DAS CARTAS DE CARL ISRAEL RUDERS


Carta n.º 38 publicada por Ruders no seu livro Portugisisk Resa (Viagem a Portugal), traduzida por António Feijó e publicada em 1912 no Diário de Notícias, e que descreve de uma forma muito completa o trabalho das companhias que actuavam no Teatro de São Carlos, ou como se dizia naquele tempo no teatro italiano, ou lírico. Os anos de 1801 a 1806 representam a primeira época de ouro para a ópera em Portugal, tendo passado nesses anos pela capital portuguesa os melhores cantores, bailarinos e actores da época, muitos dos quais continuariam a ter uma carreira brilhante em várias partes do Mundo.

Nota: Algumas das ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».

Angelica Catalani

Angelica Catalani, por Vigée Le Brun (1806)

Lisboa, 9 de Março de 1802

Nos últimos meses não faltaram espectáculos ao público de Lisboa; contam-se agora na cidade nada menos de quatro teatros 1. Além daqueles a que me tenho referido nestas cartas, existe mais um, construído em fins do Verão passado para representações portuguesas, na parte sul da cidade, um pouco para cá de Belém 2.

Não conheço a nova empresa, que provavelmente se destina aos moradores desses sítios, pertencentes quase todos à classe média. Os nobres, que na sua maior parte têm as suas casas nos aros desse arrabalde, não costumam frequentar espectáculos portugueses. Verdade seja dita, a companhia italiana, há algum tempo para cá, tem-se, distinguido muito com uma série de novas e brilhantes produções.

Em 23 de Dezembro, quando a senhora Catalani fez o seu benefício 3 subiu à cena pela primeira vez a tragédia de Voltaire La Morte de Semiramis 4.

É, como todos os outros espectáculos deste teatro, lírica. O compositor Portugal nas árias e duetos que a Catalani e Crescentini 5 devem cantar, teve o cuidado de adaptar a música aos grandes recursos desses artistas, proporcionando-Ihes dessa forma ensejo de poderem exibir com todo o brilho, quer juntos, quer separadamente, a sua arte excepcional.

A peça também produz uma extraordinária impressão sobre os espectadores; e a Senhora Catalani, ou se apresente com o carácter altaneiro de conquistadora, ou se mostre cheia de terror fugindo ao espectro do esposo assassinado, - comova-se de surpresa e angústia, ou estremeça na presença do filho que ela adora -, desperta sempre a mesma grande admiração.

A actriz e a cantora auxiliam-se mutuamente, fundindo-se no mais belo conjunto, para traduzirem com a mais alta verdade em toda a sua força, os encontrados sentimentos que tumultuam na alma da rainha. Praun 6 e Crescentini desempenharam também os seus papéis com o mais vivo agrado por parte do público.

Por ocasião de benefícios, como um certo número de bilhetes tem de ser exposto à venda na bilheteira, os especuladores aproveitam-se dessa circunstância para os açambarcarem. Foi o que sucedeu desta vez vendendo-os depois pelo duplo ou triplo do seu custo. Não obstante isso, a receita para a actriz subiu, segundo dizem, a 11.000 cruzados, devido, sem dúvida, na sua maior parte, a uma especial generosidade do público, visto que, no dia 30, quando o compositor fez benefício, o produto do espectáculo com uma concorrência igualmente grande, pouco excedeu metade daquela soma.

E já poderá no entanto dar-se por satisfeito.

Durante algum tempo, a nova peça foi alternando com as velhas; os empresários não têm que recear diminuição de concorrência, sempre que a Catalani tome parte no espectáculo.

No dia 18 de Janeiro chegaram mesmo a dar Cleópatra 7 sem Antonini e no dia 24 de Fevereiro, sem Octaviano – embora esses papéis sejam capitais, e sem eles o conjunto da peça tenha de sofrer consideravelmente. Nem Crescentini, nem Praun podem ser substituídos por Doublures. Uma outra noite, Crescentini nos Gli Orazi e Curiazi  8, cantou apenas os recitativos, ficando sacrificadas não só todas as suas árias como os duetos com a Catalani.

Mas nem por isso nessas ocasiões a concorrência era menor que das outras vezes, apesar de terem sido de antemão anunciadas nos cartazes todas estas contrariedades.

Nas peças, porém, em que a Rosa Fiorini 9 faz de Prima Donna, plateia e camarotes ficam quase vazios; só no momento de começar o bailado-pantomima 10, é que os espectadores em massa entram na sala, retirando-se depois pouco a pouco.

Mas no dia 31 de Dezembro, tanto o Crescentini como a Catalani, passaram também pelo desgosto de ver numerosos espectadores abandonarem o teatro ao começar a representação de Cleópatra.

Para esta demonstração, porém, o público tinha justificados motivos, porque a Catalani, ou por ter subitamente adoecido ou por estar de mau humor, quase que não abria a boca para cantar, não se importando também absolutamente nada com a acção.

A seu turno, Crescentini entendeu que devia igualmente deixar-se contagiar pelo mesmo capricho. Daí, o trabalho de Praun tomou-se também mais apagado, - como poderia ele empregar qualquer esforço vendo-se rodeado de criaturas inanimadas?

Era impossível, por mais pacientes que fossem os espectadores, suportar tão miserável espectáculo.

Contudo, não deram mostras violentas do desagrado. Alguns levantavam-se e partiam tranquilamente; outros ao sair batiam com as portas mal-humorados; muitos aplaudiam com toda a força gritando Dacapo! justamente quando o canto era pior; o maior número punha-se a rir.

A maior parte da peça foi suprimida. As cenas ficaram sem a menor relação de sequência umas com as outras, e para cúmulo de não-senso Cleópatra e António morriam de pé. Quando o pano caiu, estalou uma nutrida salva de palmas, mistura com insistentes chamadas para forçar os actores a virem à cena receber os aplausos irónicos do público. Mas nessa não caíram eles...

Mais seriamente manifestaram os espectadores a sua indignação na noite de 7 de Fevereiro, em que devia representar-se a Semiramis, quando à última hora, pouco antes de começar o espectáculo, apareceu um contra-anúncio dizendo que a Catalani, por incómodo de saúde, não podia cantar.

Precisamente quando o pano subia, a mais terrível tempestade de assobios e pateada rebentou na sala, redobrando a violência quando Semiramis entrou em cena, fugindo à sombra do marido assassinado e contudo a actriz, recobrando o ânimo, avançou com passo firme para o proscénio e começou a arengar para o público em italiano: Meus senhores, dizia ela, não é culpa minha, mas do empresário que não providenciou a tempo para a mudança do espectáculo.

Dentre os espectadores, o maior número respondeu com palmas à arenga da actriz, reservando-se para fazer sentir depois a Crescentini a pior explosão da sua cólera. Assim, quando ele apareceu em cena, foi recebido com demonstração da mais viva indignação.

Durante um bom bocado, apesar dos seus gestos humildes, não conseguiu meio de se explicar. Mas por fim, sempre se fez um certo silêncio, e o homem pôde então proclamar a sua inocência, alegando a impossibilidade de montar uma peça nova e obter para ela autorização do Inspector do Teatro 11 no curto espaço de uma tarde. Além disso, convidou quem não estivesse satisfeito a ir à bilheteira receber o seu dinheiro. Alguns barulhentos contentaram-se com as explicações, outros, porém, mostraram-se ainda mais indignados por causa do convite. Os piores eram os oficiais dum regimento de Cavalaria, que tinham vindo da fronteira espanhola, e que por isso se julgaram logrados. Em consequência da distância a que se encontra o corpo a que pertencem, raras vezes, ou nunca, podem ter ocasião de ouvir a célebre cantora, e viam-se ali, na plateia, reunidos em numeroso grupo, assistindo ao mais reles espectáculo que jamais podia oferecer-lhes, sem esperança de verem realizados os seus desejos de ouvir a Catalani, porque já no dia seguinte tinham de deixar a capital.

Depois disso, em duas noites consecutivas, foram representadas apenas peças cómicas, para um número muito restrito de espectadores; mas no dia 10, a Senhora Catalani, tendo-se declarado completamente restabelecida, apresentou-se de novo na Semiramis com urna enchente à cunha.

Crescentini fez então distribuir coisa de mil exemplares duma declaração, impressa com permissão das autoridades, relativa aos deploráveis acontecimentos que se produziram no dia 7. Nessa declaração, Crescentini fala da sua inexcedível delicadeza em pontos de honra, suprimindo a sua profunda mágoa pelo descontentamento que ultimamente lhe manifestou a nação portuguesa (!); mas ao mesmo tempo, embora com os termos mais moderados e sob calor de se desculpar, ia atirando com todas as culpas para cima da Catalani. O público no entanto não tomou o seu partido; ao contrário, saudou a actriz com extraordinária demonstração de alegria.

Ela também nessa noite excedeu-se a si própria, tanto a cantar como a representar. Crescentini, apesar de recebido a princípio com frieza, conseguiu dominar-se o bastante para não deixar transparecer a menor sombra de despeito.

A sua voz e a sua arte, cantando e representando, desarmaram todos os espectadores prevenidos contra ele.

Estas anedotas, que em si mesmas não passam de grandes bagatelas, servem no entanto para dar uma ideia das audaciosas liberdades que os virtuosos de excepcional talento se permitem com o público, sempre disposto aos mais generosos sacrifícios, quer eles resultem das desmedidas exigências da sua celebridade, quer da sua insaciável cobiça de dinheiro.

Não pode chamar-se nova esta observação de que em regra os grandes artistas odeiam e perseguem os seus competidores; mas nunca dessa observação se poderia obter prova tão concludente como esta que deriva dos contínuos dissabores, que para o público resultam da inimizade reinante entre Crescentini e a Catalani.

Esta espécie de gente tem consciência bastante do infalível poder de fascinação da sua arte, para recear que o público sinta o efeito dos seus caprichos desordenados.

Crescentini, sobre o qual recai principalmente o desagrado dos espectadores nem por isso sofreu o menor desfalque nos lucros do seu benefício, que se realizou poucos dias depois, a 19 de Fevereiro.

Os espectadores mais irritados, sempre que ele se resolve a empregar os seus recursos, deixam-se vencer logo às primeiras notas; e isto sucede, ainda em mais alto grau, com a Senhora Catalani.

Nesse benefício representou-se a tragédia Zaira de Voltaire 12, com música do Sr. Portugal. Deve reconhecer-se que nada faltou de quanto é preciso par tornar brilhante um espectáculo. Os costumes sumptuosos eram todos novos, e o cenário excessivamente belo. Os principais papéis foram admiravelmente desempenhados. Devo no entanto em especial assinalar, por ter sido de um grande efeito, a cena da Zaira (Catalani) com o Pai - o velho Lusignan (cujo papel coube a Caetano Neri 13), e com o irmão Nerestan (Praun) no momento em que mutuamente se reconhecem. O vigor e o encanto da expressão, que distinguem a Catalani não podem nunca ser suficientemente admirados. Bastava para se ficar completamente satisfeito, mesmo que se não conseguisse ouvir mais nada, o incomparável acento com que ela diz aquelas palavras son figlia, son germana e son amante.

Mas infinitamente mais difíceis, senão impossíveis de executar para qualquer outra voz, são certas passagens de algumas árias. Os duetos que ela canta com Crescentini, assombram e encantam a mais não poder.

A Companhia, no princípio deste ano, era já bastante numerosa; apesar disso foi agora reforçada com a aquisição de uma nova actriz Guiseppa Torlendis Zauzardini, que se estreou no dia 15 de Janeiro com a peça cómica Gli Originali. Escriturada para papéis secundários, em que ela, na verdade, não mostrou grande talento, apresentou-se agora pela primeira vez na sua vida, como Prima Donna num teatro público. Como incentivo, não lhe faltaram nessa noite palmas em barda, mas depois o público foi-se tornando mais parcimonioso.

De facto, embora ela, na opinião geral, disponha duma bela voz, não poderá nunca ter pretensões a alcançar a aplausos de um público habituado ao que há de melhor, tanto mais que ela, para secundar essas pretensões, nada tem, pelo que diz respeito à maneira de representar, nem vigor, nem graça.

Além da referida peça, apresentou-se depois como segunda actriz em obras sérias; mas sem maior sucesso que as outras actrizes de igual categoria.

O Sr. Rossi 14, que tenciona agora deixar Lisboa, deliciou o público, durante os primeiros meses deste ano, com quatro novos bailados-pantomimas. Em 4 de Janeiro, quando Mademoiselle Monroy 15 fez benefício, pôs ele em cena o Paulo e Virgínia, tirando do comovedor romance do mesmo nome, de Bernardin de St. Pierre; cujo entrecho conhecem de certo.

No benefício de Mademoiselle Hutin 16, em 29 do mesmo mês, subiu à cena Apelles e Campaspa, ou A Vitória de Alexandre sobre si mesmo 17. É admiravelmente imaginado. Nichili 18, como Apelles, deixando-se enamorar da formosa Campaspa (Hutin), amante de Alexandre, que ele por ordem do Rei andava a retratar, desempenhou o seu papel de mimo com o vigor e o encanto que lhe são próprios, e que eu julgo impossíveis de exceder. 19

O autor do bailado proporcionou também à Dançarina os melhores ensejos de realçar todas as suas graças artísticas, com as mais belas atitudes, que ela variava mudando ao mesmo tempo de roupagens, em face do Pintor que debalde procurava retratá-la surpreendendo-a na posição mais vantajosa; - o amor que ela lhe tinha inspirado, crescendo a cada exibição de um novo encanto, tornava inúteis todos os seus esforços.

A cólera de Alexandre, a luta consigo próprio, o sacrifício do seu amor ao ver que Apelles era correspondido por Campaspa, dão origem a cenas do mais alto interesse; e o efeito pelos primores que tão finamente aformosearam as danças, entre as quais devo sobretudo assinalar um pas de duo de Hutin e Monroy chamado A Escola de Dança.

Esse trecho produzira nos espectáculos uma tão profunda e silenciosa admiração, que não se ouviu na sala uma única palma - ao contrário do que sucede habitualmente - até ao momento preciso em que terminou.

Em 22 de Fevereiro, para o benefício de madame Schira 20, o Sr. Rossi, compõe uma patomima-bailado Vasco da Gama na Ilha dos Amores, conforme Camões.

Este célebre poeta, em diversos cantos dos Lusíadas, para louvor dos seus compatriotas, desenvolve uma ficção, que, em poucas palavras, se resume no seguinte.

Realizado o grande descobrimento da Índia, por entre numerosos perigos, quando os Portugueses vinham de volta para a Pátria, propôs-se Baco impedir o seu regresso com receio de que as espantosas façanhas dos navegadores obliterassem a fama dos seus próprios prodígios. Com esse intento persuadiu Neptuno a levantar contra os portugueses, horrorosas tempestades, com o auxílio de Eolo, e do Tempo. Mas Vénus, de quem eles são favorecidos, acalma as tormentas e conduz os seus amados Lusitanos a uma ilha situada no Oceano deserto, mas superabundante de todas as delícias. À sua chegada, as Nereidas e a própria deusa Tétis, feridas por Cupido, deixam-se prender de amor pelos portugueses e recebem-nos com as mais vivas demonstrações de alegria, preparando grandiosas festas em sua honra, de envolta com as mais terna provas de carinho.

Desta brilhante ficção, adornada de todas as belezas poéticas, fez o Sr. Rossi um bailado-pantomima em dois actos, e como sempre, foi tão feliz na maneira de tratar o assunto, como na escolha dele.

Pouco antes do Carnaval, a 26 de Fevereiro, fez o maître de ballet o seu próprio benefício com um novo bailado-pantomima: Dom João Tenório ou o Convidado de Pedra 21.

Tanto o título como o entrecho são altamente singulares.

A pantomima baseia-se numa lenda qualquer, de que eu me recordo, sem que possa contudo dizer neste momento onde é que a li. Na minha opinião, desta vez o Sr. Rossi foi menos feliz na forma de tratar o assunto. Em toda a peça reina um misto tão monstruoso de cómico e de terrível que o prazer dos espectadores perante a beleza de certos quadros, tomados isoladamente, é a todo o instante prejudicado pelo horror do contraste.

A cada passo o sentimento é bruscamente violentado por uma arlequinada, que intervém quando menos se espera no meio duma cena melancólica ou horripilante. O entrecho, nas suas linhas principais, é o seguinte:

Um jovem senhor (D. João Tenório) graças a uma serenata, seduz uma linda rapariga, que ele rapta em seguida.

O velho pai que surge de improviso, surpreende os culpados à porta da sua habitação, e lança-se contra o sedutor de espada em punho e trava-se um duelo em que o velho sucumbe.

Dom João, sem sombra de remorso, continua a sua existência voluptuosa, não só com a raptada como com muitas outras belezas seduzidas.

No entanto, procede-se ao enterro do assassinado, em honra do qual se erige no cemitério uma estátua equestre. Dom João acompanhado pelo seu servidor e confidente (Arlequim), passando um dia por diante da estátua, põe-se a zombar do morto. A estátua agita-se e ameaça; mas enquanto o servidor se aterra, Dom João acena-lhe desdenhosamente, desafiando-a a que o acompanhe, com gestos sarcásticos.

Em meio dum baile sumptuoso, sente-se alguém bater à porta. O servidor vai ver quem é, abre a porta, e cai por terra em convulsões de terror. Os convidados fogem, e o morto entra na sala, fazendo ressoar sobre o soalho, os seus passos lentos e pesados, como de mármore.

Dom João, com um gesto indica ao seu estranho hóspede que se sente, e no colóquio que se trava entre os dois, o forasteiro convida-o a pagar-lhe a visita.

Dom João aceita e cumpre a sua palavra.

O morto recebe-o então numa sala, cuja amplitude e ornamentação bastam para encher o espírito de lúgubres imagens. Vê-se que ele o admoesta e exorta com ardor, mas Dom João escuta-o desdenhoso.

Ao fundo, sobre uma mesa, avista-se um vaso fechado, contendo no interior um fogo ténue.

O espectro conduz D. João para junto dessa mesa, e com um gesto convida-o a destapar o vaso; D. João obedece e a chama irrompe. O espectro some-se repentinamente e D. João vê-se de súbito cercado de réprobos, no meio de labaredas e demónios. Entre essa terrível sarabanda D. João descobre com terror a jovem raptada e todas as suas vítimas de outrora, que nesse momento tomadas de fúria, procuram arrancá-la das mãos umas das outras, num bailado infernal, que ultrapassa todos os limites do medonho. Se o entrecho da peça pudesse desembaraçar-se das intercalações cómicas, que nela aparecem como intrusas, não faltaria de certo quem lhes descobrisse tendências moralizadoras, com sobra de motivos para causarem impressão, porque tanto a mímica como as decorações merecem os mais altos encómios. Dançarinos e dançarinas de todos os géneros têm nesta peça ocasião de poderem mostrar os seus talentos. Entre as outras danças, houve também uma de estilo grotesco, executada por cinco artistas recém-chegados - três dançarinos e duas dançarinas.

É justamente esta superabundância que prejudica o efeito, dando origem a contrastes desagradáveis, embora se deva confessar que a execução do conjunto tem grande merecimento, quando se encara independentemente do despropósito dessa combinação. Mas como é este o gosto próprio do Carnaval, o Sr. Rossi teve sem dúvida de sacrificar o seu, já de longa data, provado talento e bom gosto.

No último dia de Carnaval, a chamada Terça-Feira Gorda, em 2 de Março, foram postados, em diversos lugares da plateia, soldados com as suas espingardas, tirando a vista dos espectadores sentados. De camarote para camarote jogavam-se pós, segundo o costume do dia; e em todo o teatro não faltavam burlas e farsas a provocar o riso.

Os principais artistas que tomaram parte no espectáculo foram chamados ao proscénio depois de cair o pano, para receberem os agradecimentos do público. Dentre eles, o actor Schira 22, com alguns outros actores e actrizes, vão deixar Lisboa, assim como o dançarino Moreau e as dançarinas Hutin e Schira, não falando da troupe grotesca, e de muitos outros artistas menos notáveis.

Desde 27 de Dezembro ainda se não deixou de sentir a falta do dançarino Giraud, que então se mostrou pela última vez nesse teatro, em consequência do seu rompimento com o director Crescentini. Para os artistas que vêm a Lisboa (cantores ou dançarinos) é quase regra estabelecida que depois de permanecerem aqui algum tempo passam a Londres 23, onde, além de mais dilatada reputação, conseguem auferir ainda maiores honorários. Os ingleses que aqui aprendem a conhecê-los parece terem a pretensão de que Londres, reunindo todos os maiores artistas teatrais, mesmo a esse respeito tenha supremacia sobre todas as outras cidades. Os artistas, é claro, não fazem grandes dificuldades em se deixar convencer, à vista do número de guinéus que eles lhes oferecem.

Giraud partiu imediatamente para Inglaterra, onde foi escriturado, logo à chegada, com mais vantajosas condições.

Resta agora saber por quanto tempo ainda a Catalani permanecerá em Lisboa porque sem dúvida mais tarde ou mais cedo acabará por tomar o mesmo caminho, para eclipsar Mrs. Billington 24 e ainda mais a Mara 25, outrora célebre. Esta última, segundo se diz, tenciona ir à Rússia no ano que vem, passando pela Suécia, se tal suceder, poderá ela aí, posto que com voz já perdida, dar-lhes uma ideia aproximada do que é cantar bem.

Contudo, os que a conhecem pretendem que ela «em comparação com a Senhora Catalani» nunca poderá inspirar grandes louvores.

A Catalani, no convívio social, goza aqui duma consideração que para mulheres da sua classe é altamente extraordinária. Durante os bailados ou nos espectáculos cómicos em que ela não toma parte, vê-se com frequência entre a mais alta nobreza do Reino - honra inaudita em Portugal. É principalmente no camarote de D. Francisco de Almeida, ou com a marquesa de Lumiares, camareira-mor da Princesa do Brasil, que ela com mais frequência se mostra. Quando tem de voltar para o palco, nunca sobe as escadas sem ser levada pelo braço de algum grande fidalgo - condescendência que causa admiração a muita gente. Diz-se que ela, a princípio, se destinava a bailarina; mas embora conseguisse salientar talentos nessa arte, reconheceu que lhe seria difícil vencer nela todos os seus competidores.

Que pena, se esta voz incomparável se tivesse perdido para o canto!

Durante um período de cinco meses, a Senhora Catalani, incluindo a estreia em 27 de Dezembro, exibiu-se 33 vezes na Morte de Cleópatra, 11 nos Orazi e Curiazi. 22 na Morte de Semirami. 7 na Zaira, 1 como pastora da Cantata por ocasião do aniversário da Rainha, - ao todo 74 representações, ou cerca de 15 em cada mês.

O tempo da Quaresma decorre agora sem nenhuma espécie de divertimentos a menos que se não queira incluir nesta categoria as procissões públicas, que se celebram em honra dos santos.

Não tenho por isso nesta matéria mais a acrescentar.

A.F.


Notas:

1. Os três antigos teatros, eram - o Teatro da Rua dos Condes, construído entre 1756 e 1765, e que desde 1782 era o teatro de reportório português; o Teatro do Salitre, inaugurado em 27 de Novembro de 1782, que foi dirigido pelo famoso actor António José de Paula, de Julho de 1794 a Maio de 1803, data da sua morte; e o Teatro de São Carlos, construído a partir de 1792 em honra da princesa Carlota Joaquina, e do nascimento da infanta D. Maria Teresa,  primeiro filho do casamento dos príncipes herdeiros, em 29 de Abril de 1793, e que foi inaugurado em 30 de Julho de 1793. (regressar)

2. O teatro situava-se na Boa-Hora, e por isso entre Alcântara e a Junqueira. O nome de Belém era por isso um termo muito genérico. (regressar)

3. Espectáculo cujos lucros revertiam em benefício do autor, do director ou de um dos principais actores de uma companhia, o qual se exibia em tal ocasião com o seu repertório mais conhecido. Os grandes actores tinham normalmente direito a um ou dois benefícios por temporada, sendo muitas vezes definidos valores mínimos para os rendimentos a obter nestas récitas. (regressar)

4. A peça de Voltaire Sémiramis, representada em Paris em 1748, serviu de base à ópera de Marcos Portugal, assim como à de Rossini Semiramide estreada em 1823. A lenda da rainha Semiramis, a quem é atribuída a construção dos jardins suspensos da Babilónia, foi muito popular tanto na literatura, como nas artes plásticas e na música até ao fim do século XIX. A história era conhecida por meios dos textos do historiador grego do século I a.C. Diodorus Siculus, e tem um lugar especial no inferno na Divina Comédia de Dante, assim como na estrofe 53 do Canto Sétimo dos Lusíadas:

Mui grande multidão da assíria gente,
Sujeita a feminino senhorio
Düa tão bela como incontinente;
Ali tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido o feroz ginete ardente
Com quem teria o filho competência.
Amor nefando, bruta incontinência!

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5. Girolamo Crescentini (Urbania, Marcas, Estados da Igreja, 2 de Fevereiro de1762 - Nápoles, 24 de Abril de 1846). Célebre castrati (sopranista) italiano, estreou-se no Teatro Nuovo de Pádua, em 12 de Julho de 1782, na Didone abbandonata de Giuseppe Sarti. No ano seguinte, no Carnaval, participa na ópera de Domenico Cimarosa L'italiana a Londra, produzida no Teatro Argentina de Roma. Tirando uma breve estadia de seis meses em Londres, em 1785, a sua carreira centra-se em Itália. No Carnaval de 1798 depois de cantar no Scala de Milão, a Meleagro de Niccolò Antonio Zingarelli, vem para Portugal para integrar a companhia do Teatro de São Carlos, de que será empresário por duas vezes, até 1803. Em 1804 está de novo no alla Scala. Napoleão Bonaparte, Imperador de França, mas também Rei de Itália, nomeou-o professor de canto da família imperial, e chama-o para Paris, tendo Crescentini cantado na coroação. Em 1812 abandona a França e estabelece-se em Bolonha, sendo em 1814 director da escola de canto do Liceu musical. Mais tarde foi viver para Roma, tendo acabado a sua carreira em Nápoles como professor do Conservatório de São Sebastião. (regressar)

6. Praun, tenor de origem alemã, participou no São Carlos, em 4 de Novembro de 1799, na ópera I Ginochi d'Agrigente, de Paesiello, no Outono de 1801 na La morte de Semiramide, de Marcos Portugal, em que contracenou com Angelica Catalani, e em 1804 fez parte do elenco da Camilla de Valentini Fioravanti, naquela que parece ter sido a sua última apresentação no palco do São Carlos. Ruders na carta n.º 11, de 29 de Março de 1800, afirmou que «a sua voz não pode precisamente chamar-se bela, mas sabe música muito bem e é um actor excelente, tanto nos papéis dramáticos, como nos cómicos de alguma elevação».  (regressar)

7. La Morte di Cleopatra de Sebastiano Nasolini, com libreto de S. Sografi estreou-se no Teatro Eretenio de Vicenza em 22 de Junho de 1791. Mais tarde, em 1800, com o libreto refeito por Gaetano Rossi e a música com acrescentos de Gaetano Marinelli, estreou-se no Teatro La Fenice , de Veneza. (regressar

8. Ópera de Cimarosa, com libreto de Antonio Simeone Sografi, com base na tragédia de Pierre Corneille Horace, estreada no Teatro La Fenice de Veneza em 26 de Dezembro de 1796. (regressar)  

9. Cantora italiana, prima-dona absoluta  na temporada de 1799 a 1800, e 2.ª dama na de 1804, foi amante de Marcos Portugal, com quem vivia na Rua de São Francisco (actual Rua Ivens). Presa em 1804 por ordem de Pina Manique, que enquanto Intendente-geral da Polícia estava encarregue da inspecção dos teatros, devido à sua conduta escandalosa, foi libertada pouco depois devido à influência do amante e aos pedidos do público em geral. Em 1809, cantou La Donna di genio Volubile de Marcos Portugal quando se festejou o primeiro aniversário da saída de Portugal do exército francês de Junot. (regressar)

10. O ballet ainda se não tinha autonomizado inteiramente e, normalmente, no intervalo ou no final da representação lírica, havia um bailado, totalmente independente da peça exibida. (regressar)

11. Cada teatro em Lisboa, tem o seu ministro inspector, sem autorização do qual, para cada dia, nenhuma peça pode ser representada, nem pessoa alguma que toma parte do espectáculo sair do teatro, nos intervalos. Ele próprio deve assistir a todas as representações, havendo por isso um camarote destinado à sua pessoa. - Nota do Autor.  (regressar)

12. Peça de Voltaire representada em Paris em 1732, no regresso do seu exílio de seis anos em Inglaterra, o texto da 1.ª edição incluía um Discours sur la tragédie, que difundiu em França a obra de Shakespeare. A peça deu origem a outras óperas: Zaira o sia il trionfo della religione, de Sebastiano Nasolini, com libreto de Mattia Botturini, de 1797; uma versão de Francesco Federici, com o mesmo libreto, de 1802; e a de Vicenzo Bellini, com libreto de Felice Romani, estreada em Parma no Teatro Ducale em 16 de Maio de 1829.  (regressar)

13. Gaetano Neri, cantor italiano, desde 1795 no Teatro de São Carlos, contrato por Crescentini para 1.º bufo, interpretou o papel de Rei na ópera de Marcos Portugal Ginevra di Scozia. Ruders considerava-o «razoável em papéis de espalhafato». Cantou pelo menos até ao Verão de 1806, tendo participado nessa data na ópera Ci vuol pacienza, de Francesco Gardi. Casou-se em Lisboa com a cantora Eufemia Eckart, que apareceu pela primeira vez no elenco de uma ópera - La Clemenza di Tito de Mozart - em finais de 1806. A cantora ainda apreceu no elenco da Zaira de Federici, representada em 22 de Junho de 1808. (regressar)

14. Domenico Rossi, mestre de baile, italiano, contratado em 1799 para o São Carlos esteve em Lisboa até 1804. Passou por Paris, onde em 1805 apresentou o bailado, estreado em Lisboa em Junho de 1802, Aquiles em Leyros. Esteve depois em Londres onde, em 1809, apresentou um bailado histórico - Pietro il Grande.  (regressar)

15.Bailarina francesa, veio para o São Carlos em 1800  (regressar)

16. Alexandrine Hutin, bailarina francesa, veio para o São Carlos em 1800, de Espanha, sendo amante de Crescentini, maîtresse déclarée como diz Ruders (carta 20). No Verão de 1801cantou Pimmalione, uma pequena peça «extraída duma linda cena lírica de Jean-Jacques Rousseau» (carta 29). Em 1804 já não pertencia à companhia lírica .  (regressar)

17.  O tema tinha dado origem a um ballet heroi-pantomine criado por Jean-Georges Noverre (1727-1810) e estreado no Teatro Regio Ducale de Milão em 1774, com o título Apelles et Campaspe, ou le Triomphe d'Alexandre sur soi même, e impresso em livro no mesmo ano por J. Montani. (regressar)

18. Bailarino italiano. (regressar)

19. Pode no entanto alguém dizer qual é o extremo limite da Arte? Quando se ouve cantar a Catalani é forçoso confessar que tudo quanto até então se nos afigurava ser o que de mais belo havia no canto ou de mais poderoso na voz humana, estava infinitamente abaixo da impressão que ela desperta. Quem ousará agora dizer: «Ninguém pode cantar melhor?» Pode muito bem suceder que o seu canto tão justamente admirado não seja ainda o mais perfeito. O que em verdade se pode asseverar é que neste momento Angélica Catalani não tem igual. - Nota do Autor.  (regressar)

20.  Giuseppa Radaelli Pontigi Schira, bailarina italiana, veio de Madrid para o São Carlos em 1800, como primeira bailarina, contratada por seis meses, segundo Ruders escreveu (carta 11) «fugida de certa dama espanhola, a quem ela deu motivos para ter ciúmes». Estreou-se em 29 de Janeiro, com um imenso sucesso, sendo a primeira mulher a actuar em Portugal, desde a proibição das mulheres representarem nos teatros públicos, decretada no princípio do reinado de D. Maria I. Em 22 de Fevereiro dançou um Bolero. Aqui casou com o cantor Schira.   (regressar)

21. O ballet baseava-se na peça de Molière (1622-1673), Dom Juan ou le festin de pierre, estreada em 15 de Fevereiro de 1665, no Palais-Royal, a qual tivera origem na peça de Tirso de Molina (1584-1648), El Burlador de Sevilla y Convidado de Piedra, escrita por volta de 1619, que tem como personagem principal Don Juan Tenorio.  (regressar)

22. Michele Schira tenor   (regressar)

23. Sobre este assunto ver David Cranmer, «Relações operáticas entre Portugal e Inglaterra durante o período napoleónico», Revista Portuguesa de Musicologia, n.º 10, 2000.  (regressar)

24. Elizabeth Billington (n. Weich) (Londres, 1768 - Veneza, 1818) Soprano inglesa, filha de Carl Weich, oboísta alemão na orquestra do King's Theatre de Londres, casou em 1783 com James Billington músico da orquestra londrina do Theatre Dury Lane. Estreou-se em Dublin na Irlanda, como Polly na The Beggar's Opera de John Gay e arranjos musicais de Pepusch. A sua estreia londrina realizou-se em 13 de Fevereiro de 1786 no papel de Rosetta na ópera Love in a Village de Thomas Arne. No ano seguinte esteve em Paris, tendo estudado com Sacchini. Devido a um escândalo provocado pela publicação de cartas escandalosas, apócrifas, saiu de Inglaterra em 1792, indo viver para Nápoles. Apareceu em 30 de Maio de 1794 no Teatro San Carlo, na estreia da Ines di Castro de Francesco Bianchi, escrita propositadamente para ela. Em 1797 está em Veneza, em 1798 em Milão com a então mulher do general Bonaparte, a futura imperatriz Josefina. Em 1799 casa indo viver para Vicenza, mas em 1801foje do marido devido aos maus-tratos que lhe infligia. Regressa a Londres reaparecendo no teatro de Convent Garden em 3 de Outubro no papel de Mandante no Artexexes de Arne. A partir de 1802 até se retirar, em 3 de Maio de 1811, cantou sempre óperas italianas no King's Theatre.  (regressar)

25. Gertrud Elisabeth Mara (n. Schmeling) (Kassel, Eleitorado de Hesse [Alemanha], 22 de Fevereiro de 1749 - Reval, Livónia [Tallin, Estónia], 20 de Janeiro de 1833). Filha de músico, que lhe ensinou a tocar violino, acompanhou o pai a Viena e Londres, tendo aparecido no Little Theater em Haymarket, Londres, em Abril de 1760, contracenando com outros solistas infantis. Abandonou o instrumento e dedicou-se ao canto, tendo estado na Gesangsschule de Hiller em Leipzig. Estreou-se em 1767 na ópera Talestri, Regina delle Amazoni de Maria Antónia Walpurgis, princesa da Saxónia, que a apresentou a Frederico II, da Prússia, em 1771. Contratada pelo rei esteve na Prússia até 1779, tendo casado com o violoncelista J. Mara em 1774. Depois de passar sucessivamente por Leipzig, Dresde, Viena e Munique, chegou em 1782 a Paris onde obteve um sucesso estrondoso na sua primeira apresentação no Concert Spirituel. Ficou dois anos na capital francesa, transferindo-se para Londres em 1784. Cantará no Festival handeliano em anos sucessivos, com um imenso sucesso. Ficará em Inglaterra até 1802, tirando duas curtas permanências em Itália. Abandona a Inglaterra, passando por Paris, indo viver para Moscovo. Abandonada pelo marido e pelos muitos amantes, dedica-se ao ensino, mas o grande incêndio de 1812, durante a ocupação francesa da cidade, deixa-a na miséria. Vai viver para Reval, capital da Livónia, onde morrerá.  (regressar

 

Fontes:

Diário de Notícias, n.º 18.792 de Sábado, 10 de Agosto de 1912, pág. 3; e 18.797 de Quinta-feira, 15 de Agosto de 1912, pág. 4;

Carl Israel Ruders, Viagem em Portugal, 1798-1802, trad. de António Feijó, pref. e notas de Castelo Branco Chaves, Lisboa, Biblioteca Nacional («Série Portugal e os Estrangeiros»), 1981; tradução parcial de Portugisk Resa, beskrivfen i bref til vanner, 3 vols., Stockholm, 1805-1809.


A ver também:

 
  • Outras histórias
    A lista completa de documentos pessoais ordenada alfabeticamente.

 

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