AUTOBIOGRAFIA DE MARTIM AFONSO DE SOUSA 1


Como Luís de Albuquerque escreve, no seu «Comentário» à autobiografia, esta resenha da vida de Martim Afonso de Sousa foi escrita em 1557, a seguir à morte de D. João III e deve ser uma relação dos serviços prestados à coroa para reclamar as mercês devidas, e que segundo parece lhe teriam sido prometidas pelo rei recém-falecido. Martim Afonso de Sousa pouco fala da expedição ao Brasil de 1530 a 1533, em que conseguiu expulsar os franceses das costas do Brasil, sendo a relação centrada na sua estadia na Índia, onde esteve, primeiro de 1534 a 1539, como capitão-mor do mar, e depois de 1542 a 1545 enquanto Governador. 

Nota: Algumas das ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».

 

RELAÇÃO QUE FEZ DA SUA VIDA MARTIM AFONSO DE SOUSA

 

Martim Afonso de Sousa

Martim Afonso de Sousa

Brevíssima e sumária relação que fez da sua vida e obras o grande Martim Afonso de Sousa, senhor de Prado e de Alcoentre, capitão donatário da ilha de Tamaraci, no Brasil, que serviu de capitão-mor do mar da Índia e depois foi governador dela. À Sereníssima Senhora Rainha Dona Catarina, mulher de el-rei D. João, o terceiro, estando ela na regência destes reinos. A qual relação se achou escrita de sua própria mão e letra muito tempo depois dele morto, e é tão breve para o muito que de sua grandeza se conta, que não faz mais que tocar a mínima parte dos seus feitos heróicos em que se mais engrandece, pois só disse o tema de seu progresso, de que autores de nome poderão (ampliando) escrever largos e copiosos volumes de sua tão sabida e divulgada história, de que na Índia e nestes reinos há muitas claras notícias.

 

Senhora:

Eu comecei a servir El-Rei Nosso Senhor, que santa glória haja, sendo príncipe, de idade de dezasseis anos, e na era de dezasseis, que agora faz quarenta e um anos que sirvo; e por Sua Alteza folgar comigo e me favorecer, se arreceou o duque de Bragança, com quem eu vivia e de que tinha oitocentos mil réis de renda, a maior parte deles de juro e sobre vassalos, que me ficasse esta renda, e eu vivendo com o príncipe, fez com el-rei D. Manuel que me mandasse ir da corte, e me fosse para o duque, como de feito me mandou logo.

E porque eu levava muito gosto de servir o príncipe, e mo ele também mandar, me fui a Vila Viçosa e disse ao duque que eu não havia de viver com ele, que se o havia pelo que dele tinha, que eu lho renunciava, e renunciei logo; e como eu era moço, el-rei D. Manuel me fez velho para ter vigor a dita renunciação; e daqui fiquei sabendo que ninguém tinha poder para fazer homens velhos ante tempo, senão reis.

Isto acabado, houve el-rei D. Manuel por bem que tornasse a servir o príncipe, onde o servi continuamente no paço, dormindo e comendo nele, sem nunca dele sair.

Neste meio-tempo prenderam o conde de Sortelha e o conde de Castanheira por se dizer que uns seus criados mataram um homem; fiquei eu só com o príncipe. e digo só não porque não ficassem muitos com ele, mas porque de mim se fiava e de mim só falava suas coisas.

Neste tempo estavam alguma coisa diferentes El-Rei e o príncipe, e, por parecer a El-Rei que eu o podia inclinar contra ele (o que nunca, me Deus perdoe, tal foi), me mandou dizer por D. Nuno Manuel e pelo bispo do Funchal que me agradeceria muito ir-me para casa de meu pai, e estar lá um ano, e que ele me fazia toda a mercê que eu quisesse, que a nomeasse e dissesse a eles; e eles me aconselharam que em toda a maneira o fizesse, porque ganharia nisso muito.

Neste tempo era eu de idade de dezasseis anos, e lhes respondi que eu vivia com o príncipe e era seu criado, e recebia dele muita mais honra e mercê da que eu merecia, e que não era eu homem para nenhum interesse me dobrar, para deixar de servir o senhor com quem vivia. E tornou-me a mandar dizer por eles mesmos que, pois não queria por bem, que ele tinha coisas contra mim por onde me podia mandar ir por justiça fora da corte; a isto lhe respondi, muito contra seu parecer deles, que muito menos o deixaria fazer por medo; largou-me então El-Rei, e fiquei servindo até que El-Rei D. Manuel faleceu e a rainha D. Leonor se foi para Castela, e fui com ela e lá casei com minha mulher.

E casado de um mês fez o imperador um exército para entrar por França ele em pessoa; não me pareceu bem que ficasse guardando as pousadas dos outros, e me fiz prestes e me fui com ele; e quando chegámos a Navarra entrava já o Inverno; não pareceu bem com tão forte tempo ir o imperador, e mandou por capitão deste exército o condestável, com que entrámos em França e andámos muito tempo combatendo muitos lugares e havendo muitos recontros; e por derradeiro viemos a cercar Fonterrabia e a tomámos.

Em todas estas coisas dei eu a conta de mim que devia de dar quem se criara com tão excelente príncipe; foi isto tanto que quando chegámos da vinda da guerra pela posta aonde o imperador estava, este duque de Alba e o conde de Alba de Liste e outras quatro ou cinco pessoas muito principais e eu, por me fazerem mercê me metiam em sua companhia, e assim de caminho nos fomos descer ao paço e beijar a mão ao imperador; e ele me disse palavras públicas muitas e de tantos gabos do que eu lá fizera. diante toda a corte, de que eu podia ter muita vaidade, e todo senhor levar gosto de se dizerem a um criado que ele criara.

E, não contente com isto, quando chegámos a Burgos, me mandou dizer por Covos, o qual mo disse perante Pêro Correia, que era embaixador, e D. Manuel de Sousa 2, que depois foi arcebispo de Braga, que para isso chamou, que ele levaria muito gosto que eu vivesse com ele, e me faria muita mercê e se serviria de mim em coisas muito honradas, e outras muitas altercações que tiveram comigo para que ficasse; eu lhes respondi que esta era uma honra tamanha que eu a não queria senão para pôr na sepultura; mas, porém, que eu tinha um tal rei por senhor, e com quem eu me criara, que por outro nenhum o deixaria. Tudo isto sabia El-Rei Nosso Senhor, porque eles mesmos lhe disseram.

Isto era em terra onde D. João de Almeida medrou um conto e meio de renda, e Afonso da Silva um, e Rui Gomes da Silva vinte. E neste tempo se concertou o casamento de Vossa Alteza com El-Rei Nosso Senhor, e ele me escreveu vir com Vossa Alteza e trazer minha mulher em sua companhia, o que fiz com muito gasto de minha fazenda e da alheia, que me emprestaram, porque eu então tinha pouca; e chegámos a Évora na era de vinte e cinco.

E neste mesmo ano me fez El-Rei mercê de uma comenda que tenho em Beja, a qual estava arrendada em cento e oitenta mil réis, e me tirou oitenta de tença que me ficou de meu pai; e fiquei servindo assim na corte até a era de vinte e nove, que por El-Rei ter novas que no Brasil havia muitos franceses, me mandou lá em uma armada, onde lhes tomei quatro naus, que todas se defenderam muito valentemente e me feriram muita gente; e assim nisto como no descobrimento de alguns rios, que me El-Rei mandava descobrir, tardei perto de três anos passando muitos trabalhos e muitas fomes e muitas tormentas, até por derradeiro me dar uma tão grande que se perdeu a nau em que eu ia, e escapei em uma tábua; e mandou-me El-Rei vir de lá a cabo de três anos.

Cheguei aqui nesta cidade em Agosto de 533, e logo em Março seguinte de 534 me mandou à Índia por capitão-mor do mar; e parti daqui com cinco naus, e todos chegámos a salvamento, aonde achei em Goa já uma armada prestes para ir fazer guerra a Cambaia, que estava então muito travada; e por lhe parecer a Nuno da Cunha que eu chegava cansado e que não me podia fazer prestes tão asinha, mandava nela Garcia de Sá. Eu me fiz prestes do dia que cheguei em dez dias e me parti nela e fui a Chaul tomar outra, em que vinha Diogo da Silveira do Estreito, e juntamente com elas me fui direito a um lugar de Cambaia que chamam Damão com escadas e apetrechos para o combater, o qual era muito forte e estava cheio de muito boa gente e artilharia e é muito soberba de fazerem já dali retirar outros capitães nossos com a sua perda.

E. chegando, comecei a combater e a pôr escadas por onde a gente começou a subir; e tinha mandado um capitão à porta com vaivéns para a quebrarem, e eles não aguardaram isso senão abriram-na e não ousou ninguém de entrar por ela porque tinham artilharia assestada nela, e muita gente e muitos espingardeiros; e veio-me recado como a porta era aberta e acudi lá, e deram-me os portugueses lugar de muito boa vontade, e fui o primeiro que por ela entrei, e tomámos a fortaleza, e a maior parte da gente morreu pelejando muito valentemente, e a outra cativámos e tomei muita artilharia e muitas espingardas e cento e cinquenta cavalos.

Atormentou tanto isto Cambaia, e assim a guerra que lhe fui fazendo pela costa, que começaram logo a falar em pazes e em darem Baçaim, como deram no cabo do Verão; e porque de el-rei de Cambaia se fiava pouco, assim por ser grão senhor como mudável muito, me deixou Nuno da Cunha invernando em Chaul, na frontaria de Cambaia, onde estive aquele Inverno dando de comer a quinhentos homens; e no meio dele começaram os Mogores a fazer guerra a el-rei de Cambaia, e ele me escreveu que fosse lá, que ele me daria fortaleza em Diu, coisa que tão desejada era e sobre que se tanto tinha gastado; eu o pus em parecer desses fidalgos e capitães que estavam comigo, os quais todos foram contra isso, assim porque o tempo era ainda muito verde, como pela pouca confiança e segurança que tinham de el-rei de Cambaia.

Por cima de tudo isto eu me determinei a ir, e lhes disse que não queria que por mim se perdesse uma ocasião tamanha como se oferecia, que eu não havia de mandar a ninguém que fosse comigo, que eu iria com os meus criados e quem em mim se aventurava, e em se perder uma coisa de tanto serviço de Sua Alteza se perdia muito; quiseram então ir todos comigo, e não quis levar mais que cem homens, e deixei os capitães e a outra gente fazendo prestes a armada para o que fosse necessário.

E parti com dez catures, que são navios muito pequenos, para não aventurar a armada grossa, e chegámos a Diu quase perdidos de todo e muito receosos de não nos fazerem muito boa hospedagem; o que foi pelo contrário, porque tive gasalhado com todas as honras e prazeres e abastanças do mundo, e logo me El-Rei entregou o lugar por sua mão aonde havia de fazer a fortaleza, e me meteu da posse dela; e, porém, com a condição que eu fosse com ele pela terra dentro ajudá-lo na sua guerra, que era maior perigo que todos estes outros. Mas eu, para chegar ao cabo de um serviço tamanho de El-Rei Nosso Senhor, lho concedi e mandei recado a Nuno da Cunha, o qual veio com a sua armada daí a um mês, e começámos a fazer logo a fortaleza, que naquele Verão ficou para se poder recolher a gente e defender nela.

Neste tempo quis el-rei de Cambaia ir defender umas cidades suas que os Mogores vinham tomar, e disse que lhe cumprissem um dos capítulos do concerto, que era que eu havia de ir com ele ajudar-lhe a fazer a guerra, e pedia que fossem mil homens. Não pareceu bem a Nuno da Cunha, nem era razão que se aventurasse tanta gente, porque ia muito aventurada. Começou-se El-Rei a agravar que lhe quebravam as capitulações e a querê-las ele também quebrar e alevantar-se, e eu o amansei e aplaquei com dizer que lhe não quebrava nenhuma coisa e do que eu ficara com ele, porque eu não ficara senão de ir com ele e não falara em gente, que eu iria com ele ao cabo do mundo e o serviria tão verdadeiramente como a El-Rei [nosso senhor]. Com isto se satisfez e se tornou a apaziguar a terra e [a] assentar a coisa que estava toda revolta; e Nuno da Cunha se me lançou aos pés dizendo-me que eu fazia o maior serviço a Sua Alteza, que nunca homem fizera a seu rei, porque nunca cuidaram que me eu ousasse a aventurar a um tamanho perigo.

Fui com ele, com alguns fidalgos meus parentes e alguns meus criados, que por todos éramos quarenta de cavalo; andei com ele todo o tempo que ele lá andou, passámos os maiores trabalhos e os maiores perigos que nunca homem passou, porque eles não tinham guardas no seu arraial, nem vigia de noite, nem sabiam nunca aonde os inimigos estavam, que nos aconteceu entrarem doze mil de cavalo por urna porta e nós sairmos por outra, que nunca o soubemos senão quando entravam; e por este descuido, que eles tinham, nos era necessário termos as armas sempre vestidas, de dia e de noite, e nunca as tirávamos. Porém tinha dele muito bom gasalhado e muito bom tratamento em extremo, e ele trazia muito boa gente e muito grandes senhores consigo, e tudo isto era governado por mim, e se eles queriam alguma coisa dele vinham-se a mim, e duas vezes lhe salvei todo o seu exército, de que ele era muito em conhecimento.

E um dia me mandou dizer que o costume dos reis de Cambaia era, quando os homens como eu vinham às suas terras, dar-lhes um banquete e dar-lhes o comer e as caldeiras em que se fazia e os pratos em que se servia, e que isto tudo era de ouro; e porque ele não estava então em tempo de fazer estas coisas, por andar no campo, me mandava vinte mil pardaus para pratos e caldeiras.

Este é Diu, que me a mim tão caro custou e que tantas vezes aventurei a vida para o haver para El-Rei Nosso Senhor; e este mesmo é o porque tem feitas tantas mercês a homens nesta terra, porque defenderam sua vida e sua honra. E estes serviços de cercos, onde quer que se trata guerra, e os merecimentos deles são julgados por quem o não entende e a coisa que menos se paga, porque muita diferença vai de serviços forçados a voluntários.

Acabadas estas guerras vim com Nuno da Cunha invernar a Goa, e no cabo do ano veio nova como o Samorim, que é rei de Calecut, queria entrar nas terras de el-rei de Cochim, que é coisa muito prejudicial ao serviço de El-Rei Nosso Senhor e à sua carga de pimenta. E fui logo defender-lhes o passo, e o fiz ir do lugar onde estava e querer passar por outra parte; e indo eu ver o passo por onde determinava de passar, para fazer uns reparos e pôr uma artilharia para defensão do passo, iam comigo oitenta portugueses e dois mil homens da terra com um senhor deles; e estando nós muito sem cuidado disso, dá sobre nós el-rei de Calecut com vinte mil homens; e porque parecia desigual pelejar tão pouca gente com tanta, foram todos em parecer que nos devíamos de recolher ou acolher; e esse mesmo fora o meu se me a mim parecera que era aquele partido mais seguro, mas porque corríamos ainda maior risco em nos acolher, ao menos era morrer mais desonradamente, e assim dei a entender aos homens que comigo estavam, e determinámos de pelejar, porque era o partido mais honroso; e encomendando-nos a Deus mandei tocar as trombetas, levando o senhor da terra pela mão, chorando por lhe parecer que se ia sacrificar. E, tanto que abalámos para eles, que vinham já para nós, e que as nossas espingardas começaram a laborar, eles se tiveram e tornaram um pouco atrás, que foi o maior prazer que nunca vi; me detive também e eles então viraram e se foram, o que parece que foi coisa milagrosa, e assim o foi, porque eles diziam que não quiseram pelejar com tanta gente, que lhes pareceu que éramos trinta mil homens.

E porque el-rei de Repelim era o que o trazia e o queria meter por suas terras, e era muito contrário de el-rei de Cochim e de todos os desta parcialidade, me pareceu bem ir dar sobre ele e o destruir; e para isto se ajuntou el-rei de Cochim e todos os reis seus amigos, porque era ele muito poderoso e tinha muita gente e muita ajuda de el-rei de Calecut, e fomos todos pela terra dentro duas léguas; e, porque desembarcámos tarde, foi necessário dormir no caminho, aonde começou a vir a nova que era muita gente que estava contra nós. Começou a entrar o medo nos reis que ali iam e aquela noite fugiram todos, assim que pela manhã eu me achei só com a gente portuguesa, que era um bom golpe de muito boa gente; e determinei de dar no lugar porque me pareceu vergonha tornar para trás, e dei nele, que é uma cidade muito grande e estava muito cheia de gente e muito bem apercebida, e foi tomada e saqueada e queimada e feito grande destroço em toda a terra. Isto fez que nunca mais el-rei de Calecut intentou de passar, nem nenhum dos senhores do Malabar o ousar de ajudar; e nestas coisas todas era eu capitão e soldado.

Passado o Verão eu vim invernar a Cochim com toda a armada, onde estive aquele Inverno fazendo-me prestes para no Verão seguinte voltar a fazer a guerra a el-rei de Calecut; e neste tempo determinaram os Turcos de vir à índia e se cartearam com el-rei de Calecut, e [este] mandou fazer a armada prestes, e fizeram aquele Inverno cem navios de remo, fustas muito grandes e muito formosas, como galeotas, muito cheias de artilharia e de muito boa gente de guerra, como estes mouros de Malabar são, que [lhes] não fazem nenhuma vantagem os Turcos.

E tanto que o Verão entrou, começaram a sair estas armadas, cinquenta navios de um golpe, que era a flor de toda esta armada, e os outros espalhados, e foram fazendo muito nojo nos navios portugueses e nas naus que vinham para cá, e lhes mataram dois capitães, sem eu a isso poder valer, porque os navios que trazia eram mais velhos e muito carregados e os seus muito leves e muito equipados, que se saíam de mim cada vez que queriam; e vi-me tão desesperado que me foi necessário deixar a armada e ir-me a Cochim e fazer prestes vinte e dois navios de remo, em que me meti com a melhor gente da armada, e fui em busca destes cinquenta navios lá ao cabo de Comorim, levando eles a viagem de Ceilão para o irem tomar e destruir; e alcancei-os antes que atravessassem, e pelejei com eles desde antemanhã até as dez horas do dia, e foi uma muito renhida coisa, porque me feriram a maior parte da gente que levava e me mataram muita, e fui de uma espingardada tão maltratado que ainda agora cada lua estou aleijado dela; mas Deus, por sua misericórdia, me quis dar a vitória desta batalha, e lhe matei muita gente, e a outra se lançou ao mar e se acolheu a terra por estarem pegados com ela; e lhe tomei os navios e toda a artilharia, que foram trezentas peças de artilharia e duas mil espingardas, e muitos portugueses que traziam presos a banco, e muitos cálices e ornamentos de igrejas que eles tinham roubadas. Tudo isto mandei para Cochim entregar nos armazéns de Vossa Alteza, e eu fui a Ceilão, onde a gente dele vinha beijar os pés aos Portugueses, havendo que os remiram; e o rei me deu vinte mil cruzados, que trouxe e entreguei a Fernão Rodrigues de Castelo Branco para comprar pimenta no Inverno, que era então vedor da Fazenda; e tanto que cheguei a Cochim soube como andava outra armada pela costa, de trinta velas, fazendo muito nojo.

Fiz-me logo prestes para ir em busca delas, e, porque trazia a maior parte da gente ferida, não tive equipagem para mais que para quatro velas, e com elas me fui em busca deles, e encontrei-os defronte de Cananor em amanhecendo, e eles se vieram direitos a mim, e começámos a pelejar com toda a gente do lugar posta nos muros que vêm sobre o mar, para verem a batalha, a qual durou até a véspera, com me ferirem a maior parte de toda a gente e me matarem dezoito homens; e era o mar tão vermelho em redor dos navios, assim do sangue dos nossos como dos seus, que era coisa muito medonha de ver, e, por derradeiro, aprouve a Deus de nos dar a vitória, e matámos a maior parte de toda a gente deles, e a outra que ficou viva mandei toda enforcar na praia de Cananor, por muitas crueldades que eles tinham feito a muitos portugueses que tomaram.

Fiquei andando depois pela costa até que de todo acabei de a limpar, e tomei ainda outras dez fustas, de maneira que foram aquele ano oitenta e quatro, que era a armada que estava para se juntar com os Turcos, a qual, se ajuntava, fora o negócio da índia acabado de todo.

Estes navios eram todos cheios de artilharia e de muito valente gente e de muitos artifícios de fogo, e se André Dória isto fizera tivera ainda de mim diferentes honras, e mais das que tem, ainda que as tem muito grandes, porque nunca ele fez coisa como esta, que assim sabem lá acreditar os homens e honrar a terra, porque dar lustre e favor às vitórias dos vassalos honra é do rei e do reino.

No Verão que veio vieram os Rumes, e se tornaram com fazer pouco mais que nada; e tornados, me vim eu para este reino, onde El-Rei Nosso Senhor, que santa glória haja, me fez muito gasalhado e muito favor e nenhuma mercê. E isto foi na era de trinta e nove.

Na era de quarenta e um me mandou Sua Alteza à índia por governador, sem lhe eu nunca nisso falar, como Vossa Alteza deve ser bem lembrada, antes requeria coisa muito diferente; porém, para fazer o que Sua Alteza mandava, fui, e achei a terra tão perdida que verdadeiramente a não conheci, porque os fidalgos estavam todos espalhados por essas fortalezas, e muitas fustas alevantadas, que faziam muito nojo pela terra, e a gente da índia tão pobre que andava de noite dando brados pela rua, pedindo esmola pelo amor de Deus.

Tudo isto foi logo remediado, porque para a necessidade dos soldados ordenei logo fidalgos que lhes dessem mesas, e comecei a entender na Fazenda de Sua Alteza e [a] apertar com os feitores, de maneira que houve dinheiro, com que comecei a fazer pagamentos a esta gente pobre, e mandei lançar pregão que todo o homem que mais andasse pedindo esmola fosse açoutado publicamente.

E quando a gente se viu paga e farta não houve mais roubos nem furtos, como de antes havia, mas ficou tudo em sossego e eles muito contentes; os fidalgos se vieram logo todos para mim, e mandei apregoar em todos os lugares e fortalezas da Índia que todo o homem alevantado se viesse para mim dentro de certo tempo, porque os havia por perdoados, e o que o não fizesse não esperasse de mim nenhuma misericórdia; e a maior parte deles se vieram entregar com navios e artilharia, e os que não vieram mandei armar sobre eles, e tive tal maneira que os houve todos às mãos, e fiz neles grandes justiças, com que a terra ficou tão sossegada, como nunca antes esteve, nem depois.

E pelo crédito que eu na terra tinha no tempo que nela andara, me mandaram logo todos os reis seus embaixadores a fazer pazes comigo, e eu as fiz; e todo o tempo que na Índia estive eles estiveram sossegados e obedientes, como se fossem vassalos de El-Rei Nosso Senhor.

Isto feito, comecei a entender nas rendas e Fazenda de Sua Alteza, e a pô-la em ordem e arrecadação, porque não se havia nunca um real dela; e nos primeiros arrendamentos, que logo fiz, acrescentei duzentos mil pardaus de renda cada ano; e assim, com isto, como com vir a boa arrecadação tudo o que as rendas rendiam, pude desinvidar Sua Alteza de duzentos mil pardaus que devia quando à índia cheguei, de que, corrido interesses e em três anos que governei, acrescentei cento e setenta mil pardaus destas rendas da índia, que pus na carga da pimenta daqueles anos, por me de cá mandarem tão pouco dinheiro que sem isto não pudera mandar tantas e tão boas cargas como mandei em todo o meu tempo; porque o primeiro ano, por ter muitas naus para carregar, mandei cinquenta e dois mil quintais de pimenta e drogas, e os outros anos seguintes, pela mesma maneira, todas as naus muito bem carregadas. E de tal maneira me provia em todo o meu tempo de toda a pimenta, e drogas, que me foi necessária, que não houve cá quebras; assim que fez as cargas que cá mandei, juntamente com o dinheiro que mandei e trouxe, chegou a muito perto de cinco contos de ouro, o que Vossa Alteza bem pode saber da Casa da Índia, porque por certidão dela se fez esta conta. Por muito menos que isto fizeram Mallagasca bispo de Palência, com vinte mil cruzados de renda.

Todo o tempo que na índia paguei soldo e mantimento a toda a gente em geral, a quartéis, com a bandeira posta, sem nunca em todo o meu tempo [um] homem ficar por pagar; e ordenei a matrícula de feição que se não pudesse pagar nenhuma outra gente senão a que andava em serviço de Sua Alteza, que podiam ser até cinco mil homens, e antes disto se pagavam mais de dez mil; e o que se nisto encurtou de despesa foi grande parte para me sempre sobejar dinheiro, porque importava muito, e este dinheiro ficava todo pelos oficiais de El-Rei.

Pus em ordem a justiça, porque, por remissão dos governadores passados, havia tanto número de feitos por despachar que foi muito grande trabalho havê-los de esgotar. As cadeias da Índia eram tão cheias de gente, pelo muito pouco despacho que havia, como as daqui.

Ordenei fazer por minha pessoa audiência cada mês, e ali todos os que não estavam por casos a que era necessário dilações eram verbalmente despachados; de maneira que nunca na cadeia havia de dez-doze presos acima, soendo ordinariamente de haver uma grande multidão.

Nos hospitais gastava El-Rei Nosso Senhor muito dinheiro, de que os doentes haviam muito pequena parte e os seus oficiais quase toda; e, para tirar este inconveniente, ajuntei-os com a Misericórdia, que foi um grande serviço de Nosso Senhor e de Sua Alteza, porquanto melhor curados foram os doentes daí por diante; e para que isto não arrefecesse ia todas as sextas-feiras ouvir missa ao hospital, onde estava e tomava larga informação de como a casa era servida.

Nos armazéns houve continuamente muito grande abastança de todas as coisas necessárias, assim para a armada como para a guerra; e fiz muitos galeões e outros navios de novo, e outros corrigi de maneira que sempre em meu tempo tive a armada prestes com marinheiros e mantimentos dentro nela, e artilharia e munições para poder pelejar com a dos Turcos, porque por muitos avisos e inteligências que tinha sempre me parecia que me podiam mentir, e nunca me descuidava.

E porque neste tempo se me fez uma descortesia em Batecala, que é um lugar de mouros muito soberbos, pelas muitas [descortesias] que ali têm feitas a portugueses sem haver disso castigo, fui sobre ele e o tomei e saqueei e matei muita gente na defensão deles, e por derradeiro lhe mandei pôr fogo. Isto sossegou de tal maneira a terra que nunca mais homem dali ousou levantar cabeça, nem de outra nenhuma parte.

Pôr miudamente todos os serviços que fiz a Sua Alteza, assim na sua Fazenda como na guerra, seria o processo muito largo, e por isso vou encurtando.

Neste tempo sucedeu haver guerras entre o Idalcão e o Acedecão, seu vassalo; e nesta conjunção não quis eu perder a ocasião que se me oferecia, e houve para Sua Alteza as terras firmes de Goa, que rendem cinquenta mil pardaus, e também me mandou o Idalcão trinta mil pardaus, que mandei entregar aos oficiais de Sua Alteza. Neste meio houve muitas coisas neste negócio, que seria larga coisa de contar.

Daí a poucos dias morreu o Acedecão, o qual tinha mandado seu tesouro a Cananor, por um criado seu que se chama Coja Samacedim, o qual, tanto que seu senhor faleceu, porque era muito conhecido de mim de muitos anos atrás, e também porque me parece que se não atreveu com tanto dinheiro, e me disse que ele me queria dar quinhentos mil pardaus, com tal condição que lhe havia primeiro de jurar que deles não desse coisa alguma a El-Rei; de maneira que ele mos deu e eu fiz deles serviço a Sua Alteza com o maior gosto e contentamento que podia ser, por me parecer que acudia com eles a parte de suas necessidades.

Depois disto soube que tinha este mouro muito mais dinheiro, e determinei de haver mais dele; e porquanto ele tinha este dinheiro em terra de el-rei de Cananor, e estava penhorado a o defender e amparar, e assim outros senhores do Malabar, não se pôde isto fazer senão com mão armada; e para isto fiz prestes navios e gente, sem pessoa alguma saber para onde; e, levando-o comigo meio preso, sem o ele saber nem entender, dei em suas casas que eram [a] uma légua pela terra dentro, onde já achei El-Rei com muita gente armada; e porque me viu ir muito mais poderoso do que ele cuidava, não ousou de me cometer, mas antes fez que me vinha ver, e por palavras me persuadia que não tomasse por força nada em sua terra; e sem embargo disto lhe tomei duzentos e cinquenta mil pardaus, que também dei a El-Rei nosso senhor.

E parece que quem tanto dinheiro deu a El-Rei, podendo muito bem encobrir a maior parte dele, que tratava pouco de seu interesse, senão de servir a Sua Alteza, pondo os olhos na esperança dos galardões que por tamanho serviço cuidava de haver.

Sendo o Acedecão vivo, me mandou dizer, se havia mister dinheiro, que mo emprestaria, e me emprestou trinta mil pardaus, de que lhe dei um conhecimento meu, e que lhe hoje em dia devo, os quais, se me algum herdeiro seu vier pedir-mos, fará a Relação pagar.

A cabo de três anos foi D. João de Castro por governador, ao qual eu entreguei a Índia muito pacífica, e a gente de El-Rei nosso senhor e suas armadas muito acreditadas, e lhe entreguei cento e vinte mil pardaus, que eram já corridos das rendas, que ele logo arrecadou, e mais todo o cabedal que levava, porque a carga que trouxe fiz com o dinheiro que trazia, em que se gastaram cem mil pardaus; e ele ainda quisera mais dinheiro, não lhe lembrando as necessidades que cá havia e as poucas que lhe eu lá deixava; e esta foi a causa por onde ficou muito mal comigo; e lembrava-lhe mal (como lhe eu escrevi) de um capítulo que eu tinha de uma carta que me escreveu El-Rei nosso senhor, em que me escrevia que D. João de Castro lhe dissera que [só] por culpa dos seus governadores ia dinheiro de cá para a carga das naus, porque não era necessário, que com as rendas da índia se podia suprir; e ele, não lhe lembrando isto, queria o que levou de cá e mais o que eu trazia para cá.

E quando eu parti da Índia se viu bem como o crédito de uma só pessoa pode mais que todo um exército, porque logo se levantou toda, e não houve mais darem por nada, senão tudo foram guerras, gastos e trabalhos, como a Casa da índia tem bem sentido.

De todos estes serviços que aqui digo não tenho outro galardão senão servirem-se de mim, que um homem sempre por grande mercê e soldada que por isto me deram gasta-a no mesmo cargo; e uma comenda que há trinta e dois anos me deram, tirando-me oitenta mil réis de terra; assim que há trinta e dois anos que tenho o hábito e sirvo a ordem pelejando muitas vezes, e havendo muitas vitórias contra os inimigos da fé, sem nunca me darem outra comenda, nem ser melhorado desta, havendo muitos que têm duas e três comendas, que têm muito diferentes serviços dos meus; assim que eu não tenho outra alguma mercê até agora de quarenta e um anos de serviços.

Quando agora vim da Índia esta derradeira vez, me mandou Sua Alteza dizer pelo secretário que me faria mercê de uma destas aldeias de Santarém, e que a faria vila e me mandaria disso fazer alvará; e eu lhe beijei por isso a mão e lhe disse que não era necessário, que bastava sua palavra. E depois disse que me pagava meus serviços em me fazer mercê dos trinta mil pardaus que o Acedecão me emprestara e que lhe eu estou devendo hoje em dia, para mos fazerem pagar por justiça qualquer corregedor, diante quem me citar.

Ora eu não sei que acção Sua Alteza tinha a este dinheiro, nem nunca vi mais nova maneira de pagar, porque pagar com o alheio parece que não deve ser muita justiça; ora também Sua Alteza havia que, tendo eu o que tinha, ele me dera; assaz me deu em se querer sempre servir de mim; o que eu tenho deu-mo Deus, porque mandar-me El-Rei à Índia, isto pode ele fazer e isto me dá, mas o sucesso das coisas que lá hão-de suceder, isto dá-o Deus, porque esta proeminência guardou para si.

E ainda haveria eu por muito mor pecado querer um rei atribuir-se a si o que Deus faz, que não pagar quarenta e um anos de serviços, porque, se isto estivesse na mão do Rei, todos os que mandasse à índia o serviriam lá muito bem e lhe mandariam de lá muito dinheiro, porque, pois isto vinha assim bem a Sua Alteza, faria ele que fosse assim; mas, como está na mão de Deus, fá-lo quando e como quer, e busca quem lhe apraz para instrumento disto.

Assim que beijarei as mãos de Vossa Alteza querer mandar ver esta lembrança diante dos do seu Conselho e dos da Consciência e desencarregar a alma de El-Rei nosso senhor, ou também desenganar-me, porque naturalmente os homens são enganados consigo e terei eu mais paga da que mereço.


Notas:

1. Transcrição, com o texto modernizado por Luís de Albuquerque, do manuscrito de Martim Afonso de Sousa, Autobiografia; ms. 174 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. (regressar ao texto)

2. Era bispo do Algarve quando foi nomeado arcebispo de Braga, em 22 de Maio de 1545, sucedendo a D. Duarte, filho natural de D. João III. Morreu em 18 de Julho de 1549. (regressar ao texto)

Fonte:

Luís de Albuquerque (dir.),
Martim Afonso de Sousa,
Lisboa, Publicações Alfa («Biblioteca da Expansão Portuguesa, 10»), 1989, págs. 65 – 80.

A ver também:
  • Martim Afonso de Sousa
    Entrada no «Portugal - Dicionário histórico».
  • Discurso do 1.º conde da Castanheira
    Carta enviada por D. António de Ataíde, Vedor da Fazenda a D. João III, em 4 de Outubro de 1541, defendendo o abandono das fortalezas de Safim e de Azamor, em Marrocos, e a concentração dos esforços de Portugal na Índia.

  • Outras histórias
    A lista completa de documentos pessoais ordenada alfabeticamente.

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