.

Em 1143, o cardeal Guido de Vico que viera, por aquele ano à Península, como legado de Inocêncio II, reuniu em Valladolid um concílio provincial, em que se promulgaram as resoluções do segundo concílio geral de Latrão e se adoptaram outras providências relativas especialmente à igreja de Castela. É provável que aí se tratassem também as pazes a concluir entre os primos, Afonso VII e D. Afonso Henriques, o que pode justificar a presença de D. João Peculiar, naquele concílio.

Em 1147, tomou parte na conquista de Lisboa, onde fez um discurso a animar os cruzados ao ataque. D. João Peculiar, S. Teotónio e o Chanceler Alberto ajudavam o rei a tomar as decisões necessárias. Lisboa, pela sua grandeza, já naquele tempo, pela solidez das suas muralhas, pelos recursos que podia tirar do seu vantajoso assento sobre a vasta baia do Tejo, e o castelo de Sintra, por se achar situada no cimo de um rochedo quase inacessível e posto como na vanguarda de um serrania “áspera e intratável” – para o que nos alerta Alexandre Herculano – contava, no resto do “distrito” com alguns castros e torres, posicionados pelos cabeços dos montes que amparavam aldeias e habitações rurais, derramadas pelos campos e vales que se espraiavam entre o Tejo e o Mar Oceano. Mas todas aquelas pequenas fortificações, bem rudimentares na sua maior parte, se existiam, era coisa de pouco momento, nunca referida pelos autores árabes e muçulmanos. A conquista de Santarém e Lisboa, no ano seguinte, 1147, tornaria a sua posição ainda mais forte. Foi com a tomada de Santarém que se deu início à reorganização do território visiense, do ponto de vista eclesiástico, restaurada antes de 1 de Maio daquele ano. Não exactamente depois da conquista de Lisboa, como se vem dizendo. Nesta data, já D. Odório, sagrado em Tui, é bispo de Viseu, para o que em nada terá concorrido a acção directa de D. João Peculiar, embora, de Braga, por certo, tivesse ditado normas, doutas opiniões e influenciado o arcebispado de Toledo.

Desde a tomada de Santarém, o pensamento de D. Afonso Henriques voltava-se para a de Lisboa, urbe importante, cuja situação, hoje grandemente acomodada para ser um dos principais empórios do comércio do mundo, se os erros dos políticos e fraca visão deles, de antolhos colocados desde que tomam posse, lho consentissem – a eles e a nós – não se prefigurava, nesse tempo, menos própria para centro da navegação costeira dos mares Oceano e Mediterrâneo e, sobretudo, para o trato entre a Mauritânia e a Europa.

D. João Peculiar foi o braço direito e forte do rei na reorganização de Santarém, Lisboa, Sintra e Palmela, logo após as suas conquistas (entre 1147 e 1166).

Nas orações que João Peculiar e o bispo do Porto - que, com alguns dos capitães estrangeiros foram enviados como intermediários -, proferiram em Lisboa, em 1147, parlamentando com os responsáveis mouros, os seus apelos iam no sentido da rendição moura. O arcebispo de Braga não se baseou tanto na teoria da guerra justa, como o fez o bispo do Porto, mas recorreu, de preferência, a um outro tópico de relevância substancial: o direito a recuperar o que já era seu, a referência à “reconquista” gótica que permitia a todos os reis peninsulares relegar de novo o ímpeto das forças dos reis hispânicos a desígnios superiores.

Reconhecidos como tais, logo que se abeiraram dos muros espessos e velhos, não tardaram a surgir no adarve o qaid da cidade e o bispo moçárabe, ainda os magistrados civis. Foi, então, que o Arcebispo de Braga encetou a discussão, com um longo mas pouco concludente discurso, propondo que entregassem o al-qacr e outras fortificações aos sitiadores, acordando com o alcacereiro que a propriedade, a honra e a vida dos habitantes seriam respeitadas e mantidas. Este acordo havia sido pouco antes jurado entre Afonso Henriques e os seus aliados, facto que põe em evidência a lealdade das promessas de D. João Peculiar. O referido juramento veio ainda dar origem a um documento, uma carta de fidelidade, amizade e segurança entre o rei e os mouros forros de Lisboa, Alcácer, Palmela e Almada, em 1170, em vida ainda do Arcebispo.

Neste caso, tratava-se de uma manifestação de respeito acerca do prometido pelo metropolita português, da parte do rei dos Portugueses, e não podia esquecer-se de que, além das funções religiosas, os bispos do Reino também eram proprietários temporais… Ao poder régio não seria indiferente quem ocupava tão distintos lugares na hierarquia do “Governo”, mas havia que, não esquecidamente, mas sempre em presença, ter-se em conta o papel da moirama que por cá ia ficando. Viviam nas suas aljamas fora das cidades, mas trabalhando, de Sol a Sol, nas terras dos Cristãos e em ofícios que lhes eram requeridos. Ainda os impostos a pagar em partes e as jeiras gratuitas que prestavam. Ver o conselho, a diplomacia, a função dos embaixadores, a solução pensada e acertada para casos que merecessem a sua atenção neste campo, dilatando, inclusivamente, o direito de asilo, se comparado com o mesmo estabelecido pelo estilo da Corte…Ainda a literacia e o ensino. E o rei pode vir a interferir em aspectos da igreja, como a designação dos bispos para as suas dioceses.

João Peculiar infringira, escudado em argumentos como a conquista de terras aos infiéis, diversas normas canónicas, sem que tal parecesse tê-lo limitado e constrangido. Pelo contrário, fá-lo-ia ao longo de todo o seu arcebispado, mesmo nos períodos em que se diz ter estado suspenso das suas funções pela Santa Sé, como em 1145 e 1148. Tal situação duvidamos que tenha alguma vez ocorrido, primeiro pela inexistência de notas de suspensão e depois, porque durante os mesmos, ele continuava a consagrar bispos, restaurar sés episcopais e a presidir a concílios com a participação de legados papais. Por tudo isto, a questão da legitimação do Rei e do Reino, e do seu reconhecimento, andava muito ligada aos progressos da questão do primado, especialmente a nível diplomático. Assim, embora o propósito mais visível das visitas de João Peculiar à cúria pontifícia pareça ter sido quase sempre o de resolver as questões ligadas com as querelas jurisdicionais com Toledo ou com Compostela, não podendo deixar de reparar-se em que quase todas as suas deslocações a Roma pareciam ter obedecido como que a um padrão rítmico que se coordenava de forma bastante significativa com os progressos político-militares e territoriais do seu Rei e do País que iam caminhando para Sul a passos largos.

Em 1144, quando o pedido de vassalagem tinha sido entregue na Cúria, ele apresentou aí o pagamento correspondente ao censo prometido e recebeu a carta de protecção para Afonso Henriques; quando, em 1148, se deslocou a Roma para justificar a sua não obediência a Raimundo de Toledo, decerto aproveitou para reportar a conquista de Lisboa e a restauração de Lamego e Viseu, recebendo uma confirmação pontifícia das sufragâneas de Braga.

Parece não se ter esquecido de relevar a acção de muitos estrangeiros na tomada de Santarém, Sintra e sobretudo de Lisboa, provando à Santa Sé, o empenho da Europa e do Mundo conhecido então, na luta contra o infiel, liderada por Afonso Henriques e a importância estratégica e económica do nosso rincão. Muitos dos estrangeiros vindos na armada do conde de Areschot ficaram, como se sabe, residindo na cidade. Bastantes, entre eles, fizeram assento no interior da província. As ordens de cavalaria, as catedrais, as corporações monásticas foram liberalmente dotadas nas terras adquiridas pela primeira vez. Algo ainda muito importante e que, decerto, foi realçado, teve a ver com o não reconhecimento por parte de Lúcio II de nada do que ficara estabelecido em Zamora no ano anterior, não se esquecendo este de recordar, no entanto, a obrigação de Afonso Henriques em continuar as operações militares que desenvolvera até então, além de solver o censo prometido (120 gramas de ouro anuais).  

Selo rodado de D. Afonso Henriques – IAN/TT, Gaveta 7, m. 3, n.º 8 . 1158, Fev.º

Roma queria tudo. Por uma questão de prudência, D. João Peculiar há-de ter apaziguado os ânimos rebeldes de Afonso Henriques e obrigado o Rei a esperar por uma oportunidade de fazer ecoar pela Europa o sucesso da tomada de Lisboa. De lamentar que a História seja relutante à prossecução das evidências e oportunidades. Não seria de esperar que Lúcio II vivesse apenas mais esse ano e os Pontífices que se lhe seguiram tivessem mandado colocar nas arcas ou no Armário do Arquivo da Chancelaria documentos políticos assaz importantes sem lhes dar a solução que mereciam.

A Sul de Leiria, na direcção do Ocaso, foi fundada, em 1153, uma alargada ala do mosteiro de Alcobaça, que veio a ser um dos mais célebres de Portugal e a cujos monges ficou a dever-se, sucessivamente, a cultura de uma extensa parte da Alta Estremadura, a qual até aí fora uma vasta solidão e, por muito tempo, pouco mais serviria do que um campo neutro entre cristãos e sarracenos. Nasceram, então vilas e aldeias por meio desses novos colonos, por quem o Rei distribuía terras e privilégios, como incentivo ao aumento demográfico e à eventual necessidade de defesa e de prosperidade económica.

Além de D. João Peculiar fazer saber em Roma e pela Europa estes sucessos e medidas que se iam tornando imprescindíveis, a par da construção de imponentes edifícios religiosos (uns mais do que outros), em 1157 e em 1163, também apresentou a tomada de Alcácer (24 de Junho de 1158): portanto, sempre mensagens de submissão e vassalagem por parte do Rei – símbolo do mais elevado Catolicismo -, apesar de se ter deslocado a esses encontros para responder sobre a sua contumácia em obedecer ao primado de Toledo. Braga reivindicava a total independência em relação a esta Sé de arquiepiscopado, a quem disputava ainda os direitos do primado, por pretender ter direito a usar esse título, com base na anterioridade da posse desse estatuto, que alegava ter usado desde tempos anteriores à saciedade que a interferência das esferas políticas nesta questão não deixava ao acaso o desfecho deste assunto. Ainda em 1150, João Peculiar, na sequência de mais uma hipotética suspensão, acabara por ir mesmo a Toledo, prestar obediência ao Arcebispo dessa metrópole como a seu primaz, por uma e única vez. O documento onde se regista este acto menciona que o rei Afonso Henriques enviara o arcebispo português a Toledo com o seu próprio filho primogénito, Henrique, que teria, então, 3 anos, e que Afonso VII, por seu turno, tinha enviado seu filho mais novo, Fernando, de 13 anos, causa reformandi pacis, no que parece ser um encontro entre eclesiásticos com uma óbvia leitura política.

Contudo, não parecia ter estado na natureza deste prelado (ou quem sabe, dos interesses da política portuguesa) manter tal estado de coisas, como sugere o facto de - como se conta -, logo em 1155, vir a ser suspenso, mais uma vez, desta feita pelo cardeal Jacinto, legado papal à Península, por causa da sua recusa em comparecer ao concílio provincial convocado e presidido pelo “Imperador” Afonso VII. Até final da sua vida, João Peculiar continuaria sempre a exercer a sua autoridade e o seu munus arquiepiscopal como se nada afectasse a sua legitimidade para o fazer, e recordando-se - e aos demais -, sem recuos por quaisquer dúvidas que houvesse, que a aceitação da vassalidade exclusiva à Santa Sé, o desvinculava de Afonso VII e da obediência à Igreja peninsular.

Neste ponto, a sua actuação aproximava-se muito da de Afonso, o senhor seu Rei que também reinou de facto, durante quase quarenta anos, exercendo o seu imperium sem limitações e como líder único de pleno direito, sem ligar ao facto de, apesar de nunca ter deixado de lutar pela legitimação do seu poder pelo Papa, ter recebido tão só o reconhecimento pontifício que lhe permitiria afirmar a sua identidade como dux, ou mero condutor do seu povo, e a existência do território pontifício o que daria azo  a Roma afirmar a sua eclesiástica auctoritas dentro da terra como era, então considerado, e apenas, como reino independente e indivisível, com sucessão hereditária, em 1179, quando, por fim, a bula Manifestis probatum est argumentis lhe reconhecera esses poderes de jure.

 

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